O rico não via Lázaro

Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Leia Lucas 16.19-31
Rico e Lázaro, Leandro Bassano em 1590
Pelo simples fato de ouvirmos narrativas do inferno tão minuciosas e tão precisas que parecem que as pessoas as fazem chegaram de lá na semana passada, não podemos considerar que neste texto Jesus também faz a sua narrativa. O hebraísmo nela contido, diferente de tudo o que de Jesus se tem registrado, nos dá a certeza de que é uma história que era conhecida no seu tempo, e da qual ele faz uso para confrontar o público hostil que o ouvia: Lc 16.14s - Os fariseus, que eram avarentos, ouviam tudo isto e o ridicularizavam. Mas Jesus lhes disse: Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece o vosso coração; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus.

A história não conta se o rico era uma pessoa má e nem se Lázaro era uma pessoa boa. Ela destaca apenas as desigualdades que havia entre eles. Enquanto um se regalava esplendidamente, o outro não recebia sequer migalhas. Um se vestia de púrpura e linho fino, ao passo que o outro estava coberto de úlceras. Um era extremamente rico, enquanto o outro jazia entre os cães. Alguém já disse: Deus criou as diferenças, o homem criou as desigualdades. Apesar de reconhecer a propriedade destas palavras e constatar que nesta história elas serem realmente absurdas, não penso que foi por elas que o homem rico foi sentenciado a uma eternidade de tormentos, mas pelo fato se permitir ser encontrado em um estado de luxúria tão elevado que não lhe permitia enxergar a necessidade do outro. Se o homem rico era bom ou mau não vem ao caso, a questão importante aqui é que ele não via Lázaro. Apesar da proximidade entre eles, o rico não sabia da existência de Lázaro, e tampouco das suas necessidades.

Não é sem razão que a primeira atitude que Jesus tinha para com as pessoas que curava era vê-las. Jesus viu o cego, viu o coxo, viu o paralítico, viu o homem que tinha a mão ressequida, viu o filho morto da viúva de Naim, viu a mulher com fluxo de sangue e viu que o povo era como ovelhas que não tinham pastor. O que mais enfatiza o Primeiro Testamento do milagre do Êxodo é o espanto, tanto dos Judeus quanto dos outros povos ao verem tão poderosa libertação: Dt 4.34 - Ou se um deus intentou ir tomar para si um povo do meio de outro povo, com provas, e com sinais, e com milagres, e com peleja, e com mão poderosa, e com braço estendido, e com grandes espantos, segundo tudo quanto o SENHOR, vosso Deus, vos fez no Egito, aos vossos olhos.

Também em uma parábola que tem sido frequentemente mal usada para destacar a necessidade da ação social, a parábola do bom samaritano, Jesus destaca que a diferença que se estabeleceu em primeiro lugar entre o levita, o sacerdote e o samaritano, é que este último viu o acidentado, enquanto que os outros passaram de largo.

Não teria Jesus usado esta história também para reafirmar que a urgência do atendimento ao necessitado é imperiosa? O homem rico da história só enxerga Lázaro quando não pode fazer mais nada por ele. Isso ainda não seria tão grave se ele só tivesse enxergado Lázaro, no momento em que ele enxergou que Lázaro podia fazer alguma coisa por ele. Ou seja, só enxergar o outro apenas quando nos interessa, ver o outro apenas dentro das nossas necessidades.

Este é o abismo contado na história. O abismo que a história humana criou para ser intransponível. O abismo que até o presente momento tem se mostrado sem volta. O abismo que é para nós o próprio inferno em vida. Não mais nos assustam as narrativas bizarras do inferno, pois a realidade das desigualdades entre nós supera qualquer ameaça das profundezas, mesmos as mais macabras.

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O rico e Lázaro

No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. Leia Lucas 16.19-31
O Rico e Lázaro, Barent Fabritius (1624-1673)
A leitura dos evangelhos indicada pelo Calendário Litúrgico para hoje, Lucas 16.19-31, também um dos textos de difícil interpretação das Escrituras. Apesar de assim considerá-lo, eu gostaria de, antes de tentar entrar no seu contexto, trazer algumas considerações de estudiosos cristãos sobre o texto, que podem ajudar um pouco o seu esclarecimento para nós.

Alguns bons biblistas consideram que o texto seja uma autêntica parábola, outros já o veem como uma alegoria bem fundamentada, porém, a grande maioria dos leitores da Bíblia o considerem um fato histórico inquestionável. Para chamá-lo de parábola, teremos que observar algumas diferenças entre ele e as demais parábolas de Jesus. As parábolas usam personagens fictícios, já este texto cita os nomes das pessoas envolvidas. A parábola traz sempre uma verdade espiritual, utilizando-se de uma ilustração terrena. Já o texto do rico e Lázaro apresenta uma verdade espiritual sem qualquer metáfora. Seu cenário retrata a vida posmorte, enquanto que as parábolas são sempre desenvolvidas em contextos terrenos.

Os que dizem que o texto é uma parábola e não um acontecimento real baseiam-se no fato da narrativa responder em sentido e estrutura com bastante semelhança à prática padrão usada por Jesus nos seus ensinamentos. Fundamentam-se também na força dos argumentos, pois estes seriam suficientemente seguros para desclassificar o texto como uma história alegórica e enquadrá-lo de vez como uma autêntica parábola. Citam como exemplo, o fato das pessoas no inferno poderem ver abertamente o que as pessoas estão fazendo no céu, e vice versa, ao mesmo tempo que conseguem manter a comunicação uns com os outros. Esta, porém, é uma crença aceita e adotada por um sem número de cristãos, principalmente os de confissão católica. Inúmeras são as petições de proteção e segurança que são levadas aos mortos em oração. Particularmente eu penso que um céu em que os nossos queridos antepassados pudessem acompanhar a nossa trajetória de equívocos e idiotices, pareceria mais com um inferno.

Sem querer sugerir qualquer preferência por uma das duas correntes de pensamento, considero que mais importante que a sua classificação seja enquadrada nas parábolas ou nas alegorias bíblicas, é o ensinamento contido no texto. Parábola ou não Jesus está nos ensinando o quanto as injustiças nos levam para longe de Deus, o quanto nos deixa separados dele. Fala também que o uso que fazemos das riquezas, determina a nossa tendência entre colaboradores do Reino dos Céus e propagadores do reino das trevas.

Se nela Jesus fala claramente da existência de um inferno, se fala de um lugar para onde serão enviados os que rejeitaram o evangelho, se o céu é de fato o seio de Abraão, e se o próprio Abraão teria poder de influência no juízo das pessoas, é o assunto da meditação a seguir. Por enquanto meditemos sobre o texto: ele é de fato uma parábola ou narra um acontecimento real?


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O que é GENTIO?

Dissensão entre Pedro e Paulo, Rembrandt em 1628
Este é um termo exclusivamente judaicocristão, com o qual são conhecidos todos aqueles que professam uma fé não monoteísta. O fundamento dessa acepção é unicamente a oposição entre o povo eleito e os demais povos, porém, as diferenças étnicas, sociológicas ou nacionais não são influentes, tanto no hebraico como no grego.

A evolução religiosa refletiu diretamente no modo como o termo era usado. No Primeiro Testamento a diferença linguística entre gentio, povo e nação é incerta. Em resumo, gentios são os não judeus. Algumas vezes o texto bíblico chama Israel de povo, em oposição aos gentios, a quem chama de não povo.

No Segundo Testamento os termos são usados da mesma maneira, mas referindo-se mais diretamente ao modo de pensar e o estilo de vida, onde o modo judaico contrasta com o grego. Quando o Cristianismo começou a ser pregado, formaram-se as primeiras comunidades cristãs, e estas, indistintamente de serem formadas por judeus e não judeus, foram também chamadas de povo de Deus. Isso fez com que os cristãos se considerarem o novo Israel. Assim o nome gentio passou a receber um significado religioso e moral, indicando todas as pessoas que, independentemente da sua nacionalidade, não receberam a revelação. No Judaísmo da era cristã mesmo as pessoas que confessam uma fé monoteísta, como cristãos e muçulmanos, são chamados de gentios. O latim do império romano inverteu os lados e aplicou aos cristãos o termo “gentes”, para designar todos os que não adoravam o imperador. Mais tarde, quando os adeptos do Judaísmo e do Cristianismo se viram obrigados a refugiarem-se nas aldeias, no latim pagus, foram chamados de pagãos.

Quando da conquista da Terra Prometida, os habitantes cananeus foram chamados de idólatras e a sua terra de impura. Tudo lá, fosse comida ou costume, era considerado impuro. Tudo o que era comum aos gentios, sobretudo comércio e casamentos, deveria ser evitado. Os profetas condenavam os gentios pela sua impiedade para com Israel e pela sua influência negativa aos costumes judaicos. Esta determinação trouxe mais tarde dificuldades enormes para o Cristianismo que pregava uma salvação supranacional, acessível a todos através da conversão. Os gentios convertidos ao Cristianismo, por sua vez, não eram cristãos pela metade, tal como eram considerados os prosélitos convertidos ao Judaísmo. Mesmo sabendo que seus patriarcas receberam uma bênção destinada a todas as famílias da terra, os judeus continuavam a acentuar a sua situação privilegiada. Os gentios podem prestar culto ao Deus de Israel, podem considerá-lo seu Deus, podem ser fiéis aos seus mandamentos, mas nunca serão autenticamente judeus.

Foi na época pós profética que nasceu a ideia de um Reino de Deus espiritual e universal, no qual os gentios teriam também o seu lugar. Mais ainda assim, a separação religiosa prevalecia, pois quem não aderiu a Israel nessa vida como prosélito ou temente a Deus, somente entraria no Reino caso lhe fosse revelado o papel preponderante do Judaísmo neste Reino.

No Segundo Testamento esta separação é abolida por completo. Jesus veio especialmente para por fim a ela. Ainda se fala em gentios, mas o termo é aplicado aos que insistem em continuar a praticar a idolatria, mesmo depois de terem conhecido a verdade do evangelho. São exatamente esses que o cristão não deve imitar, e, em certas circunstâncias evitar o contato. Durante o ministério ativo de Jesus, os discípulos pregavam o evangelho exclusivamente aos judeus. Somente depois da apostasia dos judeus o Reino de Deus se tornou acessível aos gentios. Antes da sua ascensão, porém, Jesus mandou fazer discípulos entre todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Santo Espírito, ensinado-os a guardar as Escrituras que podem fazê-los sábios.

Não era necessário passar pelo Judaísmo para se alcançar a salvação. Mas foi depois de Antioquia, onde os gentios passaram a se converter em grande número, que os cristãos formaram uma categoria de fiéis à parte do Judaísmo. Foi depois de Paulo, que o termo, antes pejorativo, “cristão”, passou a designar homens e mulheres, escravos e livres, judeus e gentios como cidadãos do Reino, Nação Santa e povo exclusivo de Deus.

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Riquezas iníquas

E eu vos recomendo: das riquezas de origem iníqua fazei amigos; para que, quando aquelas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos. Quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no muito. Se, pois, não vos tornastes fiéis na aplicação das riquezas de origem injusta, quem vos confiará a verdadeira riqueza? Leia Lucas 16.1-13
O homem rico, Rembrandt em 1627
Ainda na linha dos textos de interpretação obscura da Bíblia, temos esta parábola que Jesus conta, que, segundo o evangelho de Lucas, vem imediatamente após as três parábolas da misericórdia: A da ovelha e dracma perdidas e a do filho pródigo. Pela própria linha de raciocínio que orienta esta parábola, podemos perceber de antemão que não é uma parábola, cuja totalidade dos tópicos, está endereçada a todos e sim dirigida a um grupo bastante específico. Sem a menor pretensão de decifrar todos os seus enigmas, gostaria de transmitir alguns itens do contexto, bem como fazer uns poucos comentários que me ajudaram bastante na compreensão, ainda que superficial, deste instigante texto bíblico.

O primeiro dado que nos deixa perplexo, é a quantidade astronômica de trigo e de azeite citadas na parábola. Esta não era uma dívida de gente comum, um prestação atrasado ou um cartão de crédito não pago. Aqui estão em questão cerca de três mil litros de azeite e mais de trinta toneladas de trigo. Era uma dívida considerável, confiada apenas a um número restrito de pessoas, o que dá um sentido diferente à parábola. Jesus está falando para o grupo de saduceus e de doutores da lei que estavam ali presentes.

Outro dado que diferencia a parábola dos nossos conceitos cotidianos é a maneira como o administrador foi demitido. Quem vive em países onde a corrupção campeia livremente, é logo tentado a pensar que o administrador estava roubando o seu patrão. O que não é o que diz a parábola. Pelo fato de ter sido dado um tempo para que ele prestasse contas, nota-se que o caso era de má gestão, e não de roubo. Se fosse autuado roubando seria demitido sumariamente e entregue às autoridades.

Que fique claro também, que o patrão não elogia o administrador por sua honestidade, e sim por sua esperteza em lidar com a situação. Ele também não se sentiu lesado, pois a sua parte que deveria ser cobrada como dívida era efetivamente o que havia sido acordado pelo administrador com os devedores. Todo o excedente estava sendo cobrado como ágio na transação. Um ágio que enriqueceria qualquer um naquelas circunstâncias. O administrador infiel não estava garantindo um quartinho nos fundos da casa de quem quer que fosse, e sim uma bela aposentadoria, que o sustentaria até o fim dos seus dias.

O que Jesus condenou nesta parábola foi a iniquidade da riqueza. Marx dizia que não uma riqueza sequer que não esconda um crime. E o pensamento de Jesus segue também nessa linha. Para ele a riqueza se apresenta como uma coisa ruim em três níveis possíveis. Ela é obtida por meios ilícitos, é gasta de forma inconsequente ou se constitui num mal para quem a possui.
Quando juntarmos todos esses elementos, teremos uma visão da parábola menos ortodoxa e, possivelmente, mais contextual. Uma parábola que, no seu sentido restrito, não trata de assuntos corriqueiros, mas que, no sentido mais amplo, é uma lição de vida imperdível.

Nesta parábola, Jesus exclui a ingenuidade dos assuntos financeiros, e nos alerta para que tenhamos todo cuidado do mundo quando tratarmos de negócio com estes mega empresários e suas mega finanças. Nos alerta também para os ágios absurdos que nos são cobrados nessas transações. Mas exige também a nossa lisura em todos os tipos de negociação, quer sejam pequenas ou grandes. Por fim ele nos deixa uma recomendação que é uma verdadeira cláusula pétrea: Se, pois, não vos tornastes fiéis na aplicação das riquezas de origem injusta, quem vos confiará a verdadeira riqueza?  Se não vos tornastes fiéis na aplicação do alheio, quem vos dará o que é vosso?


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É verdade, mas não toda a verdade

Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação... Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está no SENHOR, seu Deus. Leia Salmos 146 
Davi tocando harpa, Jan de Bray em 1670
Texto escrito pelo Rev. Jonas Rezende
No melhor livro de Exupéry, Terra dos homens, o escritor e aviador francês, que morreu em missão na Segunda Guerra Mundial, conta dois episódios que muito acrescentam à nossa vida. O primeiro se dá com um amigo acidentado, nos primeiros anos de aviação comercial. No frio brutal das montanhas, o convite que se insinuava era abandonar-se, dormir e morrer. Mas o homem exausto com seus pés em chagas e a alma abatida, consegue alcançar um lugar de resgate. E confessa que, nos momentos finais, a sua luta se manteve apenas para corresponder aos que o esperavam.

O segundo se deu com o próprio Exupéry, também acidentado, dessa vez no deserto. Próximo da morte por absoluta falta de água, divisa o vulto de um beduíno que lhe encosta um cantil nos lábios.

Veja bem. Um não morre para não decepcionar os que os esperavam. O outro se salva porque um irmão desconhecido não o decepciona.

O salmista, na página que consideramos, diz a verdade quando exorta que não confiemos em príncipes ou no filho do homem. Ele diz a verdade, mas como Exupéry nos mostra, não é toda a verdade. Sempre houve e haverá solidariedade na face da Terra.

E bela e correta a maneira como o poeta destaca o papel libertador de Deus... que fez o céu e a terra; o mar e tudo que nele há... Que faz justiça aos oprimidos, e dá pão aos que tem fome. O Senhor liberta os encarcerados... abre os olhos aos cegos... levanta os abatidos... ama os justos... guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva, porém transtorna o caminho dos ímpios. O Senhor reina para sempre.

Repito que é belo e correto ver a ação libertadora de Deus. Mas acredito que há um fundo de pessimismo quando não o reconhecemos o lado luminoso do ser humano. Às vezes, situações especificas dificultam o aparecimento da bondade, mas isso não nos autoriza uma generalização da maneira com faz o profeta Jeremias: maldito o homem que confia no homem. Ou o salmista neste seu poema.

No livro de Isaías, tomamos contato com inimigos de Israel, homens sem a fé bíblica. Mas o profeta, honestamente, os descreve da seguinte maneira, um ao outro ajudou e ao seu companheiro disse: sê forte! Uma lição que já recebemos dos comunistas ateus e dos que estão em correntes religiosas que nos parecem estranhas. Porque não somos donos da verdade.

O salmista nos ensina, mas aprendemos na Bíblia como um todo e ainda na vida diária, que o ser humano desenvolve requintes de crueldade e injustiça, mas é ele também que inventa a bondade. Quando nos esquecemos disso, Deus nos sacode e nos ajuda.

Maurice Maeterlink, no seu livro A sabedoria e o destino, nos instrui com a ternura que lhe é peculiar: não amemos de dó, quando podemos amar por amor; não perdoemos por bondade, quando podemos perdoar por justiça; não aprendamos a consolar, quando podemos aprender a respeitar.

O salmista falou a verdade, mas não toda a verdade, que é infinitamente mais rica. Estou apenas destacando mais uma das suas facetas. Mas convido você a repetir com o salmista e comigo o fecho deste belo salmo:

O SENHOR reina para sempre;
o teu Deus, ó Sião, reina de geração em geração. Aleluia!



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Contra a deificação de Isaac

Depois dessas coisas, pôs Deus Abraão à prova e lhe disse: Abraão! Este lhe respondeu: Eis-me aqui!  Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei. Gênesis 22.1-2
Sacrifício de Isaac, Pedro Orrente em 1616
Estamos diante de um dos trechos mais obscuros da Bíblia. Fato que nas Escrituras não tem precedente nem subsequente. Texto que já foi analisado e explorado pelas mais brilhantes mentes do Judaísmo, do Islamismo e do Cristianismo, sem que se tenha conseguido uma conclusão minimamente satisfatória. Porção bíblica muitas vezes evitada por pregadores cristãos, devido a sua complexidade controversa que afronta a essência da mensagem de Jesus no Segundo Testamento. Embora encante a todos os que se veem diante dele.

Poderíamos falar da tradição religiosa dos caldeus que exigia sacrifício de crianças. Da brutalidade que imperava entre os povos que viveram a Idade do Bronze. Da estima relativa que aqueles povos tinham para com os seus filhos. Mas nada disso sequer arranharia a blindagem natural que o texto criou em torno de si quando foi escrito, e que tem mantido consigo até os dias de hoje.

Logicamente que a partir do ponto de vista de Isaac, não conseguiríamos produzir qualquer esboço de explicação possível. Não há motivo algum para imaginarmos que Isaac se recuperou do trauma causado pela mórbida cena após refletir sobre seus pontos positivos. O que na realidade podemos extrair é o fato de que, na Bíblia, pai e filho nunca mais trocaram quaisquer palavras entre si. Vamos, então, buscar na visão de Abraão algum possível resquício de lógica.

Uma das características marcantes de Abraão era a sua disposição de estar sempre em movimento. Não se pode sequer mencionar na vida deste patriarca da fé a palavra monotonia. Abraão acompanhou seu pai, Terá, quando este empreendeu uma migração de Ur para Harã. Foi obediente à estranha ordem de Deus para abandonar o crescente fértil e se aventurar em uma terra completamente desconhecida, levando com ele sua família e tudo o que o ligava às antigas tradições. Ao constatar que a terra que lhe foi prometida encontrava-se em estiagem, seguiu em frente, em uma viagem não programada até o Egito, onde foi confrontado por nada menos que Faraó. Mostra suas habilidades bélicas ao derrotar cinco reis locais para libertar seu sobrinho Ló. Vê-se envolvido na querela entre sara e Hagar, onde tem que tomar decisões drásticas. Confronta o próprio Deus em defesa das cidades da campina.

Todas essas proezas, por assim dizer, foram realizadas antes do nascimento de Isaac. Mas depois que Isaac nasceu, parece que Abraão abandonou de vez o estilo empreendedor de vida. Parece que Abrão se aposentou da função de patriarca bíblico imediatamente após ter gerado um filho. Parece que ele transferiu para esse filho não somente as heranças materiais e religiosas, mas também todas as suas expectativas de realização como pessoa. Isaac cresceu tanto na estima de Abraão a ponto de resumir na pessoa do filho todos os sonhos, desejos e perspectivas. Isaac se tornou a razão de viver de Abraão. Fora de Isaac não havia vida possível para Abraão. Isaac se tornou um deus para Abraão.

Diante disso, podemos muito bem pensar que a tentativa escamoteada de Deus ao pedir o sacrifício de Isaac era trazê-lo de volta à realidade. Foi um recurso extremo, mas necessário, para que Abraão voltasse e se inserisse novamente no plano de salvação de Deus, acabando de criar o filho dentro do propósito designado por Deus para o qual a sua família Foi chamada. Abraão precisava ver novamente Isaac como um perpetuador das promessas de Deus para todos os povos e não mais como um fim em si mesmo.

Olhando fixamente para Abraão, mas pensando como pastores, como cristãos e como igreja, o que precisaríamos sacrificar para continuarmos inseridos no plano de Deus para a salvação do mundo? O que teríamos que abrir mão para continuarmos sendo dignos das promessas do Reino nos dias de hoje? O que teríamos que deixar para trás para recebermos com um pouco de dignidade a herança legada pelos grandes heróis da nossa fé?

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Pedro tu me amas? III

Quando eles acabaram de comer, Jesus perguntou a Simão Pedro: — Simão, filho de João, você me ama mais do que estes outros me amam? Leia João 21.1-17
Pedro, tu me amas?
Isso nos guia à segunda situação. Jesus deseja nos levar ao conhecimento de como nós realmente somos, apesar de sermos humanos, apesar de sermos fracos, apesar de sermos falhos. Isto significa que precisamos deixar que ele penetre nas profundezas da nossa personalidade. Por que vocês acham que ele apareceu de repente lá na Galileia? Ele tinha planos magníficos para aquele homem. Ele nunca vacilou na sua estratégia de construir a sua igreja sobre o modo de ser de Simão Pedro. Ele vem a cada um de nós para fazer conosco o que fez com Pedro, isto é, introduzir o discípulo dentro de si mesmo.


Jesus queria que Pedro tivesse um conhecimento de si que fosse além do seu fracasso. Veio ao seu coração fechado quando Pedro se achava indigno. Pedro não ousaria a amar de novo com medo de falhar como falhou naquela noite. Jesus não poderia deixá-lo nessa condição nem que precisasse chegar, com chegou, ao fundo do poço. Por isso Jesus insistiu com aquelas perguntas. Pedro precisava entender que ele era muito mais do que fracasso e remorso. Havia dentro daquele homem impetuoso, que se antecipava aos outros; falho, que errava maios que os outros; desajeitado, conseguia subir ao sétimo céu e descer aos quintos dos infernos em segundo, uma pessoa que precisava ser reconstruída. Uma reconstrução com base na aceitação, que anula qualquer rejeição. Jesus precisou insistir até que Pedro se rendesse a uma consciência maior do que a sua, uma consciência que conhece, como ele bem disse, todas as coisas.

Pedro havia respondido que era amigo de Jesus porque não tivera a capacidade de amá-lo na noite em que o negou, e assim, se sentia incapaz de amá-lo também naquela hora. Mesmo como amigo tinha falhado também. Era um relacionamento que não dava para remendar e continuar, tinha sim que ser reconstruído do zero. Impressionante como Jesus numa simples conversa, levou Pedro a se sentir perdoado, se sentir renovado, e descobrir que tinha ganhado uma nova chance. Jesus apresentou ao Pedro indigno, uma nova e excepcional criatura.

O que nos leva à terceira situação: aquilo que nós devemos fazer quando falhamos. O problema que nos acompanha é de nunca sabermos o que fazer quando falhamos. Nós sabemos onde Pedro falhou: quando negou Jesus três vezes. Nós sabemos o que Pedro fez: fugiu para a Galileia para esquecer. Sabemos julgá-lo pelo que ele fez: ele era mesmo um discípulo indigno. Mas nem sempre temos a coragem de confessar que não sabemos o que fazer quando nos sentimos como ele. Por isso precisamos aprender com Pedro o que é amar Jesus. Amar Jesus é permitir a ele nos dar uma nova autoestima viável. Não falo de egoísmo, mas de uma nova motivação. Quando Pedro tinha desistido de si mesmo, Jesus lhe confia uma missão que o restaurou por inteiro: chamou-o para ser um pastor no rebanho de Deus. Para quem esperava apenas poder voltar à vida antiga, de como era a vida antes de ter conhecido Jesus, ser chamado de volta ao ministério é mais que extraordinário, se é que temos palavras para definir. Em vez de mandar Pedro repensar a sua vida e ver onde tinha falhado, Jesus lhe dá uma nova tarefa.

Pedro foi amado, Pedro foi perdoado, Pedro foi apascentado, Pedro foi habilitado. É este o retrato que tenho de mim? É esse o retrato que temos de nós mesmos? É essa a nossa autoestima viável?

Amar os outros é permitir que eles nos amem. Isto significa permitir que conheçam as nossas dificuldades e habilidades. A vulnerabilidade é o meio mais dinâmico de comunicação. A mais poderosa arma que o discípulo de Jesus possui não é a força ou a invulnerabilidade dos grandes vencedores, mas a fraqueza e a humildade dos que já falharam. É desse jeito que ele deve se deixar ser conhecido, principalmente aquele que foi chamado para apascentar ovelhas. O que de melhor o pastor tem a apresentar à sua igreja, e o cristão ao mundo, é a honestidade para com Deus e a honestidade para com o próximo, aliado à coragem de mostrar o coração aberto. Sentir vergonha de si mesmo, nem sempre é fim de tudo. Se nessa hora aceitarmos a orientação de Jesus e dissermos sim aos seus desafios, teremos sempre a oportunidade de um novo e glorioso recomeço. 

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Pedro, tu me amas? II

E perguntou pela segunda vez: — Simão, filho de João, você me ama? Pedro respondeu: — Sim, o senhor sabe que eu o amo, Senhor! E Jesus lhe disse outra vez: — Tome conta das minhas ovelhas! Leia João 21.1-17
Jesus no Mar da Galiléia, Lucas Gassel (1490-1568)
Este texto é um dos mais traumáticos e ao mesmo tempo um dos mais ternos da Bíblia toda. Não conheço outro tão emocionante. É o drama da reintegração de Simão Pedro. O que aconteceu àquele homem precisa acontecer a cada um de nós. É o evangelho em miniatura. Revela a fonte de poder, de amor e de gozo na vida cristã. Revela o quanto Jesus ressurreto deseja nos libertar das culpas e das frustrações que acumulamos ao longo das nossas vidas.

A mensagem central do texto é a seguinte: O amor de Deus nunca falha, por mais que nós falhemos. Pedro tinha construído o seu relacionamento com Cristo baseado na sua própria capacidade, na sua própria competência. Foi exatamente por isso que ele sofreu mais o impacto desse diálogo do que a sua negação no Getsêmani.

Com o que ainda restava de suas forças ele poderia viver, mesmo com a consciência em frangalhos. O que lhe restou de orgulho, de fidelidade e de honra o sustentariam por mais alguns anos. Seu grande erro continuava sendo o de pensar que sua relação com Deus dependia do cultivo das qualidades que iriam ganhar a sua aprovação. Pedro, assim como nós, tropeçava constantemente no seu próprio ego. Se ser adequado é fundamental para ser amado por Deus, o que acontece quando com que é inadequado? Todos nós temos o mesmo problema. Nós projetamos em Deus o que nós conhecemos, e nós conhecemos, como todo mundo conhece bem: o jeito que fomos criados pelos nossos pais. Se fazemos o que é certo, recebemos o prêmio. Até criaram um Papai Noel para isso. Porém, se fazemos o que é errado, a coisa é diferente. Tem que ser desse jeito, eu não conheço outro.

Nosso problema é projetar em Deus o nosso próprio padrão de aceitação. Eu não conheço outro padrão de aceitação. Toda a nossa compreensão de Deus é baseada no amor negociado, no interesse próprio, na troca de referências. Neste padrão, Deus nos amará somente se formos corretos, se formos diligentes, se formos aceitáveis. Nós tentamos de todas as formas vivermos uma vida reta. Claro, por isso estamos na igreja. Tentamos viver uma vida reta para Deus nos amar, em vez de vivermos uma vida reta porque ele já nos tem amado. Diferença entre dia e noite. Por isso vamos ver três situações que podem nos ajudar nessa mudança de padrão de aceitação.

O melhor da mensagem de Jesus é que ele sabia que, por iniciativa própria, não conseguiríamos amar a Deus com todas as nossas forças, com toda a nossa alma e com todo o nosso entendimento, por isso ele veio anunciar que o amor de Deus é dado livremente a nós, antes mesmo de pedirmos. Se é assim, então por que Jesus perguntou a Pedro se ele o amava, se ele já sabia de antemão que Pedro jamais poderia amá-lo suficientemente? Não foi para expor em público a inadequação de Pedro, esse não foi o problema. O objetivo era conseguir que Pedro deixasse Jesus amá-lo. Pedro viveu amargurado aqueles dias por que não podia dizer a Jesus o que sentia. Porque não podia pedir perdão e começar de novo.

Tudo o que Pedro conhecia era o que havia aprendido do Primeiro Testamento: amarás o Senhor teu Deus, com todas as tuas forças, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento, e a teu próximo como a ti mesmo. E ele viu que se encontrava em falta com esses mandamentos. Ele assumiu a culpa básica. Pedro conhecia bem esses mandamentos, mas não sabia como vivê-los. Ele não havia entendido ainda que Jesus viera para prover a motivação necessária para se viver integralmente esses mandamentos. O ministério de Jesus, a sua vida, a sua mensagem, os seus milagres, a sua paixão, a sua morte e a sua ressurreição demonstravam um Deus amando o mundo de tal maneira, que as pessoas, como resultado desse amor, poderiam amar as outras como amam a si, e amar a Deus com todas as forças. Assim poderiam amar a Deus como resposta e não como uma tentativa de qualificação. (continua)

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Pedro, tu me amas? I

E perguntou pela terceira vez: — Simão, filho de João, você me ama? Então Pedro ficou triste por Jesus ter perguntado três vezes: “Você me ama?” E respondeu: — O senhor sabe tudo e sabe que eu o amo, Senhor! E Jesus ordenou: — Tome conta das minhas ovelhas. Leia João 21.1-17
A pesca maravilhosa, Raffaello em 1515
Simão Pedro precisava entrar em contato com os seus sentimentos. Sentado à beira da fogueira à margem do mar da Galileia, não estava participando, como os outros, da alegria de ter Jesus de novo entre eles. Os outros discípulos estavam rindo, brincando, comendo e bebendo. Provavelmente também relembrando os bons momentos que tiveram com o seu Mestre. Mas não era desse jeito com Pedro. Ele mal podia olhar Jesus nos olhos. Uma dor profunda bloqueava a sua alegria. Uma depressão mental que vinha crescendo há semanas, e agora estava pronta para derrubá-lo de vez. Qual era a causa? Esgotamento físico, medo de ser preso, incerteza quanto ao futuro, ou a memória vergonhosa do que ele fez naquela noite em que Jesus foi preso e torturado?


Pedro não podia lidar com o fato da sua negação covarde, e como poderia? Como ele iria viver com o que ele fez? Ele tinha que esquecer, ele tinha que bloquear, mas seus esforços eram em vão. Ele jamais iria apagar aquilo da sua mente. Aquele lugar não o deixaria esquecer. Foi lá que fez a melhor pesca da sua vida, foi lá que recebeu o glorioso chamado para acompanhar Jesus, foi lá que deixou tudo para trás e abraçou a verdade do Reino. Lembrou-se também de quando foi o primeiro a identificar Jesus como o Filho de Deus, e, por isso, recebeu as chaves do céu. Pedro logicamente se lembrou também do juramento que fez na última ceia de jamais negar o Mestre. Realmente ele cumpriu com o que disse, não negou Jesus uma vez, o negou três vezes. Não teria sido por isso que ele tentou voltar à sua vida antiga? Ele já sabia que Jesus estava vivo quando isso aconteceu. O problema é que ele não se sentia mais digno de segui-lo, por isso voltou para a Galileia. Voltou para tentar se esquecer de Jesus, mas Jesus não se esqueceu dele. Voltou ao lugar que o tinha encontrado para chamá-lo de novo.

Jesus foi bastante amistoso quando saldou os discípulos, mas Pedro não podia responder porque era um prisioneiro da sua mente perturbada. Havia uma distância entre eles, e essa distância estava no coração não perdoado de Pedro. Ela se manifestou mais claramente no silêncio que se fez após a refeição. Mas Jesus quebrou o silêncio, eliminou a distância e perguntou: Você ainda me ama mais do que estes outros? Eu imagino o quanto essas palavras devem tem dilacerado o  já ferido coração de Pedro. Elas eram a reedição do seu juramento na ceia quando disse: Os outros podem abandoná-lo, mas eu não. Jesus rememorando o que ele havia dito, pergunta-lhe: Você ainda me ama desse jeito? Esse foi o tratamento de choque que Jesus usou para quebrar a barreira de remorso que bloqueava o relacionamento. Nada poderia ter tocado na ferida aberta de Pedro mais do que esta pergunta: Você ainda me ama desse jeito? Você ainda me ama mais do que os outros?

Pedro estava sofrendo demais para responder com um simples sim ou não. Ele sabia como ninguém o que era ser indigno do Senhor, indigno do seu amor, indigno de ser seu apóstolo. Por isso ele imagina: se Jesus não pode mais amá-lo, quem sabe, então, poderia ser seu amigo? Quem sabe a amizade não poderia dar certo? Por isso ele respondeu: Tu sabes que eu sou teu amigo. Novamente o silêncio se fez presente. Jesus voltou à carga: Tu me amas realmente? Aí a situação se complicou mais ainda para Pedro. Amar mais do que alguém que não ama muito é fácil, mas amar de verdade é bem mais complicado. O que Jesus está tentando fazer com ele? Parece uma crueldade. Desta vez a pergunta mexeu com emoções ainda mais profundas. Isso trouxe à tona um sentimento ainda mais forte do que a amizade que ele estava propondo a Jesus, e a lembrança das boas experiências que tivera com Jesus fez com que ele respondesse com mais confiança: Tu sabes que eu sou teu amigo. Silêncio de novo.

Como nas duas vezes anteriores a pergunta de Jesus era sobre amor, e Pedro cautelosamente evita essa palavra respondendo sobre a amizade. Ele não podia mais admitir a palavra amor, ele não podia mais admitir ser amado neste relacionamento, e o que ele tinha de melhor a oferecer era a amizade. O grego permite esse recurso. Há pelo menos três palavras que são traduzidas por amor. Jesus, então, muda o sentido da terceira pergunta: Pedro, tu és mesmo meu amigo?  É aí que Pedro fica sem o mínimo que ainda achava que possuía, e nada mais lhe resta senão apelar para aquele feeling que ele sabia que era forte em Jesus: Tu sabes todas as coisas! Tu sabes que eu te amo!

Isso quebrou todas as barreiras, aniquilou todos os remorsos, anulou todas as fronteiras. Lágrimas caíram de seus olhos. Ele soluçava incontrolavelmente. Jesus havia finalmente rompido o selo de autocondenação que lacrava o seu coração. Finalmente ele podia levantar seus olhos e encarar o seu Senhor. Amor e perdão fluíram de onde antes só havia culpa e ressentimento. Jesus sabia que podia confiar naquele coração, pois agora o havia conquistado para sempre, por conta dessa certeza confiou a Pedro o seu bem mais precioso: Apascenta as minhas ovelhas. (continua)

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Mateus: cobrança e dívida

Partindo Jesus dali, viu um homem chamado Mateus sentado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publicanos e pecadores vieram e tomaram lugares com Jesus e seus discípulos. Ora, vendo isto, os fariseus perguntavam aos discípulos: Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não sacrifício! Pois não vim chamar justos, e sim pecadores. Mateus 9.9-13
A vocação de Mateus, Caravaggio em 1599
Nos evangelho de Mateus lemos o protesto dos diaristas que se sentem lesados, apesar de receberem o salário que foi previamente acordado. Vemos Jesus sendo questionado por que come e bebe com pessoas que se tornaram indesejáveis unicamente por questões financeiras. Temos também Jesus sendo desafiado a ser juiz em uma disputa de herança. Algumas das parábolas do Reino falam objetivamente sobre o acúmulo de bens materiais. Então, temos elementos suficientes para concluir que qualquer discussão que envolvia dinheiro era um assunto tão delicado no tempo de Jesus quanto é para nós hoje. Dito isso, emerge naturalmente a pergunta: Como é que Jesus, que sempre pregou contra as injustiças sociais, foi escolher um discípulo dentre as pessoas mais odiadas e amaldiçoadas, justamente por que era um colaborador do inimigo opressor, que traía seu povo subtraindo-lhes parte significativa dos seus recursos financeiros?

A história toda causa uma tremenda indignação. Aos olhos dos decentes, dos piedosos, dos legalistas e das pessoas de bem isso não passa de um escândalo e de uma provocação ultrajante. Como um homem que se anunciava como rabino, se comporta desse jeito? Já não bastava ele sentar-se à mesa de comunhão com pessoas religiosa e socialmente proscritas. Agora ele vem e escolhe um deles para andar permanentemente ao seu lado? Seria como se hoje um cidadão altamente respeitado fosse flagrado com bandidos, em uma roda de viciados em drogas pesadas e de mulheres que trabalham em casas suspeitas. Quem seria então o mais desacreditado diante da sociedade: os delinquentes, ou quem se envolve com eles comendo e bebendo à luz do dia em suas mesas?

A escolha do publicano Mateus é o grande divisor de águas do início do ministério de Jesus. Ali ele deixa bem definido qual seria o objetivo primordial do seu ministério. Dali em diante ninguém deveria mais questioná-lo por suas atitudes pouco ortodoxas. Quando Jesus optou por ter entre os seus homens de confiança alguém que era o símbolo de toda a desconfiança, ele esperava, no mínimo, que muitas das cobranças de condutas futuras fossem evitadas. Mas ele pode constatar que quando o assunto é dinheiro nada prescreve, nada fica esquecido no passado e nada pode ser relevado. Ainda assim, Jesus ratifica a sua soberania sobre todas as normas de pureza e sobre todos os códigos de conduta: Pois não vim chamar justos, e sim pecadores.

Foi justamente essa quebra de paradigmas que levou Paulo a perguntar: Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Na escolha de Mateus Jesus faz isso tudo: confunde o sábio na sua sabedoria, o crítico, é rendido pelas suas próprias armas, o inquiridor fica sem respostas, mas aquele que nada espera alcança a misericórdia. Jesus não faz qualquer tentativa de justificar o comportamento de Mateus porque conta com Deus, como é pregado pelo profeta Oséias: Misericórdia quero e não sacrifício.

De um lado, estão os fariseus pensam que conhecem Jesus. Aqueles que esperam dele uma implacável autorretidão. Que o imaginam com a arrogância de quem se propõe a solucionar todos os problemas e curar todas as doenças. Do outro está Jesus que se propõe a mostrar-lhes o caminho, a insinuar que é possível, a viver como se o amanhã já fosse uma realidade.

Não se trata de dinheiro. Não é sobre o valor das ofertas. Não diz respeito às coisas materiais. Mas sim de mostrar diante de Deus uma atitude que, partindo do coração, alcance as outras pessoas. Mateus, segue-me, para uma missão você na qual você entenderá, de uma vez por todas, que não importa a doença, não importa o estado de saúde, não importa o que as pessoas digam ou pensem, não importa nem se o doente será curado. Eu escolhi você para ser a prova cabal de que no fim Deus espera que, sob qualquer circunstância, nós demonstremos misericórdia.

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O que é o LIVRO DE JONAS?

Profeta Jonas, iluminura do XI século
Ao contrário dos outros livros proféticos da Bíblia, o livro de Jonas não deve seu nome ao autor, mas ao personagem principal da narrativa. Em resumo, ele conta a saga de um profeta que recebeu de Deus a ordem de pregar na cidade assíria de Nínive o arrependimento da injustiça e crueldade que eram cometidas pelos seus cidadãos contra os povos por eles dominados.



Para fugir da missão, Jonas foge para o Leste, o lado oposto de onde ficava a Assíria, embarcando em um navio que está prestes a passar por uma terrível tempestade no Mediterrâneo. Identificado pelos marinheiros pagãos como o responsável pela ira dos deuses que provocaram a tempestade, Jonas é jogado ao mar revolto com o intuito de abrandar a ira deles. Por uma ação de Deus o profeta é engolido por um enorme peixe que após três dias abrigado em seu ventre, o vomita na praia, onde ele recebe um novo chamado.

Contra todas as expectativas a mensagem do profeta é bem recebida e aceita pelos moradores de Nínive, eles se arrependem das suas más ações e recebem o perdão de seus pecados. O amor e o cuidado que Deus dedica à nação arqui-inimiga de Israel deixa Jonas tão frustrado que nada pede para si, a não ser a morte. O episódio final do livro em que uma mamoneira nasce, cresce a ponto de lhe oferecer uma sombra, e morre no espaço de um dia, é a confrontação definitiva entre os mais sublimes propósitos de Deus para o mundo e a prepotência judaica de insistir em querer para si a exclusividade do amor de Deus, bem como ser o único herdeiro das promessas que Deus fez a Abraão, quando o escolheu.

A origem desse livro permanece obscura, pois não faz alusão a um fato histórico concreto nem à realidade vivida pelo seu autor ou autores, visto que um anacronismo é visível de imediato. Na época em que ele foi escrito, Nínive há muito havia sido destruída pelos babilônicos, pois sua destruição data de 606 aC. Porém, muitos estudiosos concordam que sua datação é posterior ao cativeiro babilônico, colocando a sua redação no período pós profético, entre os anos 400 e 200 aC. Sua unidade é também contestada. O salmo transcrito no capítulo 2 não diz respeito à situação existente, tratando-se, provavelmente, de uma inserção.

Pelo seu estilo o livro não pode ser encaixado plenamente no gênero literário que chamamos de profetismo bíblico. Contudo, o livro de Jonas consta entre os livros proféticos pelas seguintes razões: pelo fato do seu personagem principal ser reconhecidamente um profeta chamado por Deus, por causa da sua tendência didática e pelas denúncias contra a injustiça, e por sua pregação sobre a inescapável salvação de Deus. Mas, por outro lado, difere-se deles pela falta de um contexto histórico cuja mensagem seja apropriada, porque, como já foi dito, a cidade de Nínive era apenas um monte de ruínas, criando, assim, a universalidade e a atemporalidade do seu texto. Um número considerado de exegetas vê o livro como uma parábola que, mesmo que respaldada por Mt 12.38ss, não apresenta um fato, mas a, até então, revolucionária doutrina da universalidade da salvação. A redação do autor imita, de certa forma, alguns textos do saltério, bem como textos da tradição, como o livro de Jó.

Sua doutrina é a universalidade da salvação, o que torna o livro um protesto contra o particularismo judaico representado por Jonas, que tenta eximir-se da sua missão entre os gentios. Por outro lado, da a entender que as decisões divinas que visam destruir os pagãos, tem, na realidade, por objetivo atingir a consciência do povo escolhido para este atente para o seu chamado.

A mensagem do livro é simples, direta e particular. Tanto serviu para Israel no passado, como é propícia a igreja de hoje. Se Nínive, a grande cidade do mal pôde ser convertida pela pregação profética, por que Israel não se converteu e por que a igreja não se converte ao chamado de Deus para a salvação do mundo?

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Que mal existe em ser rico?

Aleluia! Bem-aventurado o homem que teme ao SENHOR e se compraz nos seus mandamentos. A sua descendência será poderosa na terra; será abençoada a geração dos justos. Na sua casa há prosperidade e riqueza, e a sua justiça permanece para sempre.Leia Salmos 112
A idolatria de Salomão, Frans Francken II em 1627
Texto do rev. Jonas Rezende
Há pessoas que juntam dinheiro assim como outros colecionam selos, flâmulas ou caixas de fósforo. São os usurários. Há que se apoie nas riquezas porque é inseguro. E os que enriquecem porque tem vocação para grandes negócios. São raros, porém, os que buscam o dinheiro como propósito de serviço social. A verdade é que não existe mal algum em ser rico; o dinheiro é neutro, podendo ser útil ou destrutivo, de acordo com a nossa administração. Karl Weismann sentencia com razão: há um modo adulto e infantil de se encarar o dinheiro. E, o que é mais comum, há uma forma mista. Mas só há um modo de rejeitá-lo sempre: o infantil.

Destaco nesta visita ao salmo 112, a afirmação do poeta: na casa do justo há prosperidade e riqueza. O salmista está sendo absolutamente fiel à mentalidade do Velho Testamento, em que o sucesso é o resultado da fidelidade a Deus: o justo florescerá como a palmeira. Até porque quem vive de acordo com a justiça está capacitado para administrar com ética e sensibilidade o dinheiro que lhe chega às mãos. Os desníveis do capitalismo e as distorções da burguesia não estão em pauta no universo da antiga aliança. Assim também os aspectos negativos que o protestantismo poderia ter facilitado na Genebra de João Calvino. Embora respeite o escrúpulo dos antigos franciscanos diante dos bens materiais, entendo que eles se encaixam em uma atitude infantil, como denuncia Karl Weismann. Os debates sobre posse que Umberto Eco analisa em seu magnífico livro O nome da rosa chegam ao nível do ridículo.

Meu professor de ética no seminário, Francisco Penha Alves, estabelece alguns critérios que ainda me parecem atuais.

O dinheiro deve ser sempre meio, e não um fim e si mesmo. A prosperidade só incomoda quando abandona o seu exercício de justiça.

Mas as riquezas mencionadas pelo salmista devem ser entendidas sempre como empréstimos e não posses. Encontramos no ensino do Novo Testamento a noção de que o ser humano apenas administra os bens materiais. As parábolas de Jesus que focalizam esse tema deixam claro que os talentos que nos são confiados não nos pertencem. Prestamos conta deles ao verdadeiro dono, que se identifica como o próprio Deus.

O dinheiro ainda deve ser colocado na perspectiva de servo nosso e não de um tirano senhor. Miserável é aquele que se escraviza às riquezas. São Jerônimo esclarece: o Senhor não condenou o que tem bens, mas o que é servo deles, guarda-os como servo; o que, porém, é senhor deles, distribui como senhor.

Mas as riquezas devem ser, acima de tudo, para nós objeto da razão e não do amor. A Bíblia não condena as riquezas usadas com racionalidade, mas afirma com absoluta clareza: o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males.

Jesus fala da dificuldade que as pessoas ricas tem de se aproximar corretamente de Deus; manda-nos acumular tesouros no céu e não na terra, onde os danos podem ser muitos. Mas o mestre explica as suas recomendações, dentro de um plano psicológico e espiritual:

Porque onde está o seu tesouro
aí estará também o seu coração

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A sabedoria justifica

Pois veio João Batista, não comendo pão, nem bebendo vinho, e dizeis: Tem demônio! Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e dizeis: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores! Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos. Lucas 7.33ss
O paralítico, James Tissot em 1896
Para compreendermos com este contexto funcionava, temos antes que deixar de lado o nosso conceito sobre sabedoria e entendermos que a sabedoria para os antigos possuía características contraditórias. Ela era um acúmulo de conhecimentos e experiências, e ao mesmo tempo um dom que Deus distribuía segundo a sua liberalidade. Um binômio em que nenhum dos elementos não funcionava isoladamente. Uma vez cientes desta paridade de importância, nós vamos perceber que não foram poucas as vezes que a palavra sabedoria foi usada na Bíblia para indicar a ação direta do Espírito de Deus na vida dos seus profetas, ou pelo menos o resultado prático dessa ação na vida dos que foram comissionados por Deus, mesmo quando a ordem contrariava a mais íntima e pessoal vontade deles.

São justamente estes dois aspectos da sabedoria que Jesus evoca neste diálogo com as pessoas que condenavam tanto a repressão comedida de João Batista quanto a liberalidade generosa de Jesus. Pessoas que se apressavam em julgar os outros com uma análise capenga, se valendo unicamente das experiências negativas que viveram, do conhecimento que acumularam em situações adversas, e da negação radical de qualquer influência de uma consciência mais elevada que as delas próprias. Eu sei bem o que é isso. Conheço bem este o tipo de julgamento, normalmente me flagro lançando mão dele para julgar os outros, e às vezes até a mim mesmo.

Embora essa não fosse essa a única vez em que Jesus se encontrasse diante de um júri popular, é curioso notar que Jesus não pede clemência, não apela para o lado bom das suas consciências, não pede que eles façam vista grossa ou mesmo que relevem este ou aquele fato. Jesus também exibe a sua condição messiânica para se colocar acima do bem e do mal, e não permitir que simples mortais façam sobre ele qualquer julgamento. Paulo, mais tarde, vai bendizer as divergentes opiniões que o povo tinha sobre seu mestre: Fp 1.18 - Todavia, que importa? Uma vez que Cristo, de qualquer modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo, sim, sempre me regozijarei. Este texto pode parecer negar, mas Jesus dava muita atenção ao que as pessoas pensavam a seu respeito. Certa vez ele realizou uma pesquisa entre os seus discípulos para saber qual era a opinião deles e das outras pessoas sobre si: O que dizem os homens ser o Filho do Homem?

Jesus pede apenas que o julgamento seja feito com sabedoria. Uma sabedoria que não julga inexoravelmente nem absolve ingenuamente, mas a que justifica conscientemente. Aqui encontramos a base para a compreensão das suas palavras: Não julgueis para que não sejais julgados. Pois com a medida que julgardes os outros, julgarão também a vós. Jesus exalta a sabedoria, mas não a que não inocenta ou tampouco a que condena, mas a que justifica. João Batista tinha razões para agir com austeridade, o seu ministério foi consumado no deserto, onde qualquer deslize ou desatenção podia representar a morte. O ministério de Jesus foi destinado a toda a terra, onde usos, costumes e moralidade são muito mais diversificados e muito rapidamente modificados.

Jesus apela para uma sabedoria que consegue encontrar nos porões da alma uma razão para tornar justo até mesmo aquele que não tem justificativa alguma. Foi com essa sabedoria que julgou a adúltera flagrada em seu pecado, que justificou a prostituta que lavou e beijou os seus pés, que prometeu o paraíso ao ladrão que jazia ao seu lado na cruz. Foi com essa sabedoria que ele julgou perdoados todos os nossos pecados. Não encontrando uma razão mais evidente ou convincente, intercedeu por nós junto ao seu Pai: Perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem

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Embargos infringentes da fé II

Mas eles nunca mais devem dizer estas palavras: “A mensagem do SENHOR é uma carga.” Porque, se alguém disser isso, eu farei com que a minha mensagem se torne realmente uma carga para ele. O povo tem torcido as palavras do seu Deus, o Deus vivo, o SENHOR Todo-Poderoso. Jeremias 23.36
Não tenho ouro nem prata, Lester Yocum (1954-)
Pelo que se pode entender do final do capitulo 23 do seu livro, Jeremias também percebia claramente que a proposta de Deus na escolha de Israel como o povo que lavaria o seu nome estava sendo adulterada, motivo pelo qual o profeta mostra sua total indignação. As acomodações e jeitinhos, por mais inocentes e despretensiosas que fossem, desencaminhavam por completo a intenção original do plano de salvação de Deus. Semelhante fato tem ocorrido com a igreja em relação ao Reino de Deus. As adulterações a levaram para longe do caminho da cruz, e a proposta simples se tornou um guia de regras absurdas.


A primeira, e talvez a que desencadeou todo o processo, aconteceu quando a atenção da igreja se voltou para si mesma. Na época da declaração Pedro: não temos prata nem ouro, apenas Jesus de Nazaré. Os objetivos estavam bastante claros e tudo concorria para que eles fossem alcançados. Não havia campanhas financeiras, cada um contribuía conforme propunha o seu coração. Não havia desconfiança do uso dos recursos e nem enriquecimento dos seus líderes. Apenas isso fazia com que todo o povo os repeitasse, os amasse e os admirasse, numa relação igual e contrária a tudo que se pode constatar nos dias de hoje.

A reboque desta veio a valorização hierárquica de uma função em relação às outras. Já não se podia mais dizer que a igreja era um corpo único e coeso, guiado por apenas um cabeça, que era Cristo. Já se observava os sinais claros da separação entre os membros que preferiam este àquele apóstolo, por considerá-lo mais importante ou mais “espiritual” que os demais. No linguajar atual, mais ungido. Não foi sem razão que Paulo chamou a si e aos demais apóstolos de lixo do mundo e escória do universo, colocando os apóstolos em último lugar na membresia da igreja. Ele quis cortar o mal pela raiz e dizia sempre: se há algo pelo qual me glorio, esta é a minha fraqueza, pois ela me mostra o quanto sou dependente da cruz de Cristo.

Com a supervalorização do clero, veio também a discriminação aos não cristãos. A palavra gentio, que antes deveria ser a motivação do amor da igreja, passou a ser o objeto da perseguição com vistas à extinção. Às palavras de Jesus dadas a conhecer por Paulo: todo joelho se dobrará e toda língua confessará, foram agregadas o infeliz acréscimo: nem que para isso precisemos subjugá-los ou até matá-los. Durante séculos a igreja preferiu a morte dos não cristãos à sua livre decisão de não aceitar o evangelho como lhes era pregado.

Foram os embargos aos projetos mais essenciais e as adulterações às mais simples propostas que transformaram o movimento que transtornaria o mundo em mais um entrave ao plano de salvação de Deus para a humanidade. Por todos os lados vemos que as pedras estão clamando. Em todos os segmentos encontramos pessoas que, desassociadas de qualquer igreja ou movimento cristão, tem realizado a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Mais do que o medo do fim dos tempos, deveríamos temer o fim da utilidade da igreja para o projeto de Deus, pois ela para mais nada prestaria senão para ser jogada fora e pisada pelos homens, se é que isso já não está acontecendo.

John Wesley, um dos maiores visionários da fé cristã certa vez disse: Eu poderia regozijar-me (tão pouco ambicioso eu sou para ser o mentor de qualquer doutrina ou partido), se o nome metodista nunca mais fosse mencionado, mas fosse queimado no esquecimento eterno. Wesley pensava assim da igreja a qual tanto amou e a qual tanto se doou. Mas por amar mais a proposta de Jesus de um novo governo, sentenciou sumariamente o nome desta mesma igreja, não sem antes deixar aos cristãos um fio de esperança, quando projetou para o mundo cristão um futuro possível, no qual nós ainda poderíamos receber um julgamento favorável do mundo: Talvez um dia, alguns de vocês que odeiam aquilo pelo qual eu sou chamado, possam vir a amar aquilo o que realmente eu sou.

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Embargos infringentes da fé I

O SENHOR Deus me disse: — Jeremias, quando alguém do meu povo ou um profeta ou um sacerdote lhe perguntar: “Qual é a carga da mensagem do SENHOR para nós?”, responda: “Vocês é que são uma carga para o SENHOR, e ele vai se livrar de vocês.” Jeremias 23.33
O fariseu e o publicano, Revista Sentinela (?)
O país está prestes a assistir mais uma vitória da astúcia sobre justiça. A nação se prepara para se indignar com o livramento de réus condenados, que, por um subterfúgio da lei, podem tem as suas penas abrandadas ou mesmo anuladas. Isso já não deveria ser tão doloroso para mim que vivi numa época em que os reconhecidamente corruptos detinham o poder de julgamento sobre toda a sociedade que, sob ameaça de exílio e morte, era impedida de se manifestar, pois estes estavam acima do bem e do mal, mas é.


Porém, não é sobre a política partidária o objetivo deste blog. Mas aproveitando este gancho, eu gostaria de chamar a atenção para os embargos infringentes que hoje campeiam livremente pela igreja cristã. Queria trazer para uma discussão franca os vários e inéditos recursos que estão sendo usados pela igreja de hoje, que não somente mudaram radicalmente a sua participação e influência na sociedade, mas também a sua imagem pública e seus propósitos mais imediatos. Para tanto, seria necessário que escavássemos as raízes mais profundas da nossa fé para conhecer os nutrientes que a fizeram vingar contra todos os prognósticos, bem como identificar a fonte da água sem contaminação denominacional que ela bebia. Precisamos abrir a pedra fundamental da igreja para redescobrir o que os nossos ancestrais na fé deixaram registrado para a nossa orientação segura. Precisamos também desvendar os segredos que ficaram ocultos, encobertos por dois mil anos na poeira dos tempos. Assim, como quem acha um tesouro escondido no campo, não descansa e nem vacila até que ela seja totalmente redescoberto.

Começaremos no tempo em que Jesus passou a reunir um pequeno grupo de seguidores, cuja proposta única era a inauguração de um novo governo: um governo de justiça. Mas isso não se daria pela simples troca de poderes, mas pela mudança de mente e, principalmente, de atitude. Jesus tinha a exata noção da precariedade da sua proposta, tanto que comparou o seu governo a um ínfimo grão de mostarda. Mas ele tinha também a exata noção do seu poder de alcance, pois também disse que ele cresceria para que todas as aves do céu pudessem se abrigar sob os seus galhos, e que neles as aves fariam seus ninhos.

Ele falou que isso deveria começar através de transições sutis, porém drásticas e até então impensadas. Falou em amar os inimigos, que os amaldiçoados pela lei, na verdade, eram os bem aventurados de Deus. Falou que prostitutas e pessoas de índole má, neste governo, precederiam muitos dos que eram considerados justos. Falou que o primeiro era o último e que o menor era o maior. Que neste governo duas moedas poderiam valer mais que grandes somas. Em uma declaração bastante desencorajadora disse que este governo sofreria ameaças, perseguições e consequentes perdas de vidas e de bens materiais. Ainda teve a coragem de chamar tudo isso de evangelho.

Em resumo, esta era uma proposta na qual algumas pessoas mostrariam com o seu modo simples de viver que, uma atitude que muita gente chamou de fé, que esse novo estilo de vida, era possível, era bom e era inescapável. Por esta forma de governo ser simples, eficaz e abrangente, qualquer mudança nos planos iniciais estaria fadada ao fracasso, assim como fracassaram todas as formas de governos criadas por nós, os humanos.


Aqui cabe uma pergunta: se este governo é tão bom e funciona tão bem quanto dizem, por que ele ainda não é uma realidade? Por causa dos embargos infringentes articulados pela igreja, e que ainda estão vigentes hoje. Vamos tentar descobrir alguns na próxima oportunidade. (continua)

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O que é o culto a Deus?

O ensinamento verdadeiro e que deve ser crido e aceito de todo o coração é este: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior. Mas foi por esse mesmo motivo que Deus teve misericórdia de mim, para que Cristo Jesus pudesse mostrar toda a sua paciência comigo. E isso ficará como exemplo para todos os que, no futuro, vão crer nele e receber a vida eterna. I Timóteo 1,15s
O culto dos primeiros cristãos, William Hole
Uma das sensações mais comuns que nos assalta quando saímos de um culto é a impressão de que algo ficou faltando. Não pretendo aqui ser portavoz daqueles que costumeiramente reclamam de tudo, desde a escolha dos hinos, à falta de inspiração da mensagem, passando, inclusive pela escassez ou pelo excesso de orações. Esses serão os eternamente inconformados. Quero me referir àquele sentimento pessoal e intransferível que diz respeito apenas à nossa participação no culto, ao nosso compromisso de cultuarmos o Deus que nos escolheu para o seu serviço.

É preciso registrar em primeiro lugar que este sentimento passa obrigatoriamente pela concepção do que entendemos ser um culto cristão, mas confessando que a proposta não é a de irmos fundo no conceito do que realmente deveria ser o culto. Para isso, J. J. Von Allmen escreveu uma densa obra de quatrocentas páginas abordando eficazmente esse tema. Exatamente por isso, os convido a divagarmos nos conceitos primários e mais imediatos do culto, para dali extrairmos uma resposta minimanete aceitável.

Em primeiro lugar precisamos entender que o culto é um dos meios pelos quais Deus nos comunica a sua graça. Em uma linguagem mais clara, é o lugar em que Deus fala com o seu povo. Mais do que mostrar hiperatividade, exibir a piedade, demonstrar misericórdia ou mesmo prestar adoração, o culto é a oportunidade de nos aquietarmos diante de Deus. Aquele que nos conhece por inteiro não se iludirá com este tipo de exibição.

É preciso estar quieto para entender a missão que Deus tem confiado à igreja. Deus fala preferencialmente no silêncio de uma oração, na frase de um hino, nas entrelinhas da mensagem, e nada disso pode ser percebido em meio a muita agitação. Lembrem-se que Elias ouviu a voz de Deus na brisa suave, e não no terremoto.

Do silêncio vem também o som do abismo que nos separa de Deus. Quando nos depararmos com a presença de Deus no culto, evidencia-se o nosso pecado. Na oração comunitária, mesmo na que é feita em silêncio, buscamos o seu perdão restaurador, sem o qual o culto perde todo o sentido.

Logo em seguida, surge algo que responde em parte a nossa insatisfação. O culto não é realizado para agradar quem quer que seja. Um professor de Homilética repetia sempre: Culto não é para satisfação e sim para conversão. Isso significa que parte da nossa insatisfação vem desta necessidade de renovação de mente, de mudança de vida, de crescimento na fé.

A consciência do nossa exata condição. Nem a igreja nem os seus membros são o objeto do amor de Deus, o mundo sim. Esse é um grande mistério, e o culto é a melhor chance que temos de ponderarmos sobre esse mistério. Por esse motivo é que a nossa adoração nunca pode ser contemplativa. O amor a Deus pode ser uma reação devastadora, mas ela só se torna real quando no próximo este amor se materializa.

O culto não é uma competição de talentos e nem uma avaliação de intenções. Lembremo-nos do publicano que, para o nosso total espanto, saiu justificado, enquanto o fariseu se perdia na exaltação de si mesmo.

Por fim, o culto é uma resposta. Uma resposta positiva ao desafio de Deus que nos conclama a saltar no escuro, mergulhar de cabeça, a se entregar de corpo e alma.

Isso tudo se resume no simples esquema traçado por Paulo na sua carta a Timóteo. No real, Cristo veio para salvar o pecador. Mostrando a ele um tipo de misericórdia que não se esgotava nele e nem se satisfazia com a sua plena conversão. O pecador resgatado, por sua vez, iria se unir a uma assembleia de culto, para que através desses o objetivo fosse alcançado: a salvação do mundo.


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O que é HIPOCRISIA?

O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim. Isaías 29.13a

Escribas e fariseus hipócritas, Richard Linford em 2013
A exemplo dos profetas, mas com uma contundência inigualável, Jesus pôs a descoberto as raízes e consequências da hipocrisia, visando especialmente os que constituíam a aristocracia intelectual dominante: os escribas, os fariseus e os doutores da Lei. Hipócritas são aqueles cuja conduta não exprime os desejos do coração; mas eles também são qualificados por Jesus como cegos: Mt 23.26 - Fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo, para que também o seu exterior fique limpo! Há uma conexão que parece justificar a mudança de um sentido para o outro: no ímpeto de querer enganar os outros, engana-se o hipócrita a si mesmo e se torna cego em relação ao seu próprio estado, incapaz de ver a luz.

A hipocrisia religiosa não é simplesmente uma mentira; ela engana os outros para angariar sua estima na aparência dos gestos religiosos, mas intenção é bem outra. O hipócrita parece agir para Deus, mas, na realidade, age para si próprio. Nas práticas mais comuns à fé cristã, a oração, a pregação, o jejum e o serviço, são adulteradas pela preocupação de se fazer notar antes de tudo: Mt 23.5 - Praticam, porém, todas as suas obras com o fim de serem vistos dos homens; pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas. Este hábito de manter uma distância entre o coração e os lábios, ensina a encobrir intenções maldosas sob uma aparência piedosa, como quando sob o pretexto de acionar uma questão jurídica contra Jesus, armou-se para ele uma cilada: Mt 22.17 - Dize-nos, pois: que te parece? É lícito pagar tributo a César ou não?Ansioso por salvar as aparências, no popular, livrar a sua cara, o hipócrita sabe fazer uma triagem dos preceitos ou acomodá-los segundo uma astuta casuística. Desta forma ele consegue coar um mosquito e engolir um camelo. (Mt. 23.24) Pode também torcer os preceitos divinos em proveito da sua rapinagem e intemperança: Mt 23.29 - Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque edificais os sepulcros dos profetas, adornais os túmulos dos justos.

O formalismo pode ser curado, mas a hipocrisia está próxima do endurecimento. Os sepulcros caiados acabam por aceitar como verdade o que eles querem fazer crer. Julgam-se justos e se tornam surdos a qualquer apelo à conversão. Como um ator de teatro, do grego hypocrites, ele continua a representar seu papel, quanto mais ocupa o lugar de destaque e vê a sua palavra ser obedecida e reverenciada: Mt 23.2 - Na cadeira de Moisés, se assentaram os escribas e os fariseus. Algumas de suas palavras são salutares. porém vazias, pois como poderia o hipócrita ponderar sobre a realidade se a trave no seu olho lhe tapa a vista?

Os guias espirituais são necessários nesse mundo, mas nunca poderão ocupar o lugar de Deus, o que normalmente fazem quando substituem a lei divina pelas tradições humanas. São cegos que pretendem guiar outros cegos. A sua doutrina não passa de fermento mau. Cegos como são, não podem reconhecer os sinais dos tempos, isto é, descobrir em Jesus o enviado de Deus, por isso estão sempre pedindo sinais do céu. Obcecados por sua malícia, não levam em conta o amor de Jesus e apelam para a lei do sábado para impedi-lo. Ousam afirmar que os milagres de Jesus tem origem em Belzebu. Também, como poderia de um coração mau sair palavras boas?

Para quebrar-lhes a tranca dos seus corações, Jesus faz com que as suas máscaras caiam diante de todos, denuncia o seu pecado fundamental e sua secreta podridão, na tentativa última de livrá-los da sorte dos ímpios. Para eles, Jesus emprega o termo hebraico hanefa, que significa perverso. O hipócrita é um ímpio em potencial. João exprime bem este pensamento quando diz: Jo 9.40 – O pecado dos judeus consiste em dizer: nós vemos, quando são cegos.

Seria ilusão pensar que a hipocrisia fosse própria dos fariseus apenas. Os sinóticos estendem à multidão este adjetivo. João assim chama os judeus incrédulos de todos os tempos. Pedro escapou desse perigo em Antioquia quando Paulo o confrontou. Talvez por isso, o próprio Pedro nos recomenda que sejamos simples como um recém nascido, sabendo que a hipocrisia nos espreita.

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