Moisés tira água da pedra, Tintoretto |
pecados. Supunham os antigos que no deserto habitam os demônios, as bestas feras e todos os amaldiçoados, totalmente privados da bênção de Deus. Sob este ponto de vista, Deus os tirou da servidão onde comiam panelas de carne e os fez passar pelo deserto, para fazê-los dignos da terra que mana leite e mel. Mas não se pode confundir o simbolismo bíblico da aridez permanente com o da provação ocasional.
Na lembrança da travessia do deserto temos três elementos predominantes:
O plano de Deus. É o caminho que foi escolhido por Deus e não o mais curto. É esse povo errante do Deserto que Deus o faz seu, pode habitar em qualquer lugar da terra, mas nasceu no deserto, num período mágico nunca mais reprisado.
A identidade do povo. O caminho de Deus nada tinha de comparável ao Egito, onde não faltavam segurança e alimentação. Era o caminho da fé pura naquele que guiava Israel. Por isso era preciso decidir entre as panelas de carne na escravidão do Egito, ou o maná minguado que é tudo que a liberdade tem para oferecer. O deserto se torna o coração do homem diante da provação.
O triunfo da misericórdia. Passa a geração da infidelidade e da falta de confiança, mas não passa a idolatria e a iniquidade. Deus, fiel ao seu plano, oferece-lhes meios impensáveis de salvação: água que jorra da pedra, serpente de bronze, nuvem de codornas. Esse é o tempo que nos permite ver o quanto somos infiéis e o quanto Deus é misericordioso, se antecipando à nossa rebeldia e levando a bom termo o seu plano.
Enquanto as comunidades essênicas pregavam uma fuga para o deserto, Jesus faz dele apenas um lugar para avaliar as prioridades do seu ministério. Contudo, diversamente aos seus antepassados, ele vence as provações preferindo a Palavra de Deus ao pão, o contato individual ao espetáculo e a adoração a Deus às riquezas. A prova que havia fracassado no deserto encontra o seu sentido: Jesus é o primogênito em quem se realiza o plano de Deus no deserto.
Mas Cristo está presente também no nosso deserto. Jesus ensina que aquele que ora deve refugiar-se no deserto, longe da multidão, para o melhor proveito da oração. No deserto é que ele há de encontrar a água viva, o pão do céu, a luz na noite e a serpente que é erguida para sua salvação. Em certo sentido podemos dizer que Cristo é o nosso deserto, pois nele superamos a provação e nele temos comunhão direta com Deus. Podemos pensar no deserto como um lugar e como um tempo que embora impalpáveis são mais reais que a própria realidade.
Devemos fazer isso sem perder a perspectiva de que o deserto é o lugar onde a igreja nasceu, onde está vivendo e onde aguarda ansiosa a plenitude do Reino que porá um fim definitivo a todas as tristezas e decepções. O que não se deve fazer é pensar este deserto sob uma visão individualista ou sectária. Este é o deserto onde Deus faz brilhar o sol sobre justos e injustos, faz cair a chuva sobre maus e bons e alimenta com pães e peixes indistintamente a todos da multidão. Embora vivamos sob a insistente pregação de que estamos vivendo o final dos tempos, não podemos esmorecer no trabalho para o qual fomos chamados, pois na visão de Jesus, o Pai trabalha até agora, e não há motivo algum para que nem ele e nem nós não trabalhemos também. A vida continua sob este signo da provação. Enquanto não entramos no sábado eterno, lembre-mo-nos sempre das lições do povo de Deus no deserto: Se hoje ouvirdes a sua voz não endureçais o vosso coração como foi na provação do deserto. Hb 3,15
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