O mistério que salva o pecador

O banquete de Simão, Peter Paul Rubens
Simão, o fariseu, convidou Jesus para jantar, e Jesus foi. A oposição dos fariseus a Jesus ainda não era tão forte. Havia naquela mesma cidade uma mulher de má fama, uma prostituta. Ela ficou sabendo da chegada de Jesus e foi ao banquete que estava sendo oferecido por Simão. Nada de
estranho nisso porque os banquetes eram públicos. Jesus estava à mesa quando a mulher chegou por trás e começou a beijar os seus pés molhá-los com suas lágrimas, enxugá-los com seus cabelos e perfumá-los com o perfume que trazia pendurado em seu pescoço. Só para dar uma ideia do que foi aquele ato, devemos nos lembrar de que a maior humilhação para uma mulher, na época, era ser vista com os cabelos soltos. Lavar e ungir os pés de uma pessoa era uma prática comum, mas beijá-los, não era não. Quando Simão viu esta cena ficou profundamente chocado, Jesus o tinha impressionado.

Simão tinha uma concepção de Jesus como sendo um profeta de Deus, talvez até mesmo o Messias. Então, como Jesus não se tocou de quem era aquela mulher e como era a vida de pecado daquela que estava tocando nele? E Simão começou a pensar: Como ele poderia ser profeta em Israel e permitir que tal coisa acontecesse na casa de alguém que abomina o pecado? Jesus o chamou e lhe contou uma parábola, a mesma que está escrita em Lucas 7. Dois homens deviam dinheiro a um terceiro. Um devia quinhentos mil e o outro cinco mil, mas ambos não tinham como pagar. O homem resolveu perdoar a dívida deles. Então Simão, qual dos dois ficou mais agradecido? O que devia mais, respondeu ele. Você está certo, disse Jesus, e virando-se para a mulher disse: Você está vendo essa mulher? Quando entrei em sua casa você não me deu água para lavar os meus pés, ela não parou de lavá-los com suas lágrimas e enxugá-los com seus cabelos. Você não me beijou o rosto quando cheguei, ela beija os meus pés desde que entrei. Você não me ungiu com óleo perfumado, ela derramou todo o seu perfume em mim. Por isso eu digo que o grande amor que ela mostrou é a prova de que ela já foi muito perdoada. Mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco amor mostra. Então Jesus disse a mulher: Seus pecados estão perdoados. Os que estavam sentados à mesa começaram a se perguntar: Quem é esse que até perdoa pecados? E Jesus insistiu dizendo: A sua fé salvou você. Vá em paz.

Certamente a confusão de Simão tornou-se completa. Como era possível aquele homem entender o que acontecera ali? Como alguém podia entender que Jesus tivesse se colocado inteiramente ao lado daquela mulher? Bem, pode ser que esta atitude seja de fácil entendimento para muita gente, mas nunca foi fácil para mim. Desde muito cedo me foi ensinado que Deus está do lado dos justos, porque são os justos que fazem por merecer a sua bênção. Essa é a justiça da lei. Mas neste confronto alguém que é considerado pecador, por si mesmo e pela sociedade, é colocado acima de quem é tido como justo. Simão ficou profundamente surpreso com a escolha de Jesus. Como ele pôde optar pelo pecador e colocar-se ao seu lado? E a minha pergunta é: Podemos nós entender alguma coisa do que aconteceu naquele confronto? Aos que responderam que não eu convido a tentar entender junto comigo.

Não podemos começar atenuando a gravidade da situação, achando que a pecadora não era tão pecadora quanto se dizia. Nada no texto nos induz a pensar desta forma. A pecadora era pecadora mesmo, ela era uma prostituta. Era chamada de pecadora por todos e se reconhecia como tal. Jesus conhecia bem a natureza humana, e é aí que está a grandeza da encarnação. Ele sabia que o pecado domina tanto as pessoas, produzindo insanidade e destruição de caráter, como domina a sociedade, produzindo a miséria espiritual e econômica. Mas nenhum conhecimento da natureza humana pode justificar a opção pelo errado. A nossa geração esta mais capacitada do que todas as outras anteriores. Conhecemos mais da natureza humana do que qualquer geração antes de nós, mas nem assim conseguimos justificar o injustificável. O errado é errado em qualquer época. O pecador é pecador em qualquer época.

No nosso texto a mulher é chamada de pecadora, assim como Simão era chamado de justo. Da mesma forma não podemos pensar que Simão não era tão justo quanto ele achava que era. Ele era um bom homem. A sua falta de amor para com Jesus não provinha da sua falta de retidão. Jesus disse que ela nascera do fato de que pouco lhe era perdoado. A retidão de Simão não era algo fácil de alcançar. Custou-lhe muito domínio sobre si mesmo, muita disciplina durante muitos anos. Custou-lhe muita abnegação, e nada disso é fácil. Por isso temos que ter cuidado de não desprezar aqueles e aquelas que se esforçam para serem retos. E nós temos feito justamente isso. Na tradição cristã os fariseus se tornaram a representação de tudo que é feio e mau. Quando queremos dizer que alguém é hipócrita, o chamamos de fariseu. Mas era justamente o oposto. No seu tempo eles eram os bons. Eles eram os evangélicos do seu tempo. Temos que admirar o quanto esse homem levou a sério as suas obrigações morais e religiosas, ele era um grande conhecedor das escrituras e fiel cumpridor dos seus mandamentos.

Os pecadores são chamados de pecadores e os justos são chamados de justos com toda a seriedade. Nós temos que assimilar muito bem este fato para podermos entender a força e a profundidade da ação revolucionária de Jesus Cristo. Jesus toma sobre si a causa do pecador e a confronta com o justo sem negar a validade da lei, e aqui temos um mistério. É o mistério do paradoxo do evangelho. É o mistério do poder libertador de Cristo. O mistério que salva o pecador. Eu espero que possamos ver ainda que de relance este mistério analisando este texto, mas isso fica para outro dia.

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Pantomima, na Bíblia é coisa séria

Desolação da abominação, Wojciech Stattler (1800-1875)
Leia Jr 13,1-11
Por mais de uma vez eu disse nesse blog que todo capítulo 13 dos livros da Bíblia, mesmo que ela não tenha qualquer relação com a numerologia ou com a Cabala hebraica, encerra enigmas que exigem reflexões bem mais acuradas que os demais capítulos, e o livro do profeta Jeremias não foge a esta regra. Jeremias 13 narra a pantomima do cinturão de linho novo que é deixado para apodrecer nas águas de um rio estrangeiro.


A pantomima ou encenação gestual é um recurso antigo de comunicar uma mensagem impactante com o menor número possível de palavras, mas utilizando-se de um grande número de gestos ou expressões corporais. Mesmo que não pareça viável que Jeremias tenha viajado até o rio Eufrates, não apenas uma, mas pelo menos duas vezes para esta comunicar esta mensagem, prevalece a ideia de que algo precioso e muito utilizado no culto foi propositalmente deixado para apodrecer em águas estrangeiras sem que nunca tenha sido molhado antes pelas águas de Israel.

Jeremias não faz mais do que pegar um cinturão de tecido nobre, que usualmente era ostentado com orgulho pelas figuras mais proeminentes de Israel, ou seja, aquela peça cara e de cor berrante que distinguia de longe quem era quem na religião judaica, quem visivelmente se destacava no cenário político e religioso, para provocar a sua deterioração precoce em águas pagãs. Este é um ato simbólico relativamente simples, quando comparado ao de outros profetas que não se limitaram ao exequível e nem mediram consequências de seus atos para comunicar a Palavra de Deus. Embora este gesto pareça inocente, diante do que fez Isaías, quando andou nu por três anos ou, de Oséias, que faz questão de trazer de volta a esposa adúltera que se prostituíra, tem implicações sérias e oportunas para a nossa vida cristã, mesmo após ter se passados tantos anos.

Primeiramente fala daquilo que é importante e caro para a religião, mas que não se permite contaminar por ela. Fala sobre tudo aquilo que tem valor para a religiosidade humana, mas que não carrega consigo o menor resquício de uma relação justa para com o próximo ou agradável a Deus. Fala daquilo que exibimos com orgulho, que nos faz parecer diferentes, que nos confere status aos olhos humanos, mas que para Deus já tem o seu prazo de validade expirado, que já apodreceu para ele faz tempo. Fala de expressões e atitudes que são profundamente simbólicas na sua natureza, mas que na realidade se tornaram iminentemente diabólicas no seu uso.

Não cabe a mim ficar enumerando este ou aquele procedimento, e nem fazer julgamento de atitudes, mas o que tem se percebido, pelo menos na Internet, no elaborado estágio em que se encontra a pantomima gospel, em que, o que estão sendo exaltados são justamento os valores mesquinhos e discriminatórios. Eu estou salvo e você não. Eu estou com a verdade e você com a mentira. Eu sou de Deus e você é do Diabo.

Mas felizmente o texto não para aí. Esta é uma pantomima de mão dupla. Ela deixa claro também do quanto é destrutiva a contaminação por elementos estranhos. Pensando bem, o problema maior talvez nem seja o mau uso dos recursos disponibilizados pelo Cristianismo através das experiências deixadas pelos nossos heróis e mártires, e sim a intromissão de práticas e costumes estranhos aos seus ritos e preceitos básicos da fé. Tem muita gente que, assim como eu, não está pecando por ação e si por omissão. Exatamente por isso que Jeremias foi mais específico. Ele estava querendo mostrar também que até mesmo as manifestações mais puras e sinceras podem, em pouco tempo, se deteriorar quando se deixam influenciar por elementos estranhos e antagônicos ao culto cristão. Ele está nos dizendo: Não importa o quanto os seus cargos sejam influentes, o quão bem manuseiem a Palavra, ou quanto tempo tem de igreja, se vocês se vocês forem fermentados em vez de fermentar, se vocês de deixarem temperar em vez de serem sal, se vocês entrarem na luz dos outros em vez de os iluminarem, vocês vão apodrecer.

Precisamos tomar um cuidado extremo com tudo que está além dos mandamentos de amar a Deus de todo nosso coração, de toda a nossa alma e de todo nosso entendimento e de amar ao próximo como amamos a nós mesmos. É muito bem vindo o acréscimo de Santo Agostinho, quando diz que devemos ter unidade no essencial, liberdade do secundário e amor em todas as coisas. Os mandamentos prescritos são de fato essenciais, como secundárias são todas as coisas que foram citadas nesta meditação. Deveríamos concluir que as práticas comentadas, contrariando a profecia de Jeremias, estariam no campo daquilo que temos liberdade para fazer ou não, mas ainda prevalece a advertência que Pedro faz na sua primeira carta: Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos; como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus.

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Arca e semente


O semeador, Vincent Van Gogh
Quando vos multiplicardes e numerosos vos tornardes na terra, naqueles dias - oráculo do Senhor - não mais se falará da Arca da Aliança do Senhor; nem mais se pensará nela, perdendo-se a lembrança e a saudade; nem a ela se há de referir. Jr 3,16

O solo pedregoso em que ela caiu é aquele que acolhe com alegria a palavra ouvida, mas não tem raízes, é inconstante: sobrevindo uma tribulação ou uma perseguição por causa da palavra, logo encontra uma ocasião de queda. Mt 13, 20-21

As leituras recomendadas pelo Calendário Litúrgico para hoje fazem um paralelismo entre duas profecias bem relevantes. Jeremias dizia que a partir daquele dia, para Israel um dia de grandes perdas materiais, não haveria mais objetos sagrados que representasse Deus na relação entre ele e seu povo, a Palavra seria a novo e único meio de adoração aceita e atendida. Mesmo a Arca da Aliança, talvez o objeto mais cultuado do mundo até então, sequer seria novamente citada ou lembrada, tantos nos cultos quanto no cotidiano. Chega a ser impressionante o radicalismo de Jeremias quanto à peça que era a representação máxima de Deus na terra. Doravante não teria mais qualquer utilidade, e a sua lembrança deveria ser apagada para sempre. Era como um novo recomeçar, a instituição de uma nova e definitiva aliança, só que agora não mais tendo como sinal um objeto, mas uma palavra que deveria ser guardada no coração de cada um.

A segunda profecia, essa narrada no segundo testamento, também fala da importância que cada um dá a Palavra de Deus, quando a recebe em seu coração. Para não deixar dúvidas quanto ao compromisso que cada um precisa ter com ela, Jesus conta a inquietante parábola da semente, e o que acontece com ela quando cai nos mais diversos tipos de solo. Para efeito da nossa meditação vamos ficar com apenas com a semente que caiu em solo pedregoso, que aqui pode muito bem se referir ao conjunto das coisas que se agregam à Palavra quando esta chega ao coração do ouvinte. A mim me parece uma crítica aberta aos adornos e atributos que lhe são atrelados para fazê-la atrativa, e, de certa forma, até protegida contra as intempéries e contra os adversários. Uma advertência declarada àqueles que recebem a Palavra com a alegria depositada no seu invólucro, e não em seu conteúdo, naquilo que, assim como a Arca da Aliança, era visível, e não nos sinais que ela anuncia.

Não são poucas as vezes que o Primeiro Testamento faz alusão à alegria do povo diante da Arca. Uma destas narrativas expõe a atitude ridícula de Davi ao se mostrar seminu enquanto “dançava” à sua volta. Alegria manifesta pela presença do objeto material e pelas vantagens que este supostamente continha, esquecendo-se completamente de que ela simplesmente apontava para algo infinitamente maior e mais importante.

É bastante concebível que estes dois textos sirvam para a reflexão de um período ou mesmo de um estado de coisas, e não apenas de um dia como propõe o Calendário. São palavras mais que oportunas para desafiar o atual momento em que a Igreja Cristã está atravessando nos dias de hoje, quando os atrativos são as curas, as promessas de prosperidade e as mega estrelas gospels. Jeremias e Jesus não poderiam ser mais atuais e nem suas palavras mais apropriadas para os nossos tempos. Tratando apenas do Brasil, este país nunca foi tão “evangélico” como nos nossos dias. O crescimento do segmento não católico da igreja nunca foi tão expressivo e preocupante como hoje, daí a relevância da mensagem destes dois textos para o nosso momento atual.

Observem que os profetas nunca denunciaram a falta de pessoas nos cultos, como também por poucas vezes tocaram no assunto de dinheiro em suas pregações. Observem também que Jesus, quando contou esta parábola, já contava com um grande número de seguidores que o acompanhavam fielmente onde quer que fosse, simplesmente por causa de seus milagres. Ou seja, o cenário delineia-se espantosamente semelhante à nossa realidade. Não seria possível estas palavras serem mais contextuais, a não ser que constasse nelas nome, sobrenome, endereço e CEP de cada um de nós.

Seria bom que nos déssemos conta de que ambos os textos aludem a alguma tribulação que está próxima, e que o socorro contra ela poderá ser encontrado apenas e tão somente no conteúdo da mensagem, nunca nos seus adereços. Seria importante que nos lembrássemos de que tanto Jeremias quanto Jesus, não falavam por si, mas pregavam a Palavra de Deus. Uma palavra que nunca volta para ele vazia, mas, invariavelmente, sempre prospera naquilo para qual foi designada. Sobre tudo, nos déssemos conta também de que são advertências para o tempo presente e não narrativas de fatos que ficaram no passado.

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Entre o bem e o bem III

Jó e seus três amigos, James Tissot
Outra escolha que Jó teve que fazer, foi a escolha entre evidência e esperança, entre o real e o imaginário, entre o fato concreto e o sonho. O mais curioso neste livro é que a maioria das pessoas decoram três ou quatro versículos e acham que o conhecem profundamente. O Senhor me deu, o Senhor me tirou. Bendito seja o nome do Senhor. Tem aquele que
diz assim: Eu sei que o meu redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. É a hora em que todo mundo diz glória e aleluia e todos os problemas que o livro levanta estão aí resolvidos. Ainda existem aqueles que querem fazer do livro de Jó um manual de credos, por que o que está valendo é o imediato. Se for evidente, está certo, se os resultados estão aparecendo, então a coisa é boa e é de Deus. Esta é a doutrina de Gamaliel, aquele que disse: Se esta obrar permanecer é de Deus, se acabar não é. Gamaliel é o Murilo, aquele que fica em cima do muro. Se está funcionando e se está durando, é porque é de Deus. Ainda bem que foi Gamaliel quem disse, não foi Deus ou um dos seus profetas. Muitas pessoas não entendem que palavras como as de Gamaliel e de outros doidos, como Faraó, Nabucodonosor, o registro é inspirado e não as palavras. Foi registrado para que nós tivéssemos conhecimento, mas que o seu teor de forma alguma expressa a vontade de Deus. 

Os amigos de Jó diziam que se ele estava atravessando uma situação adversa, era evidente que tinha pecado. Como estavam errados hein? Jó é aquele que perdeu o seu prestígio, perdeu os seus bens, perdeu a sua família, perdeu a sua saúde, mas não perdeu a sua fé em Deus. Jó luta contra todas as evidências e mesmo sem achar respostas para o seu sofrimento não desiste de Deus. A verdadeira afirmação de fé de Jó está no capítulo 13 verso 15: Ainda que ele me mate nele esperarei. Este é o grito da fé definitiva, a escolha de alguém que entende com todos os seus sentidos que quando Deus tarda, ou quando Deus diz não, de nada adianta correr atrás de mãe Diná, do bispo isso, ou do apóstolo aquilo. Somente lhe resta esperar pacientemente em Deus. O controvertido escritor William Safire disse em certa ocasião: Eu comecei a ler o livro de Jó com dúvidas na minha fé. Terminei de lê-lo, com fé nas minhas dúvidas. O livro de Jó é uma preciosidade que contraria radicalmente aqueles que pensam que o Antigo Testamento não é Palavra de Deus. Ele que nos ensina que é quando a fé parece ser mais impossível, é justamente o momento em que mais precisamos dela. É o livro de Jó nos ensina que entre a realidade aparente e a fé, existe um Deus Todo Poderoso que é quem faz pender a consumação dos fatos, ainda que já não estejamos mais aqui para sermos testemunhas.

Finalmente Jó teve que fazer a escolha entre a Palavra de Deus e a Palavra de Deus. É um fato notório que nem tudo o que os amigos de Jó falaram estava errado ou que não representava a verdade. Muito do que eles falaram era palavra de Deus de fato. A questão aí não era se a Palavra era fiel ou não, e sim se era aplicável à situação em que Jó se encontrava. Para tomarmos um exemplo mais explícito, vamos nos lembrar da tentação de Jesus no deserto. O tentador usou argumentos precisos e totalmente válidos, usou na íntegra a palavra de Deus. Ele puxou uma Bíblia na NTLH e disse: Está escrito. Só alguém ligado a Deus, como Jesus, para perceber que por trás daquelas ofertas de bondade, de amor intercedente, tinha a voz do Diabo. Somente alguém que medita constantemente na Bíblia, quem a tem tão próxima de si, pode ter entendimento para responder à altura: Também está escrito. O período que durou o sofrimento de Jó foi muito proveitoso para que este meditasse na palavra de Deus e desse aquele incrível salto da fé supersticiosa para a fé de total entrega. Foi isso que fez com que ele reconhecesse, assim como fez Jesus, que a palavra dos seus amigos, embora fosse a Palavra de Deus, não era a mais propícia para aquele momento.

Eu quero encerrar dizendo algo que resume tudo o que foi dito até então. Caso eu tivesse dito anteriormente, dispensaria toda essa conversa ate agora. O que eu vou dizer carrega consigo uma profunda consternação porque é uma verdade que dói, mas carrega também a certeza de que é extremamente necessário que seja dito nesta hora. Meditando com persistência e fidelidade na Palavra de Deus, é que vamos entender que Deus está mais interessado na nossa fé do que no nosso estado de espírito. Que Deus está mais interessado na nossa fé, do que na nossa prosperidade. Deus está mais interessado na nossa fé do que na nossa saúde. Porque ele sabe muito bem que é a fé, e não o estado de espírito que pode nos mantém de pé diante das adversidades que tentam nos derrubar. Ele sabe muito bem que é a fé e não a prosperidade, que nos faz superar as grandes e reais perdas das nossas vidas. Ele sabe muito bem que é a fé, e não a saúde, que nos tira inteiros de dentro das crises que enfrentamos.

A grande recompensa de Jó não foi receber tudo em dobro, como alegam por aí. Sabemos muito bem que nem toda a riqueza do mundo, compensaria um sofrimento nesta escala. Sabemos também, aqueles que são pais, que a chegada de um novo filho, não conforta a dor da perda de outro. A grande recompensa de Jó foi escolher a Palavra de Deus, quando as superstições falavam tão alto, foi escolher a palavra de Deus quando as evidências eram inquestionáveis. Foi escolher a palavra de um Deus que se importa. Importa-se com o que fazemos, importa-se com o que escolhemos, importa-se conosco. Agora sim já podemos responder ao Elifaz e a todos os que insistem e confrontar a nossa fé em Deus e na sua Palavra: Deus se importa com as minhas escolhas sim. Foi por fazer a escolha certa que Jó nos garantiu, antes mesmo que são Paulo, que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus. Se permanecermos fiéis a ele e a esta palavra, todas as coisas irão concorrer para o nosso bem, até a dor ou sofrimento vão servir de ponte para nos fazer chegar tão próximos e tão íntimos de Deus, a ponto de podermos dizer como Jó: Agora os meus olhos te veem.


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Entre o bem e o bem II

A paciência de Jó, Gerard Seghers (1591-1651)
Mas alguém pode me questionar e terá absoluta razão. Eu falei de nossas escolhas, e nós normalmente não fazemos escolhas tão grandes e importantes como estas. Nós não somos como eles, estes são os super-heróis da fé, os campeões do temor e da obediência a Deus, o que temos nós de
parecido como eles? A maior figura do Primeiro Testamento, a maior figura do Segundo Testamento e a maior figura de todos os tempos. Estes são Abraão, Paulo e Jesus. Não estamos neste nível. Gostaríamos imensamente de chegar lá, mas estamos longe ainda. Por isso, para dissipar qualquer questão deste tipo, eu quero tomar como exemplo para nossa reflexão alguém bem mais próximo de nós. Alguém com quem nos identificamos plenamente, alguém que, na Bíblia, pareça mais humano e menos super herói. Jó me parece ser essa pessoa que nos soa familiar. Pois, se um dia já não nos sentimos como ele, fustigados sem motivo pela dor e o sofrimento, pelo menos conhecemos alguém que seja a personificação da história deste antigo patriarca. Eu peço licença para comentar em rápidas palavras o desafio que na vida de Jó, representaram a escolha mais difícil da sua existência: a escolha entre o bem na vida de Jó.

A primeira escolha que Jó teve que fazer foi dentro da sua própria casa. Ao ver o marido naquela degradante situação e não conseguindo enxergar outra saída, sua mulher, como um desabafo derradeiro se vê obrigada a dizer-lhe: Amaldiçoa teu Deus e morre. A este grito inconformado e herético os teólogos chamam de eutanásia teológica. Os antigos pensavam que quem amaldiçoasse a Deus morria fulminado na mesma hora, e Jó teve que fazer a escolha entre a Palavra de Deus, que o sustentara durante toda a sua vida, e a palavra da sua mulher, que disse isso não porque não o amava, mas por não suportar mais vê-lo naquela situação. Sob todos os aspectos, uma escolha bem difícil. A segunda escolha de Jó foi entre a Palavra de Deus, que naquela hora de sofrimento e aflição estava lhe abrindo uma visão totalmente diferente da sua realidade, e a palavra dos seus melhores amigos, que representavam o melhor do pensamento piedoso e religioso de então. Se nós tivéssemos apenas os 37 primeiros capítulos do livro de Jó, consideraríamos os seus amigos os maiores heróis da Bíblia, porque é justamente assim que a maioria dos cristãos pensa: Se Deus castiga e chama para prestar contas, não é porque você o adora com todo o respeito, mas sim porque cometeu muitos pecados, e as suas maldades não têm conta. A terceira escolha é entre a sua consciência de justiça, de homem bom e que caminha na retidão e a sua concepção de um Deus justo. Jó é aquela pessoa que se encontra o exato ponto onde a justiça divina se choca com a consciência humana. É alguém que tem consciência plena da sua própria justiça, mas que se vê na terrível condição de ter que confrontá-la com a justiça de um Deus que ele tem a absoluta certeza de que é justo.

Para agravar mais ainda a situação, Jó vivia em uma época em que estava muito em moda uma doutrina chamada de “doutrina da retribuição”. Ela dizia algo assim: Se eu sou temente a Deus, ele me abençoa. Se não sou, Deus não me abençoa. Pode até parecer familiar, mas hoje em dia a coisa está um pouco mudada, não existe mais esse toma lá dá cá, hoje não tem mais isso não. Agora é primeiro dá cá, prova o teu poder, me acumule de bênçãos e prosperidade, aí, quando eu estiver plenamente satisfeito, se sobrar alguma coisa, toma lá. O mais interessante é que o próprio Jó era adepto desta doutrina, ele era tão supersticioso que fazia sacrifício por pecados que nem ele nem seus filhos haviam cometido ainda. Esta é forma que ele entendia que podia trocar a bênção de Deus por um tipo de conduta que julgava politicamente correta. Hoje nós temos muita gente na igreja que é ticiosa, não é? Ele não é SUPERticiosa, é apenas ticiosa. Quando muito, desvira um chinelinho ali, faz uma simpatiazinha que foi ensinada pela velha tia aqui, e vai levando a sua vida cristã vacilando entra a Bíblia e a superstição. É aquele tipo de cristão que acredita em tudo que as pessoas dizem pra ele e ainda teme o quarteto sinistro, vocês se lembram dele? (http://amosboiadeiro.blogspot.com.br/2012/04/quarteto-sinistro-i.html) É o pessoal ainda não sabe que o Cristo nos libertou de todas as coisas, inclusive de pagar estes micos e de passar por esses ridículos.

Exatamente por isso é que Jó teve fazer estas escolhas: entre as palavras da sua mulher, a palavra dos seus amigos, a palavra da sua consciência e a Palavra de Deus. Notem bem que sua mulher o amava para ainda estar com ele naquela tragédia real, que seus amigos eram sinceros, choraram com ele o consolaram em silêncio durante 15 dias. Que a sua consciência vinha funcionando bem ao longo de sua existência. Ele teve que dizer pra sua mulher: Olha mulher eu te amo e sei que você me ama, mas se você disser algo que contrarie a Palavra de Deus, eu vou ficar com a Palavra de Deus. Se você me mandar morrer, eu não vou morrer não. Ele teve que dizer para os seus amigos: Olhem aqui, vocês são gente boa, me consolaram, me apoiaram, choraram comigo, até aí tudo bem. Mas quando se vocês começarem a falar abobrinha sobre Deus, não vai dar pra gente continuar. Ele teve que dizer para a sua consciência: Você está errada, a questão aqui não é se eu sou justo ou não, a questão é que, se eu não entendo das coisas do mundo visível, como posso querer entender as do mundo espiritual?

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Entre o bem e o bem

Agonia no Jardim, Andrea Mantegna (1431-1506)
Será que uma pessoa, por mais sábia que seja, poderia ser útil para Deus? Será que interessa ao Todo-Poderoso que você seja honesto? Que lucro tem ele se você é correto em todas as coisas? Se ele o castiga e o chama para prestar contas, não é porque você o adora com
todo o respeito, mas sim porque cometeu muitos pecados, e as suas maldades não têm contaJó 22.2-5
Eu queria pedir um favor nesse momento: que não tentassem responder a esta pergunta agora, e sim que fizessem uma viagem ao fundo da alma. Em queria pedir que você se lembrasse de quantas vezes esta pergunta lhe foi diretamente dirigida, que se lembrassem das muitas que, quando atravessamos um momento de crise, a nossa fé foi deste mesmo modo questionada pelas pessoas à nossa volta. Bom, se há alguém quer admitir não ter passado por situação semelhante, está simplesmente pretendendo ser melhor do que os salmistas, que por várias vezes lamentaram o questionamento da sua fé pela realidade em que viviam. No Salmo 42, por exemplo, ele confessa plenamente este seu dilema: As minhas lágrimas têm sido o meu alimento dia e noite, enquanto me dizem continuamente: O teu Deus, onde está?

Esta é uma situação dramática, mas é real, e é uma situação que frequentemente temos que vivê-la. Mas a nossa viagem não pode parar por aí. Para que esta viagem seja completa, nós vamos ter que entrar no porão mais escuro da nossa alma, naquele lugar que só nós mesmos podemos entrar. Quero pedir agora que vocês tentem se lembrar de quantas vezes, nós mesmos já fizemos esta pergunta. Será que Deus se importa comigo? Será que ele se importa com que estou fazendo? Que eu seja honesto, que eu seja correto? Será que Deus se importa com as minhas escolhas?  É justamente sobre isso que esta meditação, que eu pretendo que seja breve, nos conduzirá. Será que Deus se importa com as nossas escolhas?

Fazer escolhas sempre foi um problema sério na nossa vida. Nós já nascemos tendo que fazer escolhas. Ainda quando bebês, somos ensinados a escolher entre o pode e o não pode. Na adolescência aprendemos a escolher entre o certo e o errado. Mal ingressamos na maior idade, já temos que fazer a escolha entre o justo e o injusto. E alguns poucos que alcançam à maturidade racional se veem no dilema de escolher entre o que é ético e o que não é ético. Na vida religiosa não é diferente. Quando somos crianças na fé aprendemos a escolher entre o que é pecado e que não é pecado. Os mais antigos aqui hão de se lembrar de um quadro que tinha nas nossas casas que mostrava com detalhes a escolha entre o caminho largo e o caminho estreito. Mais tarde, com o amadurecimento de nossa fé, temos que fazer a escolha entre o que edifica e o que não edifica. Mas em algum momento da nossa vida nós somos chamados a fazer a mais difícil e traumática de todas as escolhas, uma escolha que em si é repleta de agonias e contradições, a escolha entre o bem e o bem. Isso mesmo, a escolha entre duas alternativas do bem. Alternativas estas que se nos fossem apresentadas isoladamente, faríamos imediatamente, com a mais profunda alegria. Mas que quando colocadas lado a lado, se revelam a mais terrível das questões das nossas vidas. Pois quando escolhemos uma, temos que abrir mão, desistir, abandonar completamente a outra. É a hora crucial da vida em que não dá para ficarmos com ambas de maneira alguma.

A Bíblia nos fala de algumas pessoas que tiveram que fazer escolhas deste tipo, e nos dá pistas da agonia em que se encontravam no momento exato de suas crises. Fala-nos, por exemplo, de Abraão, que teve que fazer a terrível escolha entre o amor ao seu filho e a obediência a Deus. Eu não quero entrar nos detalhes dessa narrativa, mas em uma análise superficial, a escolha foi realmente esta. Abraão se encontra na impossível decisão de escolher entre a vida do seu filho único e aquilo que ele entendia como obediência a Deus. Para que se tenha uma ideia da tensão que se estabeleceu entre pai e filho, naquele monte ficaram registradas as últimas palavras que ambos trocaram entre si. O apóstolo Paulo fez uma escolha semelhante. Na carta aos filipenses ele narra o desenrolar da sua agonizante escolha. Já cansado e fustigado pelos açoites, perseguições e prisões, seu corpo velho e debilitado exigia o descanso eterno, ele dizia: O meu desejo é partir e ir ter com Cristo, mas a sua consciência do dever cristão apontava em um sentido oposto: mas por vossa causa, filipenses, é necessário que eu permaneça vivo. Não sei o que escolher. Que situação, que escolha difícil esta de Paulo.

Mas nenhuma delas foi tão causticante quanto àquela feita numa noite de uma quinta feira no jardim do Getsêmani. Jesus queria mais do que qualquer coisa continuar o seu ministério de amor e de serviço. Havia tanta gente para ser liberta do mal, eram tantos excluídos que precisavam receber a notícia de que eles agora eram aceitos, havia ainda tanto que ensinar a Pedro, a Tiago e a João do que era feito o Reino de Deus. Como largar tudo isso para fazer uma determinada e específica vontade de Deus. Só este clima já bastaria para transformar esta escolha em uma situação mais penosa do que a tentação no deserto. Jesus tinha a certeza de que esta vontade do Pai, não somente poria fim ao seu ministério terreno, mas que fatalmente o levaria à morte. Foi exatamente isso que o fez suar sangue. A medicina moderna desbancou a doutrina que tachava de milagre este fenômeno. Hoje se sabe que pessoas submetidas a stress extremo, correm risco de sofrerem esta disfunção. É o fato que nos coloca inteiramente por dentro da real situação em Jesus se encontrava, quando teve que decidir entre as duas alternativas do bem. (continua)

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Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões.

O pensador de Rodin (1840-1917)
Texto de Atos dos Apóstolos 26,14b
Embora este seja um ditado de Eurípedes, um poeta grego que viveu no século V antes de Cristo, estas palavras ficaram imortalizadas por Paulo, na conversa que teve com Festo e com rei Agripa. Curiosamente Paulo não as usa como uma mera citação, mas as coloca na boca de Deus, na ocasião da sua experiência de conversão, no caminho de Damasco. Logicamente que Paulo não ouviu de Deus estas palavras, mas foi a melhor maneira que encontrou para comunicar às pessoas profundamente influenciadas pelo pensamento helenista, a inutilidade da relutância contra os
desígnios de Deus. E é este o assunto da nossa meditação de hoje.

Este blog, não deve se ser novidade para ninguém, vem sofrendo sucessivas quedas no número de acessos, isto sem contar na total falta de comentários, o que acontece desde o seu lançamento. Definitivamente o público deste blog não é dado a comentar ou expor a sua opinião. Não estou fazendo qualquer tipo de reivindicação ou lamento por esta situação. Apenas gostaria de usar estes dados para reforçar a ideia da inutilidade da relutância contra os desígnios de Deus.

Antes de tudo preciso dizer duas coisas: Primeiro que não discípulo de Gamaliel. Não prego que se a obra é de Deus vai permanecer sob qualquer circunstância. Obras grandiosas de Deus, como as sete igrejas da Ásia Menor citadas no Apocalipse, desapareceram. E em segundo lugar, em um paralelismo direto com a citação anterior, não concebo que seja uma punição declarada e direta ao meu ministério. Deus tem infinitas maneiras de me mostrar meus erros. Mas prevalece o fato de que, se não tenho falhado na tentativa de expor a mensagem cristã, a ordenança de fazer discípulos tem deixado muito a desejar.

Não é a primeira vez, e acredito que não será a última, que experimento esta sensação de derrota em meus empreendimentos. Na vida secular vi naufragar negócios que não tinham por onde dar errado, e, na melhor interpretação da lei de Murph, apareceu, como que do nada, algo que fez com que desse errado. Também não quero dizer que voltaria atrás arrependido, porque analisando as situações em que eu poderia estar, caso o desfecho fosse outro, vejo que faria tudo novamente da mesma maneira.

A essa altura vocês já devem ter notado que a reflexão que inicialmente chamei de nossa, não passa de um balanço do blog, do meu ministério e da minha própria vida. Desde já peço perdão por tomar o tempo de vocês que acessaram esta página com o intuito de encontrar uma mensagem minimamente proveitosa neste domingo. Contudo, espero que leiam com compaixão este grito de socorro, porque, após ter postado quase duzentas mensagens ao longo desses últimos cento e setenta dias, me sinto completamente perdido quanto aos rumos que devo dar ao blog. Falo desta forma porque a sensação de que estas mensagens tem expressado mais a minha necessidade de pregar do que propriamente a necessidade de vocês de as lerem é cada vez mais latente.

Embora, como todo mortal, gostaria imensamente de ver meu trabalho reconhecido, não são os números que me motivaram ou desanimaram até agora. Deus sabe disso. Mas isso não ameniza a minha necessidade de socorro. Que ela venha de onde vier, que ela seja percebida na sua justa medida, e que ela seja de benefício para o evangelho, mesmo que isso me custe ficar calado. Algumas vezes me recomendaram expressamente não falar sobre isso, mas eu não consigo, assim como também não consigo deixar de recalcitra-me contra os aguilhões. Numa tradução contextualizada, não consigo deixar de dar murros em ponta de faca.

Coisa dura para mim é recalcitrar-me contra os aguilhões. Estou encerrando, ou pelo menos interrompendo, esta reflexão pessoal para ir a igreja, o que faço quase todos os domingos. Talvez, nas entrelinhas de uma leitura ou oração, ou, quem sabe, na letra de um hino eu encontre uma resposta para esse dilema. Meu único e sincero pedido a vocês que ainda insistem em ler o que penso e escrevo, principalmente àqueles que ainda acreditam na oração, é que orem por mim no transcurso desses dias. Para que Deus novamente acenda em mim, não somente a necessidade de pregar a sua Palavra, como também que ela não volte para ele vazia. Mas antes prospere naquilo para o qual ela foi designada. 

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Inverno da vida III

Paulo e Barnabé, Ir. Teresa Groselj (??)
Leia II Tm 4
Mas Paulo ainda pede uma última coisa. Ele pede que lhe tragam Marcos. Aquele mesmo João Marcos com quem teve problemas na sua segunda viagem missionária. Enquanto Barnabé insistia para que Marcos fosse com eles na segunda viagem, Paulo dizia que não, porque Marcos os havia abandonado na primeira viagem, na Panfília. A discussão foi tão violenta que os dois se separaram, Barnabé foi com Marcos e Paulo levou Silas. Paulo era assim mesmo, meio pavio
curto. Nós podemos observar muita coisa que Jesus aturou que Paulo não aturaria não. Principalmente aquelas pessoas que chegavam para Jesus para pedir cosias básica, que dependiam exclusivamente delas mesmas. Se fossem pedir a mesma coisa para Paulo ele diria na cara delas: Vai trabalhar vagabundo! Paulo também era implacável contra certos adversários. Quanto ao tal latoeiro que lhe fez mal, ele disse: Pode deixar que Deus vai cuidar bem dele. Para os corintianos, como último recurso, ele diz de uma pessoa que estava perturbando a ordem naquela igreja: Entreguem esse homem a Satanás.


O problema maior é que aqui nas cartas a Timóteo ele não manda dizer não, ele fala pessoalmente. Sobre um tal de Alexandre e um tal de Himeneu, ele diz: Esses eu já entreguei a Satanás. Pode parecer estranho um cristão falar uma coisa dessas, aliás, eu nunca me atreveria a falar algo parecido. Mas foi Paulo quem disse, e eu não me sinto capaz de julgá-lo não. Se alguém quiser contestar Paulo, é bom que antes leia o que Jesus disse que pelos frutos conheceríamos aqueles que são seus discípulos, e os frutos de Paulo são incontestáveis. Não sei se o cristianismo vingaria, como vingou, senão tivéssemos um Paulo. Nós somos fruto do seu trabalho. A igreja, tal como a conhecemos hoje, livrou-se do judaísmo e de ser mais uma seita judaica graças ao seu trabalho entre os gentios. Por tudo isso fica difícil para nós entender essa personalidade, sei lá, vingativa e impaciente de Paulo.


Mas é certo também que ele tinha a capacidade de voltar a trás, de reconhecer o verdadeiro valor das pessoas, e de admitir que elas podiam mudar. Por isso ele quer de volta João Marcos. Mas do simplesmente querer a volta de João Marcos, Paulo agora mostra a sua necessidade de amigos. Tanto os amigos que colaboraram, quanto os amigos que criaram obstáculos; tanto os amigos que o confrontaram, quanto aqueles que o apoiaram; tantos os amigos de sempre, quanto os amigos que foram ficando pelo caminho. Agora ele os quer todos de volta. Não como críticos, não mais como o colaboradores, mas somente como amigos.


Da necessidade de ter amigos no inverno da vida nem mesmo Jesus escapou. Quando sentiu que o seu fim era iminente, Jesus chegou para as pessoas que acompanhavam há muito tempo e disse: Já não chamo vocês de servos, porque o servo não sabe o que seu patrão faz. Eu chamo vocês de amigos, porque toda a minha vida e tudo que aprendi do meu Pai, eu fiz com que vocês ficassem sabendo. Paulo repete estas fases dizendo: Para vocês eu não sou mais o apóstolo Paulo, e nem João Marcos mais meu discípulo. Tanto ele quanto vocês agora são meus amigos. Toda a divergência, todo confronto, todas as sequelas do nosso relacionamento ficaram pra trás. Tudo isso que aconteceu no calor da batalha, na hora em que a intransigência se fazia necessária, agora eu preciso de vocês como amigos. Paulo estende a mão num sinal de fragilidade: Eu preciso de vocês meus amigos. Nós já quebramos o pau, mas sem vocês esse inverno vai ser insuportável. Sem a sua volta, de que me adianta a capa? Eu vou ficar abrigado, mas sozinho. Sem a sua presença na minha vida, de que me valem os livros? Eu vou apenas falar sozinho


Eu queria terminar dizendo que não consigo imaginar que o compositor popular Zé Rodrix não tivesse na cabeça esse trecho da carta de Paulo quando compôs Casa no campo. As semelhanças são muito óbvias para não serem percebidas. E é como um tributo a Paulo, a mais essa pérola que ele nos deixou no final do seu ministério ativo que eu uso a letra dessa música para encerrar essa meditação.


Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais


Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais


Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos, meu filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal


Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau a pique e sapê
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros e nada mais


Que Deus nos abençoe, que nos faça enxergar na sua Palavra que as nossas necessidades reais são bem diferentes dos nossos desejos. E que ele nos dê coragem para não abrirmos mão delas, mesmo que os invernos que tenhamos que enfrentar sejam os mais rigorosos.

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Inverno da vida II

Paulo em Trôade, Teresa Groselj (??)
Leiam II Tm 4
Paulo também pede a Timóteo que lhe traga capa que deixou em Trôade, na casa de Carpo. Nós temos conhecimento de que Paulo não era uma pessoa abastada, não dispunha de um extenso guardaroupas. Portanto ele deve ter sido bem desligado pra esquecer uma, talvez única, capa que possuísse na casa de alguém. Mas não é o comportamento dele que está em questão, o
que importa é que Paulo aqui
mostra toda a precariedade do ministério cristão no seu tempo. Mostra como eram parcos os recursos que lhe estavam disponíveis. Mostra como era dura a vida de um missionário. Enquanto alguns pastores com 10 ou 15 anos de pastorado compram jatos de milhões de dólares e mansões em Miami, Paulo no final do seu ministério estava fazendo questão de ter de volta sua capa velha, surrada, apedrejada, resgatada de naufrágios e mofada após tanto tempo guardada.


Ele conta também nesta carta como pessoas simples o prejudicaram tanto. Fala de latoeiro, nem sei o que é isso. Na minha infância tinha os garrafeiros, homens que iam de porta em porta comprando garrafas usadas. Se o latoeiro catava latas, não deveria ser uma pessoa tão influente assim. Isso mostra a precariedade da sua autoridade como ministro do evangelho. Enquanto alguns pastores reúnem quinhentas mil pessoas num culto onde ordenam, repreendem e determinam, Paulo pedia a Deus que lhe abrisse uma porta para ele pregar o evangelho (Cl 4,3). Hoje em dia temos pastores com tanto poder nas mãos que até nos assusta. Tem na TV um cara grande, que usa um chapéu. Meu Deus, como aquele homem tem poder, como ele tem autoridade, como ele determina! E as suas igrejas então, como são poderosas! Não é Igreja Batista, Igreja Presbiteriana não. São igrejas universais, igrejas mundiais. E vocês, como Paulo, presos a uma igreja local de bairro, quando muito de uma cidade. Temos que mudar urgentemente aquele letreiro lá da porta. Claro que não estou falando sério.


Deixando de lado essas figurinhas carimbadas, voltemos a Paulo. Porque será que ele queria tanto aquela capa de volta? A capa tem que ter um significado maior, e aqui parece que ela representa aconchego e proteção. Proteção contra o inverno rigoroso da região, contra o frio. Mas a necessidade dessa capa pode ser entendida também como uma volta ao lar, a um lugar de tranquilidade, a um passado de aconchego e a uma situação de conforto que já havia experimentado outrora. Do ato de cobrir com capa é que surgiu a palavra capela. A cappella de São Martinho, a relíquia mais sagrada dos reis francos. Os seus guardiões era os cappellani, os capelães. Quando São Martinho colocou sua capa sobre um necessitado com frio, inaugurou assim a primeira capela que se tem notícia. Essa é a ideia da capa. Algo que fica por cima, que dá cobertura e, portanto, proteção.


Era essa proteção que Paulo precisava depois de ter vivido uma vida de riscos, de confrontos, de perigos e desafios. Uma lista resumida desses perigos pode ser encontrada em II Co 24, que vai de naufrágios a açoites, passando por apedrejamento, roubos, tempestades e leões também. Agora ele não quer mais enfrentamento, ele precisa de capa; não de confronto, mas de conforto, não de riscos, mas de aconchego. Precisa sentir-se em casa novamente. Paulo aqui expressa a necessidade que a pessoa tem de ter uma referência, um porto seguro, algo que, mesmo nos invernos da vida e nas adversidades, o mantenha seguro e que lhe traga sobre tudo boas lembranças.


Esse era o lado sentimental de Paulo que havia ficado ofuscado enquanto ele combatia o bom combate. Eram as paixões ficaram semissepultadas no período do seu ministério ativo. Eram as emoções que ficaram reprimidas em nome de algo maior, mais importante e mais urgente. Mas agora não, manda prá cá que eu as quero de volta. Eu quero a capa. E quem é que não quer uma capa depois de uma batalha ferrenha? Tem uma música da Marisa Monte que expressa bem esta necessidade de se apegar a vida através de emoções e de boas lembranças:
Deixa eu dizer que te amo
Deixa eu pensar em você
Isso me acalma, me acolhe a alma
Isso me ajuda a viver

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Inverno da vida I

Martírio de Paulo, Teresa Groselj (??)
Leiam todo capítulo quatro da segunda carta de Paulo a Timóteo
Este talvez seja esse o último escrito de Paulo antes do seu martírio em Roma. Embora saibamos que ele pouco escreveu de próprio punho, provavelmente pela sua letra que não deveria ser muito boa, percebemos que algumas diferenças ressaltam quando a usa lemos algumas de suas despedidas. É sabido que ele se valia de alguns escribas que estes tinham características próprias, sendo que um deles até foi mais afoito que todos os outros. Quando se imaginava ser Paulo quem está escrevendo a carta aos Romanos, o escriba carimba o texto
dizendo: Eu, Tércio, que escrevi esta carta também vos saúdo. Mas especificamente esta carta, que parece encerrar o ministério ativo de Paulo, se torna uma espécie de procuração para Timóteo, transferindo-lhe a responsabilidade de continuar a sua obra missionária. Paulo está dizendo que pôs um fim ao corpo a corpo na evangelização, encerrou o seu ciclo de viagens missionárias, e agora faz uma autoavaliação, faz um balanço, puxa o extrato de toda a sua trajetória, desde a sua conversão no caminho da Damasco até a sua prisão em Roma.

Na intimidade desta carta ele descreve situações bastante familiares a todos nós. Fale de como pessoas foram e voltaram em sua vida, mostrando alegria para com aqueles que permaneceram e se eximindo de culpa pela deserção de alguns outros. Após tantos desencontros não teria sido válido perguntar a essas pessoas porque elas o abandonaram? É bem provável que Tito dissesse que Paulo é um chato, que exige tudo nos mínimos detalhes, e que não há quem o aguente. Só ficou com ele Lucas, quem sabe por interesses pessoais. Tinha dois livros para escrever, e estando com Paulo, tanto as informações precisas como o sucesso dos livros estariam mais que garantidos. Mas isso é especulação minha, não a levem em consideração.

Paulo também contabiliza fatos bastante positivos, como a sensação de dever cumprido, de uma carreira coroada de êxitos e de um fechamento zerado, como se fala em contabilidade quando as contas batem: Combati o bom combate, encerrei a carreira, guardei a fé. Contudo, apesar de um tom de despedida da carta, muito se engana quem pensa que Paulo está oficializando a sua partida ou escrevendo o seu próprio epitáfio, como se a sua morte natural estivesse prestes, e os seus últimos dias fossem apenas uma longa e interminável espera. Ele tinha a consciência das ameaças de Nero que pairavam sobre si, ameaças que se cumpriram, pois foi decapitado por ordem desse imperador não muito tempo depois. Embora pareça que ele esteja transferindo totalmente para Timóteo a responsabilidade da evangelização dos gentios, isso não fica suficientemente claro, pois logo em seguida mostra que a sua preocupação está ativa nas recomendações e advertências que faz ao seu sucessor.

Mas apesar de tudo ele tenta apegar-se a vida. Na verdade o que ele quer agora é sua vida de volta, a vida que tinha deixado para trás quando se tornou um missionário. Para isso começa a juntar os pedaços que foram ficando pelo caminho. Toda a longanimidade pregada nas suas mensagens, toda a paciência que sempre recomendava parece que nesta carta ficaram esquecidas. Agora ele quer tudo com pressa, tudo agora é urgente. Ele quer tudo antes que chegue o inverno. Para uma pessoa que já havia passado por tantos invernos, não seria próprio perguntar que inverno é esse? Seria o inverno, a estação mais fria do ano, quando precisava estar mais abrigado, ou o inverno da própria existência? A mim me parece que são os dois. Parece-me que a sua preocupação está dividida entre esses dois invernos. Um fato que nós podemos comprovar simplesmente analisando os três pedidos que ele faz a Timóteo. Eu gostaria de meditar rapidamente sobre esses pedidos.

Paulo pede que lhe tragam os rolos e especialmente os pergaminhos. Para mim, uma clara alusão às duas tradições de escritos que dispunha na época: os rolos que representavam o AT, e os novos escritos sobre a vida e Jesus, inclusive os seus. Escritos que muito provavelmente vieram a compor o que chamamos hoje de NT. Aqui Paulo mostra mais o seu lado racional, a sua personalidade objetiva. Mesmo tendo encerrado a carreira, ele agora quer ler mais, estudar mais, aprender mais. Ele não quer se desligar da razão e viver somente de emoção, de louvor e contemplação. Não quer viver só de lembranças. Ainda quer experimentar coisas novas, quer passar por novas experiências de fé. Mas ao querer isso, ele cria uma situação de conflito, porque a razão não gosta da emoção, e a emoção foge da razão. Enquanto que a reclusão enlevava a sua alma para o emocional, para a contemplação, para o êxtase e lhe abria os olhos para uma visão do paraíso;,ele permite que os livros o puxem para baixo, de volta à razão, de volta à realidade. E qual era a realidade que se apresentava? A preocupação com a pregação fiel e insistente da Palavra de Deus para combater aqueles que não suportam a sã doutrina. Que pelo contrário, desviaram-se da verdade, prenderam-se a mestres que pregam aquilo que desejam ouvir. Desse conflito Paulo nunca se livrou. Não há idade para se resguardar do confronto com a heresia e a falsa doutrina. É uma luta que não permite descanso, muito menos aposentadoria. Ele precisa dos livros para se manter como um reserva da sã doutrina, atento às más influências de certas modernidades. Os falsos mestres não paravam de criar, não paravam de inovar, e a justa medida para combatê-los só pode ser encontrada na Palavra de Deus. Ela é o único parâmetro que guia fielmente a vida do cristão. Não é o desejo, a necessidade de cada um ou mesmo um milagre de grandes proporções. Como bem disse Abraão Lincoln: A minha preocupação não é se Deus está ao meu lado, e sim se eu estou ao lado de Deus, porque ele está sempre certo.

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Ser ou não ser?

Edwin Booth, no papel de Hamlet, 1870
Ler Mt 11,25-27 e ICo 1,26-19
O texto do evangelho do calendário litúrgico designado para hoje, que é Mateus 11,25-27, propõe uma ligação direta com I Coríntios 1,26-29. Em ambos os casos podemos observar que existe contrapontos entre a sabedoria e ignorância, e entre a fraqueza e a força. Assim como o público de Jesus, que era composto de gente de pouca cultura, os membros da igreja de Corinto representavam o que havia de menos importante para a
sociedade local. Paulo os define muito bem dizendo que não havia entre eles intelectuais, poderosos ou nobres, transformando-se assim em uma reedição atualizada do povo hebreu que foi liberto por Deus da escravidão egípcia. Ou seja, não é novidade alguma que Deus prefere se manifestar e agir no meio de gente simples e humilde, na expressão menos poética e mais realista destas palavras.

Este é o paradoxo da força do fraco, da sabedoria do louco e da importância do desprezível que Deus soube usar tão bem no transcurso da História. O paradoxo encarnado em Jesus, que diferentemente do que se tem tentado desde 380 A.C., quando Constantino instituiu o Cristianismo como religião oficial do Império Romano, vem rejeitando sistematicamente toda a forma de entronização, realeza e aristocracia de que insistem revesti-lo. Não são poucas as vezes que ele rechaçou qualquer tentativa do povo em torná-lo rei de Israel. O meu reino não é deste mundo, se o meu reino fosse deste mundo os meus ministros se empenhariam por mim, foi o que disse textualmente para Pilatos. E foi mais veemente ainda com Pedro: Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão. Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos? Falou isso para relativizar o maior poderio bélico de então: as seis legiões de soldados bem treinados e bem armados que os romanos possuíam naquela época.

Aqui tanto Jesus quanto Paulo respondem a questão filosófica do “ser ou não ser”, não deixando qualquer dúvida quanto a ser fraco em detrimento do ser forte. A fraqueza e o despojamento são características essenciais do cristão, uma vez que o evangelho é essencialmente para os doentes, para os moralmente fracassados e para os amaldiçoados pelo poder. Basta somente que observemos quem são aqueles para quem Jesus destina as bem aventuranças e quem são os que adverte com o inquietante “ai daquele”. Deus não é de forma alguma um multiplicador de forças, por conta disso, um ditado popular que diz: Deus não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos, que tomou relevância de um versículo bíblico, cai inexoravelmente por terra. Deus não capacita seus escolhidos, os envia como são e como estão para que executem a sua a sua divina vontade sem qualquer capacidade ou mérito. Quando estou fraco, aí é que estou forte, disse Paulo em seu próprio nome. Porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza, complementa em nome de Deus, para que não digas jamais no teu coração: A minha força e o poder do meu braço me adquiriram riquezas. (Dt 8,17)

Mas há também outro paradigma a ser derrubado na questão do “ser ou não ser”. Jesus também por mais de uma vez louvou a Deus por este ter se revelado aos ignorantes do sistema enquanto embotava a inteligência dos sábios deste mundo. Embora esta seja uma proposta antiga na história da salvação, ela só começou a ser percebida, denunciada e lamentada por Isaías, ainda antes da queda de Samaria, mais precisamente no ano da morte do rei Uzias. A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim. Então, disse ele: Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. Então, disse eu: até quando, Senhor? 

É claro que não está se tratando aqui do avanço da ciência ou das conquistas tecnológicas que facilitam e valorizam a vida. Não se trata também do esforço que a razão humana empreende para entender e explicar a sua realidade. Trata-se sim das artimanhas que o mundo contra Deus engendra para justificar e até para intensificar a disparidade entre riqueza e pobreza, força e fraqueza, conhecimento e alienação. Não poucos foram os déspotas da História que se pautaram pelo “ser ou não ser” do conhecimento, sob a premissa maquiavélica do “conhecimento é poder”. É neste sentido que Deus ordena para que Isaías em sua profecia denuncie que o que realmente importa, está sendo cada vez mais ocultado dos olhos do poder e revelado aos despojados e destituídos desse poder.

Um hino muito conhecido, e cuja letra recebeu nossa língua várias versões, uma deles delas diz o seguinte:
Da vaidade fiéis servos,
Lutam por fazer nos seus;
Muitas vezes nos assaltam
Os modernos fariseus.
Mas se alguém procura ver-nos
Sem a graça do bom Deus,
Vencendo vem Jesus!

O ser cristão é ser nova criação para definitivamente inverter e subverter os valores da criação antiga, onde a força é usada senão para erguer o fraco e a sabedoria, apenas para dar sentido à vida. Talvez o momento decisivo de Shakespeare em Hamlet, seja onde ele intui que todo esforço para ser se perde num vazio ativista e inconsequente, e desta forma conclui seu raciocínio:

O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.

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Suzana, a mãe de João Wesley

Suzana Annesley Wesley (1669-1742)
Trecho do livro Mulher, grande é a tua fé escrito por João Wesley Dornellas em 2006. 
A mãe de João Wesley teve uma importância grande em sua vida. Casou-se, com 20 anos, com Samuel Wesley, em 1689, no mesmo ano em que ele foi ordenado ministro da Igreja Anglicana. Seu pai, o Dr. Samuel Annesley, era um dos mais importantes líderes do grupo não conformista. Apesar de toda a herança não conformista, Samuel Wesley e Susanna optaram pela igreja oficial. Depois de servir em Londres por um ano e de ter sido,
também durante um ano, capelão a bordo de um navio, Samuel recebeu a paróquia de Epworth, no condado de Lincolshire, na qual ficou até morrer.

Susanna teve dezenove filhos mas a maioria deles morreu ao nascer ou logo depois. Quando João nasceu, o segundo menino, seus irmãos vivos eram Samuel e as meninas Emília, Susana, Mary e Mehetabel. Era hábito de Susana, no dia em que os filhos completavam cinco anos, ensinar-lhes o alfabeto e, em seguida, utilizando a Bíblia, a ler. Um dos acontecimentos que, sem dúvida, marcaram a vida de João Wesley e sua grande ligação com a mãe, foi o incêndio da casa pastoral, que ocorreu no dia 9 de fevereiro de 1709, quando Wesley ainda não tinha seis anos. O fato é que alguns paroquianos, insatisfeitos com o pastor, colocaram fogo no prédio enquanto a família dormia. Quando todos já se encontravam fora da casa, notou-se a falta do pequeno Jack – era assim que família lhe chamava – que dormia no segundo andar. Tentaram resgatá-lo, mas era impossível pois a escada de madeira já estava em chamas. Samuel pediu aos que estavam ali para ajoelhar-se e pedir a Deus para que recebesse em seu seio a alma de seu filho. De repente, ouvem o choro do menino que, subindo numa cômoda, chegava à janela do seu quarto. Fizeram então uma escada humana, um homem nos ombros de um outro, e salvaram o menino. Logo em seguida, o teto caiu em chamas para dentro de casa.

Esse episódio deu a Susana, que via no salvamento do filho algum objetivo de Deus em relação a ele, uma preocupação maior com a educação de João Wesley. Em oração que escreveu logo depois do incêndio, ela dizia: “pretendo ser particularmente cuidadosa, como nunca antes, com a alma desta criança, que tu tens cuidado tão misericordiosamente, para que eu possa inculcar em sua mente os princípios da verdadeira religião e virtude”. Além dos seus afazeres como mãe de tantos filhos, ela tinha uma preocupação muito grande com a Igreja. Pregava muito bem, o que aborrecia seu marido. Chegava a reunir na sua casa mais de 200 mulheres. Samuel ordenou-lhe que parasse e ela exigiu uma ordem formal, para que a responsabilidade perante Deus caísse sobre a cabeça dele e não dela. Ela continuou pregando.

Quando João Wesley se formou, ainda não tinha definido que profissão escolher. A sua posição de lente lhe permitia escolher entre as mais importantes da época, o Direito, a Medicina ou a Igreja. A Igreja foi para ele inevitável e ele foi ordenado diácono no dia 19 de setembro de 1725. Pregou o seu primeiro sermão em South Leigh, pequena vila na vizinhança de Whitney.Em 1726, foi nomeado professor de grego e presidente das classes. Grande parte desse ano ele passou em Epworth ajudando seu pai na Igreja. Era sonho de Samuel transmitir-lhe por “herança” a sua pequena paróquia. Wesley, contudo, volta a Oxford, onde recebeu o grau de Mestre em artes em 1727.

Ao tomar sua decisão pelo ministério pastoral, Susanna lhe aconselhou: “o verdadeiro fim da pregação é endireitar a vida dos homens e não entulhar as suas cabeças com especulação inútil”. Em agosto de 1727, volta a Epworth, onde passa dois anos ajudando seu pai. Anos depois, em avaliação do seu trabalho naquele período, ele dizia com sinceridade : “preguei muito, mas vi pouco fruto do meu trabalho. Nem podia ser de outra forma, pois eu nem firmava as bases do arrependimento nem a fé no Evangelho, julgando que aqueles a quem eu pregava fossem todos crentes, e que muitos deles não necessitassem de arrependimento”.

Iniciado o movimento metodista, logo depois da morte de Samuel, Suzana foi uma grande colaboradora de seus filhos João e Carlos. De uma certa forma, ela foi responsável por uma das grandes novidades do metodismo, responsável por seu grande crescimento,ou seja, a pregação dos leigos. Pregação era coisa de ministros ordenados e não de leigos. Wesley também pensava assim. No princípio, só os pastores ordenados é que participavam das atividades da pregação. O problema é que o número de sociedades e de fiéis crescia mais do que o de pastores ordenados pela Igreja da Inglaterra. Comoo Movimento Metodista não era uma igreja legalmente constituída, só eram utilizados os pastores daquela igreja que tivessem aderido a ele. Não eram muitos. Além de sua mãe Susanna, que ensinava e pregava,apareceu, logo no início, um jovem que pregava muito bem. Seu nome era Thomas Maxfield, hedreiro de profissão. Wesley havia feito uma longa viagem. Quando soube que havia um homem sem ordenação eclesiástica pregando na Fundição, ele mudou seus planos e, de Bristol, voltou incontinente para Londres para pôr fim a tal desordem. Quem evitou o atrito foi Susanna, mãe de Wesley, que lhe deu um sábio conselho: “Tem cuidado, João, com o que vai fazer daquele jovem, pois ele é certamente tão chamado para pregar como tu. Examina quais os frutos de sua pregação e, então, ouve-o tu mesmo”. Aceitando o conselho, ouviu Maxfield e afirmou: “É do Senhor, faça Ele como lhe aprouver” A partir daí, os leigos foram admitidos nas sociedades como pregadores. Cinco anos depois, ou seja, em 1744, já eram mais de quarenta os pregadores leigos que Wesley usava. Enquanto ele e Carlos viajavam de um lado para outro da Inglaterra, os pregadores leigos cuidavam das sociedades e pregavam a Palavra.

O amor que Wesley dedicava a sua mãe era muito grande. Muitas vezes ele disse que gostaria de morrer antes dela, para não ter o sofrimento de perdê-la. Suzana faleceu com 73 anos no ano de 1742, logo no princípio do Movimento Metodista. Mesmo assim, com seu exemplo e dedicação, ela é considerada uma das mulheres mais importantes do Metodismo. Vale a pena conhecer a sua história e as suas realizações.

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Marta e Maria – escolheram a melhor parte

Marta e Maria, Tintoretto (1518-1594)
Trecho do livro Mulher, grande é a tua fé escrito por João Wesley Dornellas em 2006.
Lázaro e suas irmãs Marta e Maria viviam em Betânia. Muitas vezes Jesus os visitou. Aquela família era muito amiga de Jesus. Vamos no ater, porque esse é o objetivo deste texto somente às duas mulheres. O primeiro texto, de Lucas 10, narra uma daquelas visitas de Jesus. Maria ficou sentada aos pés de Jesus, escutando-lhe com atenção. Marta, por sua vez, estava atarefada nas coisas da casa, como qualquer mulher ao receber hóspede tão importante. Marta queixa-se a Jesus de que sua irmã não a estava
ajudando. Jesus a repreende dizendo: “Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário, ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte e esta não lhe será tirada”.

A partir desse texto, criou-se um critério de valorizar Maria contra Marta. E poucos se lembram de que esse texto vem logo depois da parábola do bom samaritano, na qual as obras de benignidade são não apenas elogiadas, mas também recomendadas. O objetivo de Lucas não seria dizer que uma é melhor do que a outra mas, apenas, que uma é diferente da outra e cada uma delas tem o seu lugar de honra entre os discípulos de Jesus. Por isto, as mulheres desejam ser como Maria e não como Marta e isto talvez reflita, de algum modo, uma certa revolta contra os trabalhos caseiros, que afadigam, são mal reconhecidos e que têm ser repetidos a cada dia.

Até Santo Agostinho vai nesse tom de crítica a Marta, por não reconhecer a natureza de Jesus. Para ele, em seu sermão 104, “Marta é uma imagem da posse; Maria a da Esperança”. France Quéré, em “As mulheres do Evangelho”, diz que Marta, para espanto seu, vê a distância repentinamente estabelecida entre Maria, discípula, e ela, serva. Em João 11:2, é narrado que Maria, imã de Lázaro, havia ungido os pés de Jesus com perfume e os enxugou com os seus cabelos, o que dá, como disse Donald English, “um toque comovente à afeição de Jesus por todos daquela família”. Aquele capítulo, até o versículo 46, acaba redimindo Marta das acusações que se lhe faziam e mostra de maneira bem clara não só a sua grande fé, mas o conhecimento da Escritura e da missão de Jesus É o texto que se encontra em João que comprova isto. Na realidade, não se pode colocar uma irmã sobre a outra. “Marta mostra vontade e opinião. Maria mostra emoção”, nos diz Donald English. É como se João nos quisesse mostrar que, sozinhas, nenhuma das irmãs seria capaz da afirmação integral que Jesus esperava mas que, juntas, conseguiram.

A tentação de Maria em aproveitar o máximo possível da conversa com Jesus, como indicado no texto de Lucas, tem muito parentesco com a reação de João, Tiago e Pedro por ocasião da Transfiguração de Jesus. Eles já queriam arranjar tendas para Jesus, Moisés e Elias e aproveitar, com muita atenção, as conversas entre Jesus e eles. Isto era uma tentação porque a missão estava no vale, onde moravam as pessoas, que careciam do amor de Deus, e não naquele monte. No episódio da morte de Lázaro, Marta foi esperar por Jesus no caminho e Maria quedou-se em casa. Disse, pois Marta a Jesus, “Senhor, se estiveras aqui não teria morrido o meu irmão. Mas também sei que, mesmo agora, tudo quanto pedires a Deus, Deus to concederá”. Esta foi uma afirmação de fé, de muita fé. E provocou uma resposta de Jesus que é fundamental para o entendimento de quem ele era e de sua promessa de amor: “Eu sou a ressurreição e a vida, quem crê em mim, ainda que morra, viverá”. Jesus lhe pergunta se ela cria nisso e sua resposta mostra sua fé: “Eu tenho crido que tu és o Cristo, o filho de Deus”.

De qualquer forma, sem que se discuta a superioridade de uma sobre a outra, porque todos temos diferentes dons, diferentes talentos, diferentes temperamentos e até diferentes personalidades, nós também somos chamados a ser amigos de Jesus. Elas são, cada uma à sua maneira, por terem sido sempre amigas de Jesus, um exemplo para nós.

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A mulher samaritana

Águas vivas, Simon Dewey (1962-)
Trecho do livro Mulher, grande é a tua fé escrito por João Wesley Dornellas em 2006.
Estamos falando do surpreendente encontro de Jesus com a mulher samaritana à beira do poço de Jacó, em Samaria. Jesus e seus discípulos estavam caminhando da Judéia, ao Sul, para a Galiléia, ao Norte. Passaram por Samaria, território historicamente hostil aos judeus, apenas para ganharem tempo. Se a tivessem evitado, gastariam seis dias e não três.
Preferiam, portanto, o caminho mais curto. Numa bifurcação da estrada, perto de Sicar, está o que se conhece pelo nome de poço de Jacó. O local, que não lhes pertencia, tinha, contudo, muita importância histórica para os judeus. Ali havia terras que foram compradas por Jacó (Gn 33:18-19). Em seu leito de morte, Jacó deixou aquelas terras para José (Gn 48:22). Depois de sua morte, o corpo de José foi levado para ser enterrado ali (Js 24:32). O poço tinha cerca de 30 metros de profundidade. O calor era forte e era meio dia, a hora sexta dos judeus.

Enquanto os discípulos foram ao centro da cidade para comprar alimentos, Jesus para à beira do poço para descansar. Uma mulher samaritana aproximou-se do poço. Por que teria ela vindo àquele poço? Provavelmente haveria um outro poço perto de sua casa. Talvez sua má reputação fizesse com que fosse discriminada por outras mulheres. O fato é que ela chega a um poço distante e na pior hora, a mais quente do dia, para apanhar água. Trazia certamente algo com que apanhar a água no fundo, possivelmente um saco feito de couro ao qual se amarrava uma corda. A água assim extraída era transportada num cântaro para casa.

Jesus, com sede (e é possível que os discípulos tivessem levado consigo o saco de couro que certamente possuíam), pede à mulher que lhe desse de beber. A resposta da mulher foi muito clara: “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim que sou mulher samaritana?”. Porque os judeus e os samaritanos não se davam bem. E nos costumes dos dois povos, nenhum homem dirigia a palavra a uma mulher. A resposta de Jesus aprofundou a conversa: “Se conheceras o dom de Deus e quem é que te pede “dá-me de beber”, tu lhe pedirias e ele te daria água viva”.

Coisa curiosa é que essa conversação de Jesus com a samaritana segue exatamente o mesmo esquema da conversa que ele tivera, algum tempo atrás, com Nicodemos. Jesus faz uma afirmação, que não é entendida e sim tomada num sentido incorreto. Jesus repete a afirmação de maneira mais clara, mas não consegue ser interpretado corretamente. Jesus então obriga a pessoa com quem está falando a descobrir e enfrentar a verdade por si mesma. Tal como Nicodemos, a mulher tomou as palavras de Jesus num sentido literal, sem conseguir compreendê-las no plano espiritual. Água viva, para as pessoas comuns, significava simplesmente água corrente, de um rio ou de uma fonte, não a água de um poço ou de um pântano. É claro, a água viva era sempre melhor. E a mulher lhe pergunta como lhe daria essa água se não tinha com que tirá-la do poço que era bem fundo. “Onde, pois, tens a água viva?”

Ela agora lhe fala do patriarca Jacó e pergunta se o viajante era maior do que ele. A resposta de Jesus não foi exatamente sobre o que ela perguntou. Ele lhe disse: “Quem beber desta água, tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede, para sempre; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar pela vida eterna”. E ela, ainda sem entender exatamente o que Jesus lhe queria dizer, pede que ele lhe dê dessa água, para nunca mais ter que vir buscá-la do poço. Os samaritanos só aceitavam os cinco primeiros livros da Bíblia, os chamados livros da Lei. Por isto, ela desconhecia todo o significado espiritual da expressão água viva. A promessa era que o povo escolhido tiraria com alegria as águas das fontes da salvação (Is 12:3); o salmista falava de sua alma sedenta de Deus, do Deus vivo (Sl 42:1). A promessa de Deus era: “E eu derramarei águas sobre o sedento” (Is 44:3). O chamado dizia que todo aquele que estivesse sedento devia ir às águas e bebê-las gratuitamente (Is 55:1). Jeremias se queixava de que o povo havia abandonado a Deus, fonte de água viva, e cavara cisternas rotas, que não contêm as águas (Jr 2:13); Ezequiel teve a visão das águas purificadoras, o rio da vida (Ez 47: 1-12); Zacarias, por sua vez, dizia que o novo mundo abriria uma fonte para remover o pecado e a impureza (Zc 13:1) e que as águas vivas brotariam de Jerusalém (Zc 14:8). “Não terão fome nem sede”, proclamava Isaías (Is 49:10); “Contigo está o manancial da vida”, exclamava o salmista (Sl 36:9); e Isaías profetizava: “a areia em brasa se transformará em lagos, e a terra sedenta em mananciais de água (Is 35:7). Os rabinos antigos identificavam essa água viva com a sabedoria de Deus. Outras vezes, a identificavam com o Espírito Santo de Deus.

Essa ideia de que a sede da alma que só se poderia satisfazer com a água viva que era o dom de Deus não fazia parte da cultura e da experiência daquela mulher. Jesus incompreendido, muda o tom da conversa: “vai, chama o teu marido e vem cá”. Isto foi um choque para a mulher porque, de repente, Jesus a estava chamando à realidade do seu dia-a-dia. Ela foi obrigada a confessar que não tinha marido. E Jesus, ainda incisivo, lhe diz que isto era verdade, mas que ela tinha tido cinco maridos. Só aí a mulher percebeu que não estava falando com qualquer um e lhe disse: “Senhor, vejo que és profeta”. Pega no seu pecado, ela muda de assunto e pergunta a Jesus se Deus deve ser adorado no Monte Gerizim, onde Abraão esteve perto de sacrificar Isaque, e era um local sagrado para os samaritanos, ou no monte Sião, em Jerusalém, lugar sagrado pelos judeus.

A conversa vai chegando ao ponto que Jesus planejara. Dizendo-lhe que os verdadeiros adoradores adoram em espírito e em verdade – e isto nada tem a haver com o local da adoração – porque são estes que o Pai procura para seus adoradores, a mulher, começando a compreender as coisas, lhe diz: “eu sei que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas”.

Finalmente, Jesus faz-lhe a declaração: “eu o sou, eu que falo contigo”. A mulher descobriu, atônita, que a declaração de Jesus não era um mero sonho mas a verdade mesma. E dali para a frente, tudo iria ser diferente. Nesse ponto, os discípulos chegam de volta e se surpreendem, mesmo sem fazer nenhum comentário, de vê-lo conversando com uma mulher. Ela, deixando o seu cântaro, foi à cidade e anunciou aos homens com quem se encontrou: “Vinde comigo, e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será este, porventura, o Cristo?”. Os homens foram ter com Jesus e creram nele, em virtude do testemunho daquela mulher. Pediram e Jesus permaneceu com eles dois dias. Muitos creram nele por causa de sua palavra e diziam à mulher: “já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do Mundo”.

A mulher samaritana, cujo nome será sempre desconhecido, se transformou, ao conhecer Jesus, numa verdadeira evangelista. Não só entregou a sua vida a Cristo, mudou de vida, mas imediatamente levou outros a conhecê-lo. O primeiro instinto da mulher samaritana foi repartir a sua experiência. Barclay nos diz que a vida cristã se baseia em dois pilares gêmeos, o descobrimento e a comunicação. “Nenhum descobrimento é completo até que nossos corações se encham do desejo de reparti-lo, mas não podemos comunicar Cristo aos outros até que o tenhamos descoberto para nós mesmos. Os dois grandes passos da vida cristã são, em primeiro lugar, encontrar a Cristo e, em segundo, falar dele”.

Como a samaritana, um homem pode esconder o seu pecado, mas quando encontra a Jesus Cristo e o reconhece como seu Salvador, seu primeiro instinto è dizer aos outros: “Vede o que eu era e olhai para o que sou agora: é isto o que Cristo tem feito por mim”. Assim era Jesus, um homem sem preconceitos, nem contra as mulheres e nem para com os estrangeiros, quaisquer que fossem os seus erros, que ele estava sempre disposto a perdoar e conceder a chance de um novo nascimento. Essa história nos mostra que a mulher samaritana, uma das grandes mulheres da Bíblia, é um exemplo de cristã. Precisamos todos, homens e mulheres, ser evangelistas como ela foi.

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