Quem está no comando?

A inocência, Bouguereau, 1893
Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem. Gn 50.20

Esta talvez seja a pergunta mais pertinente que devemos fazer em um dia em que nos reunimos para deixar para trás mais um período conturbado de nossas vidas e ingressarmos em um novo período cheio de esperanças pelas vislumbrantes possibilidades de mudanças. Mais da metade da população da terra vai dizer que é Deus quem está no comando, porém, muito poucos vão poder explicar satisfatoriamente a resposta quando forem questionados: Você acha que Deus está no comando, simplesmente porque ele é Deus? Não são todos os ateus que não acreditam na existência de Deus, os mais
ferrenhos são aqueles que dizem que Deus criou o mundo, e assim como se faz nos relógios antigos, deu corda nele, e o deixou à sua própria sorte. Diante disso, precisamos conferir e repensar quais foram os argumentos que nos levaram a crer que Deus está no comando.

Primeiramente precisamos verificar o que está dentro do coração de Deus e sabermos quais são as suas intenções para nós com este controle, e, logo de saída, vamos nos deparar com um paradoxo muito grande: Deus é o único soberano do universo, mas ao mesmo tempo ele nos tem dado liberdade de fazermos tudo que queremos. Poderíamos realmente dizer que Deus está no controle absoluto de tudo, enquanto ele mesmo, por nossa causa, limita o seu controle? Como ele se sentiria totalmente no controle quando nos dá o livre arbítrio e, por outro lado, tem a consciência plena de tudo o que podemos fazer com este dom? Como Deus não se sentiria no controle quando é capaz de converter em bem todo o mal que fazemos, como também todo o mal que pode acontecer conosco e ao nosso redor? Eu sei de antemão que é difícil para nós aceitarmos estas questões, principalmente quando temos a certeza de que imediatamente aparecerá alguém para dizer: Se Deus está no controle absoluto, por que ele não faz isso melhor? Por que deixa que coisas ruins aconteçam?

Esta não é um dúvida dos outros, ela também é nossa na medida em que não aceitamos integralmente as três verdades absolutas sobre Deus: ele é onipotente, tem todo o poder; ele é onisciente, sabe todas as coisas; ele é gracioso, seu amor não tem limite. Invariavelmente caímos na tentação de sacrificar um desses pilares que sustentam a nossa fé, porque achamos que é mais fácil tentar entender o que está acontecendo conosco ou em nosso mundo. Se Deus é todo amor, todo poder e todo conhecimento por que ele não faz a coisas que mais precisamos? Essa dúvida prevalece simplesmente porque não conseguimos suportar o que Deus faz conosco para nos tirar da dúvida criativa e nos levar à confiança consciente. Por isso ficamos titubeando entre o poder e o conhecimento de Deus, quando na verdade a resposta está no seu amor. É o seu amor que impulsiona o uso da sua onipotência e da sua onisciência no seu controle sobre todas as coisas e pessoas. O que ele faz com todo o seu poder e com todo o seu conhecimento é condicionado pela sua decisão de nos amar e nos salvar incondicionalmente. Ele nos quer de volta, ele quer nos perdoar, ele quer nos salvar e tudo que ele faz tem por meta a decisão de nos tornar pessoas saudáveis e maduras.

Grandeza de caráter, grandeza de personalidade não são produtos de uma vida cômoda, ou de uma vida tranquila. O caráter não nasce de situações pacíficas, mas sim da turbulência da guerra interior que travamos com o nosso egoísmo. Deus usa todas as coisas ruins que fazemos a nós e aos outros para nos levar a uma confiança mais profunda nele, para nos assegurar que a nossa dependência dele é o melhor para as nossas vidas. As suas intervenções são ajustadas perfeitamente para nos ajudar, sem, contudo, negar a nossa liberdade.

Temos tentado evitar esse paradoxo entre o poder de Deus e a nossa liberdade optando por um dos lados. Temos sido moles demais ou duros demais com a nossa consciência, mas a verdade é que Deus nos dá liberdade conhecendo exatamente como somos e o que podemos fazer com ela, mas não há alternativa. Podemos ser fantoches ou pessoas, é um ou outro. Por causa do seu amor, Deus deseja que o amemos, mesmo com todo o perigo do mau uso da nossa liberdade de errar e pecar, antes de amá-lo de todo o coração. O que mais deveríamos pedir no dia de hoje é que ele não nos deixe sozinhos no uso da nossa liberdade, e assim vamos saber quem está realmente no controle da nossa vida e no destino do mundo.

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O que é ÍDOLO?

Adoração de ídolos, iluminura do século XIV, França
A Bíblia é a história do povo de Deus tentando se desvencilhar da tentação de adorar ídolos a partir do dia que Deus tomou Abraão, que servia a outros deuses. Mas essa com os ídolos ruptura, embora radical, não foi uma coisa adquirida de uma vez; os seus descendentes consanguíneos e na fé deverão sempre
tornar a repeti-la, deverão sempre renovar sua fidelidade ao Eterno em vez de seguir a vaidade, que era o nome que Jeremias dava aos ídolos. Mas o erro da idolatria não está apenas em seguir outros deuses, mas sim em reverenciar os ídolos, e isso acontecia dentro do próprio Judaísmo, como também pode acontecer no Cristianismo. Desde o Decálogo Israel aprende que não deve fabricar imagens para adorá-las, principalmente imagens humanas, pois só o homem em carne e osso é a imagem de Deus. Esculpia-se um touro para simbolizar o aspecto da virilidade divina, como se este fosse um dos atributos imprescindíveis de Deus, e isso era motivo da chacota dos profetas: Agora, pecam mais e mais, e da sua prata fazem imagens de fundição, ídolos segundo o seu conceito, todos obra de artífices, e dizem: Sacrificai a eles. Homens até beijam bezerros! (Os 13,2) Quer se trate de falsos deuses ou da sua própria imagem a idolatria não era tolerada pelo Deus de Israel, e este os deixava à própria sorte, retirando do meio do povo o seu Espírito.

Quando o exílio vem confirmar esta história de idolatria, o povo volta a cair e si, mas ainda assim não desaparecem os idólatras nem os zombadores de Deus: Pois o perverso se gloria da cobiça de sua alma, o avarento maldiz o Senhor e blasfema contra ele. O perverso, na sua soberba, não investiga; que não há Deus são todas as suas cogitações. (Sl 10.3s) No judaísmo tardio, no tempo dos macabeus, servir aos ídolos do helenismo era aderir a um humanismo incompatível com a fé que Deus esperava do seu povo: até muitos israelitas adotaram a religião oficial e profanaram o sábado. (IMc 1,43), era preciso fazer a terrível escolha entre adorá-los ou ser martirizado: Qualquer que se não prostrar e não a adorar será, no mesmo instante, lançado na fornalha de fogo ardente. (Dn 3,6)

O Segundo Testamento também tem este mesmo perfil, onde os cristãos são confrontados com a adoração de ídolos e são permanentemente tentados a cair no paganismo que impregna a vida cotidiana. É preciso fugir da idolatria para entrar no Reino: Que ligação há entre o santuário de Deus e os ídolos? Porque nós somos santuário do Deus vivente, como ele próprio disse: Habitarei e andarei entre eles; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. (IICo 6.16)

A adoração aos ídolos tem encontra um divisor de águas em Jeremias. Antes dele, era pecado adorar outros deuses, porque Israel admitia a existência deles, mas depois deste profeta, a maldição era adorar falsos deuses, pois o Deus de Israel era o único e verdadeiro Deus. Embora não existindo, esses ídolos tinham poder. Não o poder divino e bom, mas o poder humano e mau. O enfoque dos profetas muda a partir da incoerência de se adorar imagens que nada podem fazer, nem por si mesmas, pois precisam ser carregadas, alimentados e guardadas. Os profetas satirizam aqueles que adoram a criatura em vez de adorar o criador. É um fruto mortífero, pois mesmo que sejam inócuos, fazem o povo se afastar da Fonte da Vida. Divinizar defuntos, personagens de prestígio ou adorar as forças da natureza é apenas o começo de toda essa perversão espiritual que leva o homem a se afastar de Deus.

Paulo vai ainda mais longe quando diz que estes trocaram a glória de um Deus incorruptível por uma mera representação dele: Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis. (Rm 1.20) A idolatria não é um erro superável de uma vez por todas, ela renasce sob diversas formas. A partir do momento que cessa o seu serviço a Deus, a pessoa torna-se escrava de toda espécie de senhores, seja o dinheiro, o vinho, a cobiça ou o poder. Tudo isso leva à morte, porque atrás do vício da idolatria esconde-se o desconhecimento de um Deus que não é apenas único, mas o único ser capaz de ser inteiramente merecedor da nossa fidelidade e confiança.

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O que é APÓSTOLO? III

Apóstolo Paulo, Rembrandt em 1633
A missão apostólica entre os gentios, ou não judeus, teve em Paulo uma nova dimensão e estratégia, pois, entre os povos pagãos, ele deveria ser o embaixador de Cristo. Quando Paulo repete com insistência em Rm 1,1 e Gl 1,15 que foi chamado para ser apóstolo através de uma visão apocalíptica de Jesus, quer deixar claro que uma vocação particular deu origem à sua missão. Ele não credita o seu chamado nem mesmo aos doze: Somos embaixadores por Cristo; é como Deus exortasse por nosso
intermédio. (IICo 5,20), mas diretamente a Deus: A palavra que vos pregamos não é palavra de homens, mas palavra de Deus. (I Tm 2,13) Felizes são aqueles que o acolheram, pois um apóstolo é cooperador de Deus. E não somente isso, mas através deles se realiza o ministério da glória escatológica: Porque, se o ministério da condenação foi glória, em muito maior proporção será glorioso o ministério da justiça. (II Co 3.9) Mas para que o embaixador não se desvie para si esta glória e dela tire proveito, o apóstolo é um homem desprezado pelos homens, perseguido e constantemente entregue à morte, para que a morte dele produza vida aos homens: Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida. (II Co 4.11s)
 A autoridade apostólica é exercida basicamente nas questões doutrinárias, e Paulo apela diversas vezes para a sua autoridade para excluir qualquer outra doutrina que não se baseie no evangelho que ele, Paulo, pregou: Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. (Gl 1.8) Seu status lhe dá também o direito de legar a outros essa autoridade, como quando ordena Timóteo ao santo ministério, impondo-lhe as mãos, gesto que Timóteo também deverá executar com o máximo critério: A ninguém imponhas precipitadamente as mãos. Não te tornes cúmplice de pecados de outrem. Conserva-te a ti mesmo puro. (I Tm 5.22) O ministério de Paulo está restrito às igrejas que fundou e às igrejas que lhe foram confiadas, o que faz com que seu apostolado tenha uma jurisdição. Sobre estas igrejas ele julga e determina sanções: E dentre esses se contam Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem. (ITm 1.20), mas sobre as igrejas que não fundou, faz apenas sugestões: Porque muito desejo ver-vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais confirmados, isto é, para que, em vossa companhia, reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé mútua, vossa e minha. (Rm 1,11s)

Essa autoridade não é a autoridade de um tirano: Não que tenhamos domínio sobre a vossa fé, mas porque somos cooperadores de vossa alegria; porquanto, pela fé, já estais firmados. (II Co 1,24), pois ela mais do que um privilégio é um serviço: Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. (ICo 9.19) de um pastor: Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue. (At 20.28), que deve estar pronto a renunciar os seus direitos em nome do evangelho: Se outros participam desse direito sobre vós, não o temos nós em maior medida? Entretanto, não usamos desse direito; antes, suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo. (I Co 9.12), e longe de ser oneroso aos fiéis: Nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor e fadiga, de noite e de dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós. (IITs 3.8), quer-lhes bem como um pai ou uma mãe e lhes dá bons exemplos de fé: Não porque não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos exemplo em nós mesmos, para nos imitardes. (IITs 3.9) (continua)

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O que é APÓSTOLO? II

A morte de Simão, o mago,
crônicas de Nurembreg, 1493
Contudo, se são doze o número dos apóstolos, o apostolado da igreja deve ser entendido de maneira mais ampla, pois ela é uma igreja iminentemente apostólica, isto é, não se limita a ação dos doze apóstolo escolhidos por Jesus. A função precípua dos apóstolos de Jesus era multiplicar a sua presença, a sua ação e a sua palavra. Agindo deste modo, os doze comunicaram a toda igreja não o privilégio de ser testemunha ocular, pois este era intransmissível, mas responsabilidade de, mesmo sem terem presenciado o fato, ser testemunhas do ressuscitado. A presença de Jesus permanente na igreja conserva um vínculo especial que dá continuidade não o título, mas a missão apostólica: Por isso, santos
irmãos, que participais da vocação celestial, considerai atentamente o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão, Jesus. (Hb 3,1)

Na sua vida pública, durante três anos, Jesus abriu caminho para a extensão da missão apostólica, primeiramente aos doze, depois a setenta: Depois disto, o Senhor designou outros setenta; e os enviou de dois em dois, para que o precedessem em cada cidade e lugar aonde ele estava para ir. Então, regressaram os setenta, possuídos de alegria, dizendo: Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome! (Mt 10.1 e 17), para finalmente designá-la a todos os que nele cressem: Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. (Mt 28.19), com o mesmo objeto da missão dos doze e com o mesmo caráter oficial: Quem vos ouve me ouve, quem vos rejeita me rejeita e quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou. (Mt 10.40s)

Na eleição de Matias, não fica clara a intenção de se escolher mais um apóstolo para o lugar deixado por Judas Iscariotes, e sim mais uma testemunha dentre os que andaram com Jesus para compor o número doze, pois o mesmo livro que narra esta escolha, o dos Atos dos Apóstolos, confere a Barnabé o posto, com o mesmo renome e autoridade conferida a Paulo: A Barnabé chamavam Júpiter, e a Paulo, Mercúrio, porque era este o principal portador da palavra. Porém, ouvindo isto, os apóstolos Barnabé e Paulo, rasgando as suas vestes, saltaram para o meio da multidão, clamando: (At 14.12 e 14)

Além dessas escolhas, temos também outros sete que foram escolhidos para funções basicamente de cunho administrativo, como a divisão dos alimentos entre os carentes da igreja, os chamados diáconos.  Alguns, pela excelência reconhecida do seu serviço, foram chamados de presbíteros: Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço. (At 6.3) Estes sete, mesmo tendo sido chamados para funções burocráticas, também fundaram e dirigiram igrejas, embora fossem os seus poderes limitados pelos apóstolos: Filipe foi até a capital da Samaria e anunciava Cristo às pessoas dali,... Os apóstolos, que estavam em Jerusalém, ficaram sabendo que o povo de Samaria também havia recebido a palavra de Deus e por isso mandaram Pedro e João para lá. (At 8.5 e 14)

O apostolado, como representação oficial de Jesus ressuscitado, fica, deste modo, para sempre fundamentado sobre o colégio dos doze apóstolos. No entanto, a função apostólica da pregação da palavra e do testemunho através da fé dos que não viram e creram, deve ser exercida por todos os cristãos, aos quais, através de uma longa cadeia de fidelidade apostólica, chegou também até nós íntegra e isenta de acordos e conchavos, pois quem tentou este artifício no passado se deu mal: Simão viu que, quando os apóstolos punham as mãos sobre as pessoas, Deus dava a elas o Espírito Santo. Por isso ofereceu dinheiro a Pedro e a João, dizendo: — Quero que vocês me deem também esse poder. Assim, quando eu puser as mãos sobre alguém, essa pessoa receberá o Espírito Santo. Então Pedro respondeu: — Que Deus mande você e o seu dinheiro para o inferno! Você pensa que pode conseguir com dinheiro o dom de Deus? (Mt 8.18-20) (continua)



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O que é APÓSTOLO? I

Doze apóstolos, portal da Igreja Sta Maria Olite, Espanha
No Segundo Testamento muitos receberam o título de apóstolo, porém, os mais conhecidos são os onze que andaram com Jesus, Matias, o apóstolo eleito e Paulo, que chamava a si mesmo de apóstolo abortivo: Depois, foi visto por Tiago, depois, por todos os apóstolos e, por derradeiro de todos,
me apareceu também a mim, como a um abortivo. (ICo 15.7s), mas que acabou conhecido como o apóstolo dos gentios. O apostolado na igreja primitiva era tido como um dos carismas dados por Deus para orientar a Igreja: E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres. (Ef 4.11). Mas já naquela época foram denunciados também os falsos apóstolos e os superapóstolos: Eu estou agindo como um louco, mas foram vocês que me obrigaram a isso. Porque vocês é que deviam falar bem de mim. Pois, mesmo que eu não valha nada, não sou inferior, de modo nenhum, a esses tais “superapóstolos” de vocês. O emprego tão amplo deste título suscita o problema da relação entre estes diversos tipos de apóstolos. Para resolvê-lo, na falta de uma definição bíblica do apostolado, é preciso situar em seus respectivos lugares os diferentes personagens que receberam este título, começando pelo levantamento das indicações concernentes ao termo e à função fora do contexto cristão.

O substantivo apóstolo não tem no grego o sentido que lhe damos, mas o verbo derivado dele exprime bem o seu conteúdo e se esclarece nas analogias que temos no Primeiro Testamento e nos costumes judaicos. Eles usavam a palavra para designar um dos atributos dos embaixadores, que devem ser tão respeitados como o rei que os enviou. Embora os profetas tivessem sido enviados pelo Rei dos reis, nunca receberam este título. Paulo antes da conversão, ou Saulo, confia as suas cartas às sinagogas de Damasco a um apóstolo oficial, munido de documentos oficiais: Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote  e lhe pediu cartas para as sinagogas de Damasco. (At 9.1s) A igreja herdou este costume de enviar cartas através de apóstolos, como Barnabé, Silas e o próprio Paulo, que são os apostoloidas igrejas cristãs. Todos, porém, muito conscientes da sua submissão à igreja, nos termos que determinou Cristo, que o enviado (apóstolo) nunca seria maior do que aquele que o enviou. A julgar pelos costumes da época, o apóstolo não é mais do que um emissário a quem se delegou uma mensagem. A igreja antes de dar a alguém este título, dava a este uma função subalterna, e somente após a uma lenta evolução é que este título foi conferido de maneira privilegiada ao estreito círculo dos doze. Mas observa-se também que outros exerceram a função chamada de apostólica.

Desde o início da vida pública de Jesus, a necessidade de divulgar a sua mensagem fez com que ele escolhesse homens que representassem ele mesmo, tanto na pregação do evangelho, como nas curas e nos exorcismos. Envia-os investidos de autoridade na função de falar em seu nome, como se estes representassem também o próprio Deus:Quem vos recebe, recebe a mim, e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. (Mt 10.40) Estes serão o fundamento do Novo Israel do qual serão juízes no último dia: Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. (Mt 19.28) Não é a toa que o número doze simboliza o apostolado, por isso a necessidade de se eleger outro para o lugar de Judas.

Os doze deverão ser testemunhas de Cristo e atestar com a própria vida a sua ressurreição. Para tanto, atestar que o Cristo ressuscitado é exatamente o mesmo com o qual viveram por três anos, é um atributo que confere o título apenas àqueles que foram chamados pelo próprio Jesus, ou seja aos quais se pode aplicar o sentido mais forte da palavra apóstolo. Distribuir os pães multiplicados pela multidão que está faminta no deserto, todos somos chamados a fazer, mas para ser os pilares sobre os quais a igreja se fundamenta, e ter os seus nomes escritos neles, a Bíblia diz que somente eles: A muralha da cidade tinha doze fundamentos, e estavam sobre estes os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro. (Ap 21.14) (continua)

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A mensagem da manjedoura

Presépio vivo de Francisco de Assis, Gozzoli em 1542
E isso vos servirá de sinal: encontrareis uma criança, envolta em trapos e deitada em um coxo de estábulo.

Soa totalmente estranho ter que anunciar para este mundo louco por poder que a existência real e concreta do ser humano nesta vida se fundamenta no amor. Soa mais estranho ainda ter que pregar para uma civilização que, em sua história jamais viveu um único dia sem guerra, que o que funciona
de fato é a paz e a boa vontade entre os homens. Mas será que existe alguém que não sabe que a essência da vida é amor e que a nossa relação com as pessoas deve ser de paz e não de guerra? É justamente por este motivo que todos nós estamos sob julgamento. É exatamente por sabermos dessas coisas que estamos sofrendo tanto. Este nosso sofrimento não faz outra coisa senão confirmar que esta realidade que estamos vivendo não é a realidade que deveríamos viver, ou seja, sofremos porque sabemos que deveríamos viver dando ênfase ao amor e à paz, mas, de modo adverso, enfatizamos o poder e à guerra. O que existe de mais intrigante é que a época do Natal realça este sentimento de tristeza pela nossa incapacidade de não fazer o que gostaríamos, e sim o que não gostaríamos de fazer. Mesmo sendo assim, existem muitos de nós que ainda creem que em um estábulo de uma aldeia insignificante no passado distante, Deus nos deu uma mensagem de esperança. O que será que Deus quis nos dizer com aquele nascimento?

Ele disse que o gentil, que o bondoso, o manso, o humilde e que o misericordioso vai prevalecer sobre o egoísta, sobre o orgulhoso e sobre o poderoso neste mundo presente. Deus está dizendo que no centro do universo criado por ele não há lugar para riqueza, nem para o poder, muito menos para o prestígio, mas somente para o amor compartilhado. Daquela manjedoura surge a mensagem que Deus está revelando a cada um de nós que a balança do universo não pende para o lado da força do poder, como parece, mas sim na força do amor. É na mensagem que afirma que no momento exato e no lugar perfeito Deus agiu, que aquelas pessoas citadas anteriormente mantém a sua esperança. Para estes, esta é a realidade que prevalece, não somente na época do Natal, mas em todos os dias de sua vida. É isso que as faz diferentes, é isso que as faz tão seguras de si, é isso que as faz abandonar todas as certezas desse mundo para abraçar esta realidade que somente eles veem.

Não é esta a hora e nem é este o local para enumerá-los, mas sabemos que para cada momento crucial da nossa história Deus providenciou um homem ou uma mulher que tentou desesperadamente mostrar ao mundo que a realidade era o sonho e não o que as pessoas estavam vivendo. Para nos mostrar que é possível, ou melhor, é inescapável esta realidade, porque eles e elas creem que a palavra final não está com o mundo, mas sim com o criador do mundo. Cabe a cada um de nós, pelo menos uma vez na vida, tentarmos experimentar o Natal da mesma forma que os visionários da nova realidade fizeram, se não conseguimos, precisamos orar assim:

Pai, assim como o Senhor agiu da maneira certa naquela noite, faça um milagre na nossa vida, faça nascer em nós esta esperança de amor e de paz, a despeito de tudo que somos e de tudo que fazemos para negar insistentemente esse amor e essa paz. Faça um milagre nas nossas casas, na nossa cidade, no nosso país, no nosso mundo para que passemos a crer na mensagem daquela manjedoura, para que o teu Filho não tenha nascido apenas em Belém da Judeia, mas que ele nasça também em nossos corações e em nossos relacionamentos, para que a história da nossa vida não seja uma história de tristeza pelo que não deveríamos ter feito, mas de alegria por termos tentado fazer o que a manjedoura nos constrangeu fazer.




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A mensagem da estrela

Adoração dos magos, Andrea Mantegna
Leiam Mateus 1.1 a 2.14 
O coração da mensagem do evangelho é a imagem de um Deus que age. Esta é também a mensagem da Bíblia toda, que diz que a iniciativa de todos os eventos pertence a Deus. A mensagem é esta: Deus estava em Cristo Jesus, e através deste fez o mundo conhecer a sua vontade, que é agir de antemão para redimir todo o mundo. Geração após geração o ser humano tentou cruzar o abismo que o separava do seu Criador. O abismo criado pela nossa
rebeldia em permanecermos separado dele. Todos os seres humanos tem a concepção de uma consciência superior que habita em um lugar desconhecido. Então, como podemos nos comunicar com este ser? Ele parece estar tão longe e parece ser tão diferente de nós que fica difícil entendê-lo, e até mesmo falar com ele. Aí está o centro da mensagem cristã: Deus fez algo para resolver este problema. Deus colocou uma ponte para cobrir a torrente tumultuada da história e sobre a inconsequência da natureza humana que preenchia a distância entre nós e ele. Ele é quem tomou a iniciativa para chegar até nós. Deus nos tem dado um sinal. Deus nos tem dado a mensagem de que ele nos ama, que ele nos quer de volta. Em Cristo ele nos dá a mensagem de que ele está conosco.

Nós não somos mais perdidos, distantes e nem sozinhos, mas agora nós somos salvos. Na verdade, ele sempre quis dizer isso para uma humanidade que sempre achou que ele nos quer mal, que ele quer nos castigar e nos mandar para o Inferno. Para nós que sempre achamos que Deus é contra nós, Deus fez todo o possível para mostrar que ele é por nós, a prova disso é o Natal, que nos mostra o caminho da liberdade e da responsabilidade. Deus quando enviou a estrela de Belém para guiar os magos, quis muito mais que mostrar a eles o caminho até o Salvador. Com esta estrela ele determinou também o fim da magia, o fim do poder dos magos, dos feiticeiros, dos agoureiros e dos adivinhos sobre a humanidade. Ainda hoje nós podemos observar um pouco do que era esse poder. Até o nascimento de Cristo, as religiões do mundo, principalmente as religiões do oriente, tinham dominado a vida humana com uma mortalha de fatalismos. Tudo estava determinado e ao homem bastava apenas seguir o que havia sido traçado para ele. A crença predominante é que o destino de todas as pessoas estava previamente escrito nas estrelas na hora do seu nascimento. E esta crença ainda existe entre nós. Basta abrir um jornal e ler o que alguém vai lhe dizer como será o seu dia e o seu destino baseado no seu horóscopo. É a crença que as nossas vidas são manipuladas por forças além do nosso controle. É a negação da nossa liberdade e da nossa iniciativa.

Foi justamente num mundo assim que a estrela de Belém brilhou. Ela não foi uma estrela qualquer que teve um dia de esplendor além da sua normalidade. Ela não fez o que estava escrito para ela fazer, mas fez o que o Deus Eterno mandou que fizesse naquele dia, naquela hora. Ela não estava no céu por um mero acaso, mas sim guiada pela sabedoria e pela providência divina. O seu brilho exuberantemente anormal veio revelar que a nossa dependência das estrelas e dos planetas simplesmente acabou de repente. De repente a estrela revelou Deus como único soberano sobre os dois mundos: o das estrelas e planetas e do mundo dos homens. Como consequência disso nós somos libertados da escravidão fatalista e supersticiosa pela iniciativa de um Deus que age antecipadamente em nosso favor.

Nesta liberdade ele está sempre nos guiando à responsabilidade. Sempre somos chamados a ir onde nós não queremos ir. Vocês acham que os magos imaginavam que um rei nasceria em um lugar que não fosse um palácio? Essa é a mensagem da estrela mais difícil de entender: Deus nos guia aonde nós não queremos ir. Um exemplo disso é quando chegamos à igreja com o nosso idealismo em louvar a Deus e ouvir um belo sermão, mas cedo ou tarde vamos entender que a estrela está nos guiando para o lugar onde o povo sofre, onde está preso, onde está faminto. O texto de Mateus é bem diferente da realidade de Lucas. Ele mostra pessoas iguais a nós, pessoas como os magos, que andavam tropeçando nas suas crendices, nas suas convicções e nos seus idealismos. Nós, assim como os magos, somos usados apesar de todas as nossas imperfeições, tudo porque vimos aquela estrela. Ela nos tem guiado, apesar de tudo que somos, até às nossas responsabilidades. Ela nos tem guiado ao coxo infectado e sujo, e não aos palácios.

A estrela brilha para nos mostrar a realidade deste mundo, e para mostrar que o nosso caminho é outro muito diferente do que aquele que gostaríamos que fosse. A mensagem da estrela nos diz que somos livres, está certo, mas que esta liberdade tem o preço e o tamanho da nossa responsabilidade.










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O que é FÉ? III

Abraão e Sara, James Tissot
Nos escritos joaninos a palavra fé é encontrada apenas uma vez, em I João 5.4: Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. O verbo crer, sim, é usado frequentemente por ele, mas o objeto da fé não é Deus, mas Jesus Cristo. Para este escritor bíblico
a fé é o entendimento da verdade revelada, por isso preciso crer que Jesus é o Messias enviado do Pai, que ele é o Filho de Deus, que ele está em Deus e Deus nele, e que ele é o único mediador entre Deus e os homens. A fé que é aprovada pelo intelecto faz o homem se entregar totalmente, pois crer é estar em Cristo e recebê-lo como uma dádiva: Quem procede lealmente se aproxima da luz, para que se manifeste que assim procede porque é movido por Deus. (Jo 3.27) Quem não está em Cristo não está na luz e foge dela, pois ela delataria a sua maldade: Quem age mal detesta a luz e não se aproxima da luz, porque esta manifesta a sua maldade. (Jo 3.26) E esta é a sentença que paira sobre todos os que não creram: A luz veio ao mundo e os homens preferiram as trevas à luz. (Jo 2.25)

Para João a fé em Cristo inclui uma progressão no conhecimento da verdade e um amor eficientemente benéfico, tal como Jesus: Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele, verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. (I Jo 2.5s) Estar ligado a Cristo é não identificar onde termina o conhecimento e onde começa a fé, pois ambos estão tão intimamente ligados que são quase idênticos: Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus. (Jo 6,69) A incredulidade, no entanto, é um pecado que traz a morte e a condenação: Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo: do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e não me vereis mais; do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado. (Jo 16.8-11) O homem pode chegar a fé em Cristo, tanto pelos milagres que ele operou durante o seu ministério terreno: Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. (Jo 2.11), ou por causa da realização das profecias: Quando, pois, Jesus ressuscitou dentre os mortos, lembraram-se os seus discípulos de que ele dissera isto; e creram na Escritura e na palavra de Jesus. (Jo 2.22) Mas pode chegar a ter essa fé também através da leitura e compreensão das Escrituras, pois elas dão testemunho dele, e esta é a maneira mais perfeita e aceitável por Deus. Os que viram os milagres creram, mas os que não viram são mais bem aventurados, pois não viram e ainda assim creram.

No entanto, não é de Paulo e nem de João que vem a melhor definição de fé em toda a Bíblia, e sim do identificável autor da Carta aos Hebreus: Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem. Teólogos renomados ainda discutem a tradução da palavra grega que foi traduzida por certeza. Para muitos, esta deveria ser traduzida firme fundamento, porque, segundo eles, a fé não tem origem nas nossas convicções, mas na Palavra de Deus. A nossa certeza pode contemplar várias coisas, como ganhar na loteria ou receber a herança de um parente até então desconhecido, mas estas certezas não são oriundas da fé. Aprouve Deus, pela sua incomensurável sabedoria, retirar do desconhecido algo que, embora não tenha a pretensão de esgotar o entendimento sobre a fé, a melhor explanação da fé, para que esta não seja deste ou daquele apóstolo, mas que ela seja propriedade autoral da sua igreja.

Portanto a fé é um ato da vontade livre, bem como do intelecto, e depende da predisposição moral do homem, mas acima de tudo é um dom de Deus, pois ninguém vem ao Filho a não ser que o Pai o atraia. Reconhecer que as palavras e atos de Jesus são palavras e atos do próprio Deus é reconhecer explicitamente pela fé que estas palavras e atos um dia foram fatos, que elas foram narradas por uma cadeia de homens e mulheres de fé, e que chegaram a nós, que, sob influência da fé, somos testemunhas fidedignas do evangelho. 

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O que é FÉ? II

Sacrifício de Isaque, Giambattista Pittoni (1687-1767)
Para Paulo ter fé é aceitar as boas novas de salvação que o evangelho traz e crer na doutrina que é pregada pelos apóstolos: Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo.
(Rm 10.17) Crer nisso significava tornar-se um cristão, pois esta é a fé que foi exigida aos antigos, a fé que crê que Deus é fiel às suas promessas e poderoso para realizá-las. Contudo, a fé em Paulo tem um ingrediente a mais: crer no amor incomensurável de Deus, que, juntamente com o seu Filho, nos dá todas as coisas: Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? (Rm 8.32) A fé em Cristo implica também em crer que ele é o Messias prometido, o Filho que Deus que, pelo poder do Pai, venceu a morte e que há de voltar glorioso para julgar os vivos e os mortos. Assim como no Primeiro Testamento, a fé é um esforço do intelecto fundamentado na Palavra de Deus e não na contemplação dos fatos e circunstâncias: Visto que andamos por fé e não pelo que vemos. (IICo 5.7)

Com essa fé ressurge uma nova esperança, aliás, fé e esperança são frequentemente mencionadas juntas por este apóstolo: Porque nós, pelo Espírito, aguardamos a esperança da justiça que provém da fé. (Gl 5.5) A Palavra de Deus contém promessas e crer nessa Palavra inclui necessariamente confiança e esperança em Deus. Assim, crer torna-se um ato de boa vontade e de obediência para com a boa nova da salvação. Crer é também ser obediente à fé: Agora, se tornou manifesto e foi dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus eterno, para a obediência por fé, entre todas as nações. (Rm 16.26) Demanda em ser obediente à economia da salvação inaugurada por Cristo.

A fé, no entendimento de Paulo, exige também o amor afetivo como resposta ao amor de Deus: Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão tem valor algum, mas a fé que atua pelo amor. (Gl 5.6) É através deste amor que o homem se entrega livre e inteiramente a Cristo, e é este o amor com que deve amar o próximo, ainda que este amor não seja recíproco e ainda que seja rejeitado. Este apóstolo diz também que a fé vem pelo ouvir: Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? Mesmo assim, a fé é um dom, posto que a pregação fornece a ocasião, mas o efeito é dado pelo Espírito, em uma forma de atuação que Paulo chamou de graça. Aqui há um mistério, pois a mesma fé que transporta montes, que traz a existência o sobrenatural e que propicia a fazer grandes coisas, inclusive milagres, está na relação de Paulo de carismas ou dons que o Espírito de Deus concede aos homens.

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O que é FÉ? I

Abraão e os anjos, Rembrandt
A palavra traduzida por no Primeiro Testamento vem do hebraico ãman que significa ter ou sentir firmeza, e esta é a atitude que se deve ter perante Deus. Supõe um consentimento da inteligência, mas consiste, principalmente, no reconhecimento de Deus, em tudo o que ele é para o homem, pelo seu amor,
seu poder e suas exigências. Senhor, na angústia te buscaram; vindo sobre eles a tua correção, derramaram as suas orações. (Is 26.16) Neste Testamento, obediência e confiança estão no primeiro plano em tudo o que se refere a ter fé, e todas as atitudes contrárias significam negar, ou desprezar a Deus, ou ainda ser rebelde à sua Palavra. Todas as expressões de fé cantadas nos salmos, exaltada pelos sábios e pregada pelos profetas tem como referência Gênesis 15.6, que diz: Abraão creu no Senhor e isso lhe foi imputado como justiça. Abraão é considerado o pai da fé justamente porque acreditou sem hesitação nas promessas de Deus, e esperou nele contra toda a esperança, é o que conclui Paulo em Rm 4.18: Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações, segundo lhe fora dito: Assim será a tua descendência. Sem esta fé prenhe de esperança e de confiança o povo de Deus não tem como subsistir como um povo justo, porque o justo vive pela sua fé: Entretanto, a capital de Efraim será Samaria, e o cabeça de Samaria, o filho de Remalias; se o não crerdes, certamente, não permanecereis. (Is 7.9)

O Judaísmo teve que enveredar pelo lado intelectivo da fé para conseguir sobreviver em um mundo totalmente helenizado como também lutar contra a apostasia que campeava em Israel influenciada diretamente pelas religiões pagãs dos povos vizinhos. A fé em um Deus único que após a morte pune os incrédulos e recompensa fielmente os justos torna-se o modelo de perfeição para todos os verdadeiros filhos de Abraão. É por esta virtude que os crentes em Deus se distinguem dos ímpios e dos incrédulos. Curiosamente por estas mesmas razões o Judaísmo viria a se tornar uma religião de rituais repetitivos e práticas de atitudes rígidas do que propriamente uma religião de fé, daí esta palavra só ser citada neste testamento uma única vez, pelo profeta Habacuque.

No Segundo Testamento a palavras pistis (fé) é muito mais frequente. Encontramos, pelo menos, duzentas e quarenta citações em seus vinte e sete livros, e pelo menos uma vez na maioria destes. Nos evangelhos Jesus exige que se tenha fé no seu poder para se alcançar uma bênção esperada: Mas Jesus, sem acudir a tais palavras, disse ao chefe da sinagoga: Não temas, crê somente. (Mc 5.36) Da mesma forma que e fé opera milagres, a falta dela impede que eles aconteçam: Não pôde fazer ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. (Mc 6.5) Embora a fé tenha Deus como foco, para os evangelistas ela está mais intimamente relacionada com a missão de Jesus Cristo, em quem o poder de Deus mais visivelmente se manifesta com intensidade, frequência e de uma forma inexplicável e inédita, até então. Jesus, ao fazer uma pesquisa acerca do que o povo pensava sobre a sua pessoa, indagou os seus discípulos, e isso se tornou uma oportunidade para que eles confessarem a sua fé nele: Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou? Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. (Mt 16.16)

A fé confirmou-se e desenvolveu-se na igreja primitiva em pequenos núcleos de pessoas que atravessavam juntas uma mesma crise, a queda de Jerusalém e a destruição do templo; experimentavam uma única esperança, a confirmação das promessas de Deus que se realizaram na vinda do Messias, e a sua consequente redenção. Desde então se tornou necessário ter fé em um único Deus, e este é o único ponto de aproximação com o Judaísmo, divergindo dele imediatamente, porque tem Cristo como autor e consumador desta fé. Por outro lado, a fé em Cristo é o distintivo de todo cristão, principalmente aqueles que se dão o nome de crentes, uma expressão de fé que nada tem a ver com o atual termo evangélico, pois o real sentido desta fé não é individual, e sim manifestada através de uma comunidade de crentes.

A fé também se tornou um elemento novo e indispensável para a adesão ao movimento iniciado por Jesus. E é pela fé que os que antes estavam excluídos se tornaram também herdeiros das promessas feitas a Abraão. Ser povo de Deus e descendência deste patriarca não é mais uma questão de consanguinidade, mas sim de acreditar em Deus da mesma forma que ele, e manter a esperança, quando todas as esperanças falharem. Ter fé é ultrapassar o limiar crítico de tudo que se vê, de tudo o que se sente e de tudo que as circunstâncias apontam. (continua)

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O que é PENITÊNCIA?

Penitência de Davi, ilustração do século X
As sagradas Escrituras não contém uma palavra apropriada para o nosso conceito de penitência, quando a associamos ao conceito de ações externas que acompanham o arrependimento e à conversão. Contém sim atitudes de contrição que podem ser inspiradas pela consciência pessoal ou um ato da comunidade. No Primeiro Testamento os aspectos essenciais de tais atitudes são: a confissão de pecados e
a oração de pesar e pungimento. A lei judaica prescreveu penitências para todos os tipos de pecados, desde os involuntários até os pecados nacionais. Uma confissão geral de pecados era formulada pelo sumo sacerdote no Dia da Expiação coletiva.

Existiam também os chamados salmos penitenciais, que confessam abertamente a culpa do seu autor e suplicam o perdão ainda que imerecido: Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar. (Sl 51.4) Encontramos orações penitenciais também na literatura bíblica mais recente, tanto nos textos canônicos: Atenta do céu e olha da tua santa e gloriosa habitação. Onde estão o teu zelo e as tuas obras poderosas? A ternura do teu coração e as tuas misericórdias se detêm para comigo!, como nos textos deuterocanônicos: nós pecamos, agimos impiamente, temos sido injustos, ó Senhor nosso Deus, contra todos os teus mandamentos. Afaste-se de nós a tua ira, porque não somos mais do que um resto no meio das nações para onde nos dispersaste.( Br 2.12)

Mas não era só em palavras que a penitência era manifesta. Ela também se expressava através de atos, como: chorar, jejuar, vestir sacos, rasgar as vestes, cobrir a cabeça com cinza ou sentar-se nela, até os mais desesperados, como arrancar os cabelos ou a barba. Ouvindo eu tal coisa, rasguei as minhas vestes e o meu manto, e arranquei os cabelos da cabeça e da barba, e me assentei atônito. (Ed 9.3) Encontramos também referências à penitência expressada através costumes pagãos, como fazer lacerações no próprio corpo. Mas o mais comum era apresentar a confissão e a consequente penitência através de esmolas e obras de caridade.

Havia uma diversidade tão grande de formas e práticas que o indivíduo ficava sem base para um sentimento profundo de arrependimento pessoal e sem a consciência da necessidade do perdão. Todos esses atos caíam no vazio, e seu conteúdo era tão inexpressivo que os profetas reagiram severamente a eles. Foram incansáveis e demonstraram toda a sua intolerância quando afirmaram que a essência da atitude penitente era a obediência irrestrita aos mandamentos de Deus, que se manifestavam através da justiça e do juízo: Eu os remiria, mas eles falam mentiras contra mim. Não clamam a mim de coração, mas dão uivos nas suas camas; para o trigo e para o vinho se ajuntam, mas contra mim se rebelam. (Os 7.13s)

O Segundo Testamento contém pouquíssimos dados a respeito das manifestações externas de confissão e arrependimento. Isso é uma consequência da natureza de conversão que ele apresenta. Conversão não é apenas uma mudança no comportamento moral, mas uma iniciação a uma nova realidade de perspectivas presentes, futuras e escatológicas. O dom do perdão concedido por Deus através de Cristo transcende a todo esforço humano em tentar se penitenciar de alguma forma pela sua culpa. É claro que sinais externos de tristeza pelos pecados cometidos acompanham o convertido, que a confissão de pecados ainda é uma prática exigida e de grande necessidade, mas elas não diminuem o valor nem a intensidade da obra redentora de Deus em seu Filho pregado na cruz do Calvário. Os dignos frutos da penitência na realidade não são as obras, estas são consequências de uma conversão interna. Nem mesmo os sacrifícios que exigem que sejamos imitadores de Cristo pertencem ao terreno da penitência, nem o celibato, nem a temperança e nem a abstenção de prazeres ou condutas. Estes estão na casa dos valores sobrenaturais, que tem proveito pessoal, mas que para a comunidade religiosa tem valor relativo. Tudo mais se esvai nas palavras de apropriadas e bem ditas de João Wesley: A excelência da sociedade para a reforma dos costumes é...primeiro, mover campanha aberta contra toda a impiedade e injustiça que cobrem a terra como num dilúvio, e isto é um dos meios mais nobres de confessar a Cristo.

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O que é LUZ?

Criação do mundo, Fenand Léger (1881-1955)
A palavra luz encontra-se nas Escrituras usada em diversos sentidos.

A luz natural é aquela que foi chamada à existência no primeiro dia da criação. O consenso de que ela provém de Deus é quase uma unanimidade na Bíblia. Apenas o questionador livro de Jó levanta dúvidas quanto à
sua origem: Onde está o caminho para a morada da luz? E, quanto às trevas, onde é o seu lugar? (Jó 38.19) Esta luz que é criada no princípio é identificada como dia tem uma existência independente do Sol, porque, na sua lógica, ela acontece antes da sua aparição no céu. Contudo, está de certa forma relacionada ao dia, pois é este luzeiro quem o anuncia. Para os antigos a luz da aurora tinha um valor especial, ela é o anseio maior do homem que trabalha, que vigia e que está aflito. Mas há na Bíblia alusões ao benefício da luz das estrelas, que por ela são chamadas de luzes: Ela percebe que o seu ganho é bom; a sua lâmpada não se apaga de noite. (Pv 31.18)

A luz natural também está associada a simbolismos. A simples faculdade de perceber a luz é um bem sumamente estimado, sem este dom o homem ficaria na escuridão perpétua. Como o ventre materno significa de certa forma a escuridão, nascer é receber a luz, que neste caso é identificada com a própria vida: Deus redimiu a minha alma de ir para a cova; e a minha vida verá a luz. (Jó 33.28). Apagar a luz de alguém pode significar tanto escurecer a sua casa quanto tirar-lhe a vida: A luz dos justos brilha intensamente, mas a lâmpada dos perversos se apagará. (Pv 13.9). A escuridão era sinônimo de calamidade, justamente o oposto da luz, que representa a proteção, especialmente da parte de Deus: O Senhor é a minha luz e a minha salvação; de quem terei medo? (Sl 27.1) Por tudo isso a luz se tornou o elemento da salvação messiânica: O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz. (Is 9.2)

A luz também é parte das descrições das manifestações de Deus, pois a sua glória irradia um esplendor brilhante. As suas epifanias também são descritas como fenômenos luminosos como o raio. A presença de Deus não somente ilumina como também faz resplandecer aqueles que a contemplam. Até mesmo a sua essência é descrita como uma luz indescritivelmente pura: Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. (I Jo 1.5)

O seu uso metafórico é abundante nas cartas paulinas e nos escritos de João. Trata-se, sem dúvida, de uma continuação das ideias do Primeiro Testamento, que são confirmadas em diversas citações: Porque o Senhor assim no-lo determinou: Eu te constituí para luz dos gentios, a fim de que sejas para salvação até aos confins da terra. (At 13.47) A oposição luz e trevas tem também neste Testamento um caráter moral, porque a luz põe fim ao reino das trevas: Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. (Jo 12.46); tem a força de um julgamento: O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más. (Jo 3,19); implica em uma renovação da vida moral: Vai alta a noite, e vem chegando o dia. Deixemos, pois, as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz. Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes. (Rm 12.12-13). Por vezes esta palavra é de difícil interpretação, pois num mesmo texto a encontramos como referência à luz natural, mas com indícios de advertência moral: Respondeu-lhes Jesus: Ainda por um pouco a luz está convosco. Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos apanhem; e quem anda nas trevas não sabe para onde vai. (Jo 12.35). Encontramos também alusões à sua finitude, quando será substituída pela luz definitiva: Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos. (Ap 22.5)

Finalmente, a luz, ao lado do amor, são as expressões máximas conhecidas de Deus. Ele é o Pai das Luzes, e mora numa luz inacessível. Os seus mensageiros são chamados de anjos de luz. Neste tema o próprio Cristo se identifica com o Pai, pois participa também deste atributo divino, pois aparecerá numa luz impossível de não ser notada, que rasgará o céu de uma extremidade à outra, e que iluminará eternamente a Jerusalém celeste: A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua lâmpada. (Ap 21.23)

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O que é PROFETA? final

Martírio de Estevão, Lorenzo Lotto
Ao comparar a situação vigente com a vontade de seu Pai, Jesus não tem alternativa senão fazer coro com as teorias apocalípticas, porque Jerusalém não só continua matando os seus profetas, como terminara de matar o
maior de todos, João Batista. Sua mensagem se volta também contra aqueles que sobrecarregavam o povo com preceitos legais providencialmente equivocados em nome de Deus. Preceitos esses que nem mesmo eles cumpriam à risca. Censurou severamente estes que tinham as chaves do Reino, mas não entravam e não permitiam que ninguém entrasse. Vem deste sentimento de indignação as suas profecias contra a cidade e o templo. Por mais que valorizasse o este último, expondo-se ao perigo para purificá-lo na sua investida desesperada contra os vendilhões, deixou claro que o culto perfeito seria celebrado apenas após a sua destruição total. Mas nem isso tirou dele o ímpeto de ajudar as pessoas necessitadas, de curar os enfermos e de dar a esperança de uma nova ordem mundial. Jesus é reconhecido pela multidão como sacerdote, profeta e rei. Mesmo rejeitando por mais de uma vez a coroa sob a alegação de que seu reino não era deste mundo, aceitou de bom grado os outros dois títulos e tratou de levá-los ao pleroma, à plenitude da perfeição. João, o evangelista, compreendeu muito bem esta iniciativa de seu mestre, e percebeu que em Jesus a mensagem se confundia com o mensageiro, por isso o chamou de Logos Divino e de a Palavra que se fez carne.

Mas as profecias um dia desaparecerão, afirmou Paulo. Este não foi um desejo genuinamente paulino, os judeus, há séculos, já tinham a expectativa de que quando o Messias viesse, não haveria mais necessidade de profecia, porque ele é o intérprete maior da lei. Paulo faz coincidir o fim da profecia com o fim dos tempos, e fundamenta sua tese num desejo antigo de Moisés, que gostaria que todo o povo profetizasse, e numa profecia de Joel, quando Deus derramaria seu Espírito sobre toda carne. Na realidade o que Paulo disse já está acontecendo. O carisma da profecia é muito mais frequente hoje do que nos tempos passados. Logicamente que não falamos das profecias que escamoteiam adivinhações e prognosticações. Práticas que foram severamente proibidas no meio do povo de Deus. O profeta do Segundo Testamento não tem a autorização de predizer o futuro, Jesus nos disse que não nos cabe conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou exclusivamente para si. O profeta atual é aquele que exorta, que ensina e que consola.

A visão privilegiada do profeta o faz ver a verdadeira situação em que a igreja se encontra em relação ao mundo à sua volta, e definir o que deve ser feito para que ela se mantenha firme no propósito de salvar o mundo, desviando-se sempre da tentação de se amoldar a ele e guardando-se de se conformar com as coisas do presente século. O profeta atual deve estar consciente de que as perseguições, torturas e martírios serão tão reais e frequentes como as que sofreram os profetas do passado. Porém, nem mesmo os privilégios ou os encargos da função profética colocam nas mãos dele o governo da igreja por direito. Pelo contrário, sua função é iminentemente servir, e isso faz dele o servo de todos.

Sei muito bem que esta série de reflexões sobre a história e sobre o conteúdo da profecia na Bíblia tende a cair no vazio tanto pela necessidade do povo em querer saber antecipadamente o seu destino, como se este estivesse indelevelmente traçado, não acreditando que a intervenção de Deus possa completamente subverter a ordem das coisas, como também pelo oportunismo dos meus colegas pastores em reter avidamente uma autoridade que lhe é conferida indevidamente. Enquanto houver quem acredite que a intervenção de uma pessoa, seja ela um pastor, um bispo ou outra designação eclesiástica qualquer, possa sensibilizar o coração de Deus mais do que s súplica sincera e oculta daquele que se sente na condição de não merecer nem favor nem graça, existirão também aqueles que farão da profecia uma fonte de lucro e um meio de projeção em uma sociedade que insiste em não dar ouvidos a verdadeira profecia. Enquanto isso acontecer, não faltarão também tiranos que, a exemplo de Pol Pot, o cruel ditador cambojano, farão o povo crer pela força das armas que “a liberdade é a ausência de escolhas”. 

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O que é PROFETA? III

João Batista, B.Veneto(1502-1546)
Olha que hoje te constituo sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares. Este simples chamado de Jeremias encerra toda a ação profética na nova ordem mundial. O profeta de Deus veio para anunciar o castigo e a salvação. Da mesma forma com que Deus fez Abraão conhecer o futuro de Sodoma e Gomorra, ele faz os seus profetas reconhecerem o castigo e a salvação se darão através de fatos históricos que, com data marcada ou não, jamais deixariam de acontecer. Este grande dia determinado por Deus e esperado pelos profetas recebeu até mesmo um nome, O Dia do Senhor, o dia
em que o homem fugir de um leão e deparar-se com um urso, segundo Amós, e o dia que a vinha decepcionante será arrancada pelo próprio agricultor. Este é o aspecto de arrancar, derrubar, destruir e arruinar da mensagem profética, indicando o rompimento total com a ordem econômica mundial antiga.

Mas o profeta também fala em edificar e plantar. E este é o aspecto mais singular de Deus com a sua criatura, o triunfo do perdão de Deus sobre o pecado do homem. A nova aliança não vem como a anterior, através de uma voz que fala da montanha em meio a trovões, fumaça e fogo, que causa horror e espanto, mas sim através de um casamento. Não mais um contrato de obediência imposto pelo poder de quem manda, mas um contrato de um amor que não faz avaliação de culpa, faz sim o impensável até então. Faz o que fez o profeta Oséias: perdoou a esposa adultera, resgatando-a da prostituição, e fez isso sem que ela demonstrasse arrependimento, fez simplesmente porque a amava.

O exílio foi a sentença, agora é a hora da misericórdia. Desta nova ordem a lei não é suprimida, mas ganha um novo lugar. A condição da antiga aliança passa a ser uma consequência da nova aliança. Esta seria a primeira grande novidade que seria seguida de outras, através da reinterpretação da revelação bíblica. Os profetas são aqueles que Blaise Pascal chamou de “os cristãos da lei antiga”. As visões que os profetas tiveram do castigo, transformaram-se em visões da graça eterna que o homem não pode alcançar por si mesmo. Não tão claras e precisas, mas em breves relances de um futuro particular e privilegiado. Mas se não são tão precisas, alcançam um futuro mais longínquo e com maior abrangência, porque agora estarão incluídos também os gentios de todas as raças, e não judeus de todos os povos.

O Segundo Testamento chegou com a consciência de cumprir as promessas do Primeiro. Fiel à tradição profética do passado, este Testamento vem confirmar que a fé é algo para ser vivido nas experiências diárias. Não mais em um dia determinado, ou numa celebração específica. Por conta disso, os evangelhos tomam emprestados textos antigos para realçar traços particulares da vida de Jesus. O texto que narra o encontro de Jesus com os caminhantes de Emaús expõe de maneira clara a relação da profecia com a promessa. O mistério de Cristo foi antecipado por Abraão, por Moisés, pelos profetas e até mesmo pela sabedoria popular, através dos Salmos.

O ministério de Jesus já começa apresentado por Zacarias, Simeão e Ana, e indubitavelmente apontado por João Batista. E é este último que faz realçar a diferença entre o profetismo antigo e o seu objeto, que é Cristo: Eu vos batizo com água, para arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. (continua)

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O que é PROFETA? II

Choro de Jeremias, Ylia Repin (1844-1930)
A luta que o profeta trava contra seus adversários acontece sempre nos mesmos campos de batalha: a lei, as tradições e o culto.

Uma vez que a lei declara o que deve ser para cada tempo e para cada homem, ela não é uma corrente de pensamento divergente do profetismo. Pelo contrário, o profeta denuncia os pecados praticados contra ela. O que o distingue de um representante da lei é que ele não espera ser designado interventor para se pronunciar. Ele se pronuncia sem ser encarregado, sem ter
autoridade reconhecida e sem referência a casos anteriores, mas em nome de Deus que lhe revela no momento preciso qual é o pecado e quem é o pecador. Normalmente eles se fundamentam no decálogo para denunciarem as fraudes, os salários aviltantes, a venalidade da justiça, a escravidão indevida e a falta de humanidade. Através do carisma que acompanha o seu chamado, o profeta coloca o dedo na ferida mais íntima que o pecado esconde. Por tocarem em delitos tão reclusos, os profetas são facilmente desmentidos ou tem as suas mensagens distorcidas. Segundo Ezequiel, são delinquentes refinados, que apenas turvam a água das ovelhas. Embora também não eximam o povo de culpa, são os sacerdotes e as autoridades detentoras da lei os seus principais alvos. Contra estes nem mesmo a lei possui armas, somente o discernimento entre dois espíritos, o do mal e o de Deus, pode resolver. Esta situação pode levar ao confronto profeta contra profeta, Palavra de Deus contra Palavra de Deus.

Os profetas não forma anacrônicos, eles acompanharam bem de perto as mudanças ocorridas na sociedade.  Eles tinham consciência do novo, quer nas vestimentas, na música ou nas relações sociais. Apesar de possuírem uma forte tradição antimonárquica dos profetas anteriores à monarquia, eles aceitaram bem a presença de um rei, e nunca pregaram um retrocesso às formas de governo passadas, mesmo cientes de que algumas situações haviam sido previstas por Samuel. O profeta não veio para vindicar uma volta ao passado, nunca foi esta a sua função. O que eles trazem do passado é a imagem feliz da fidelidade de outrora, quando o povo reconhecia os feitos de Deus, lhe era grato e obediente. Não iludiam o povo com promessas de dias melhores enquanto não houvesse mudança interior. Amanhã será como hoje, dizia Isaías. Os profetas usam o passado e as tradições para reconduzir o povo ao verdadeiro eixo que os fez ser um povo e ter o Deus de Israel como o único Deus de uma única religião.

Já contra o culto eles são iminentemente radicais. Condenam com veemência os sacrifícios, as festas e próprio templo, que para eles era um covil de salteadores. Não somente o templo de Jerusalém, mas os santuários de Betel e Dan também foram alvos de crítica severa. Eles chamavam os sacrifícios de sacrilégios, assim como era sacrilégio todo o culto e todas as celebrações em nome de Deus. O pecado havia se aviltado de forma, e os sacerdotes se corrompido tanto que nem mesmo para si os sacrifícios poderiam trazer perdão e purificação. Para eles os cultos, festas e sacrifícios só encontravam sentido em uma vida de fidelidade num sistema de governo justo. A iniquidade havia se acumulado tanto que somente o Santo de Deus poderia remi-la. Contra toda a falsidade cúltica eles pregavam a vinda de Messias, que viria para interpretar corretamente a lei e anunciar a verdadeira forma de adoração. Até lá, que Israel se repensasse, que os sacerdotes se arrependessem, que os doutores da lei se penitenciassem e que o povo chorasse e pranteasse as suas faltas.

Nunca foi e nunca será tarefa fácil ser profeta de Deus. Situações drásticas requerem atitudes também drásticas. Foi exatamente neste sentido que Jesus falou que o evangelho colocaria pai contra filho, mãe contra filha, irmão contra irmão e sogra contra nora. Por conta disso os profetas se viram sozinhos, rejeitados e discriminados. Para um povo crente nas superstições pagãs eles não seria possível entender que eles traziam a Palavra de Deus, e sim mau agouro. Não entendiam que as tragédias e infortúnios eram causados pela sua má índole, mas sim pelas palavras dos agoureiros profetas. Realmente quem bate de frente contra todas as situações equivocadas nunca vai merecer o crédito da sociedade. Nós podemos aturar uma ou outra rebeldia. Podemos nos atrelar a um ou outro movimento contestador. Podemos fazer coro a uma ou outra voz que clama no deserto. Mas tomar partido contra tudo que está errado, somente um profeta, e não um profeta qualquer. Somente um que seja escolhido e vocacionado por Deus. (continua)

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O que é PROFETA? I

S. João Batista, Titian (1490-1576)
Em todo o antigo Oriente existiam pessoas praticando magias e adivinhações, por se julgarem capazes de receber mensagens das divindades. Mas em Israel o profetismo ganha uma dimensão que torna único o seu caráter. Desde Abraão, que foi chamado de profeta postumamente, o profetismo ocupa a grande maioria dos escritos bíblicos, estando presente durante toda a história da salvação. Tido pelos judeus como maior profeta até hoje, Moisés inaugura oficialmente esta prática, recebendo de Deus não revelações futurísticas, mas orientações consistentes para o momento presente e que se estenderiam pela eternidade. Desta perpetuação
os discípulos dos profetas ficaram encarregados, porém, foi através dos escritos genuinamente seus ou das narrativas do seu ministério profético que o mundo os conheceu.

O profetismo tem um lugar importante na comunidade de Israel, pois ao lado do rei e do sacerdote, constitui o eixo que exerce toda autoridade sobre ela. Quase que invariavelmente antagônico aos outros dois poderes, encontramos profetas que não somente julgavam, mas que também sentenciavam pela autoridade divina reis e sacerdotes, e por conta disso eram severamente perseguidos. O profetismo não era uma instituição formal, como a realeza ou o sacerdócio. Israel poderia eleger um rei, poderia consagrar um sacerdote, mas nunca poderia providenciar para si um profeta. Esta era uma atribuição a Deus. A influência do profeta na sociedade não é necessariamente reconhecida por ela, mas é dependente da vocação profética e do ministério para o qual o profeta foi designado. Não foram poucos os profetas que foram chamados justamente para não serem ouvidos e nem entendidos, mas serviram apenas como testemunhas contra as iniquidades do povo.

Os profetas propagavam as suas mensagens através de outros recursos além dos discursos diretos. Usavam por vezes mímicas, pantomimas e até mesmo atitudes concretas, como adquirir uma propriedade. No entanto, isso tinha tão somente valor simbólico, pois nenhum poder mágico ou sobrenatural estava agregado a estes atos. Por vezes a sua mensagem tinha implicações imediatas e efeitos colaterais nocivos. Muitos profetas tiveram crises de depressão, enfermidades, pânico e angústias, e não poucos tiveram problemas conjugais devido ao peso da responsabilidade que lhes era conferida. Temores e sensações sobre as quais os profetas não tinham o menor controle.

Na contramão dos profetas enviados por Deus encontramos um sem número de profetas que não foram enviados por Deus, mas que profetizavam em seu próprio nome. A estes a Bíblia designou o título de falso profeta, que do verdadeiro não tinha aparentemente qualquer diferença. O verdadeiro profeta tem a consciência de que um Outro o faz falar. É justamente a presença deste Outro que causa no profeta a luta interior, por ter que condenar o povo a quem ama. Somente o profeta verdadeiro está imbuído da sua obrigação para com Deus: O Senhor Deus fala, quem não profetizará?  O profeta é servo de Deus que poderíamos chamar hoje de free lancer, pois não é um cargo vitalício e nem específico para uma determinada faixa etária, mas deve estar sempre pronto ao chamado. A despeito de tudo, Deus não dá aos seus profetas qualquer esperança de êxito nas suas missões, e invariavelmente todos experimentaram a inquietação da esterilidade ou mesmo a inutilidade do seu ministério. O profeta foi comissionado a pregar sem hesitar, quer os homens ouçam ou não; é intimado a viver plenamente a sua mensagem, quer os homens se convertam ou não, permanece constantemente debaixo da mesma ameaça que vaticina contra o povo, quer ele queira ou não. A profecia transcende a qualquer necessidade de resultado imediato, pois a sua eficácia se comprovará num tempo escatológico, que a nós não cabe saber.

A morte era companheira inseparável do profeta, e eles foram eliminados sob ordem de quase todos os reis de Israel e de Judá. Mas longe de ser um fracasso ou mesmo uma mordaça, a morte era para o profeta a coroação suprema do reconhecimento do seu ministério. Nas chagas do servo sofredor de Isaías, no pavor do cordeiro que foi imolado, nas prisões e acoites que sofreu Jeremias, nas humilhações de Oséias e nos atestados de loucuras que recebeu Ezequiel estão as insígnias e condecorações de todos aqueles que, em nome de Deus, ousaram desafiar os poderes constituídos, de todos aqueles que foram postumamente honrados e lamentados por Jesus: Jerusalém, Jerusalém, que matas os seus profeta e apedrejas os que te foram enviados. (continua)

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O que é SERVIR?

Dream, Timothy Teruo, (1981-)
A palavra serviço na Bíblia se propõe a definir duas situações opostas: a submissão aos homens, que é a escravidão, e a submissão a Deus. A história da salvação nos ensina que a liberdade do homem depende da sua submissão a Deus, pois servir a Deus é reinar com ele: Fiel é esta palavra: Se já morremos com ele, também viveremos com
ele; se perseveramos, também com ele reinaremos (IITm 2,11s). Já no relacionamento humano a mesma palavra tinha também dois significados para os antigos. No mundo pagão onde o servo é relegado ao nível dos animais e das coisas, e na Bíblia onde o escravo continua a ser considerado um ser humano e tem seu lugar na família, de modo a vir a tornar-se também um herdeiro.

O serviço a Deus no Primeiro Testamento sempre foi um trabalho complexo, pois Deus não aceitava partilha e exigia total fidelidade: Adorarás o Senhor teu Deus e somente a ele servirás (Dt 6,13 e Mt 4.10). Esta fidelidade não era para ser praticada apenas no culto, mas principalmente no cotidiano.  Josué disse ao povo: Sois testemunhas contra vós mesmos de que escolhestes o Senhor para o servir. E disseram: Nós o somos (Js 24.22). Servir a Deus era antes de tudo oferecer-lhe dons e sacrifícios, e, no Judaísmo tardio, garantir a manutenção do seu templo. Era também a observação e obediência dos seus mandamentos, o que, segundo os profetas, era mais relevante que os sacrifícios: Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos (Os 6.6).

Jesus veio para propor uma nova e revolucionária forma de serviço. Primeiramente ele emprega a palavra profética para lembrar que o serviço a Deus exclui qualquer outro, em razão de que qualquer rival obstaculiza este serviço: Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom (Mt 6.24). Para tornar clara e inequívoca a sua proposta, Jesus realiza um ministério de serviço que se situa no exato ponto de equilíbrio entre a vontade de Deus e a necessidade dos homens. Na sua ânsia se serviço pela humanidade ele apresenta um Deus totalmente diverso do que se pensava até então. Jesus desfaz a imagem do tirano distante, que está sempre a espreita para impor castigo à menor falha, para montar a imagem do Deus que sofre junto, que se alegra junto, que trabalha incansavelmente até agora.

Servindo a Deus Jesus salva os homens, os quais se recusam a servir a Deus à maneira antiga, e revela como Deus realmente deseja ser servido. Mais do que servir a ele, Jesus, ele quer nos ensinar a servir como ele serviu. O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em favor de muitos (Mc 10.45); Eu vos dei o exemplo... O servo não é maior do que o seu mestre (Jo 13.15).

Os servos de Deus são antes de mais nada servos da sua Palavra e anunciam o evangelho como um serviço sagrado. Nenhuma vantagem ou qualquer privilégio está garantido, pois é em meio a lágrimas, sob provação e em profunda humildade que este serviço é executado. Mas os que servem a Deus já não o fazem mais como escravos e sim como filhos de Deus e amigos de Cristo: Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer (Jo 15.15). A satisfação do servo fiel ao serviço a Deus é a comunhão em alegria: Tenho-vos dito estas coisas para que o meu gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja completo (Jo 15.11), e a certeza de viver a plenitude que jamais fora experimentada: Mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam (II Co 2.9).

Contudo, invertendo o sentido das palavras de Paulo, se a nossa esperança em Cristo se fundamentasse apenas no mundo por vir, nós também seríamos infelizes até lá. O rev. Martin Luther King expressa esta verdade de forma poética e contundente, quando diz: Tudo o que coloquei a serviço de Deus eu ainda possuo. Eu segurei muitas coisas em minhas mãos, e eu perdi tudo; mas tudo que eu coloquei nas mãos de Deus eu ainda possuo.

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