O que é IRA?

A ira do homem geralmente é reprovada pelas Escrituras. No Primeiro Testamento, sobretudo nos livros sapienciais: Pv 15.18 - O homem iracundo suscita contendas, mas o longânimo apazigua a luta. O motivo indicado muitas vezes é utilitarista; a ira é perigosa porque causa prejuízo.
Caim fugindo da ira de Deus, William Blake em 1809
Também a tradição hebraica condena a ira, pois o homem perde o domínio de si mesmo, e se deixa levar pela má paixão. Assim ele pode chegar a toda espécie de pecado, inclusive a idolatria. O Segundo Testamento também proíbe a ira, baseado no fato de que o amor a exclui: Ef 4.31 - Longe de vós, toda amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias, e bem assim toda malícia.

Existe, contudo, uma ira santa, da qual o próprio Jesus deu exemplo: no modo como fala dos fariseus e na sua conduta com os cambistas do templo, assim como dirige um olhar irado a todos os que com hipocrisia contestavam o seu ministério: Mc 3.5 - Olhando-os ao redor, indignado e condoído com a dureza do seu coração, disse ao homem: Estende a mão. Estendeu-a, e a mão lhe foi restaurada.

Existe também um sentimento de Deus que se manifesta no seu juízo que é, através de um antropomorfismo exagerado, chamado de ira. A ira de Deus é a sua reação contra tudo que atenta contra a sua santidade e justiça. Normalmente descrita como uma paixão veemente, precisa descarregar-se e voltar à calma: Ez 16.43 - Visto que não te lembraste dos dias da tua mocidade e me provocaste à ira com tudo isto, eis que também eu farei recair sobre a tua cabeça o castigo do teu procedimento, diz o SENHOR Deus; e a todas as tuas abominações não acrescentarás esta depravação.

Como todos os povos da antiguidade, os hebreus atribuíam à ira de Deus todas as calamidades que os sobrevinham, mas ainda assim reconheciam que a ira do Deus de Israel não era um rompante de mau humor ou ciúme, como era comum aos deuses pagãos que não se importavam com a conduta humana. Para eles a ira de Deus poderia ser incompreensível, mas nunca satânica, pois, em última análise, era a revelação da justiça divina que condenava o pecado: Naum 1.6 - Quem pode suportar a sua indignação? E quem subsistirá diante do furor da sua ira? A sua cólera se derrama como fogo, e as rochas são por ele demolidas. Mantiveram sempre consigo a esperança de que no Dia do Senhor, que também era chamado pelos profetas de Dia da Ira, Deus se voltasse apenas contra os povos opressores de Israel, e que convertesse a ira em perdão para o povo.

No Segundo Testamento, a ira é um aspecto essencial para a compreensão de Deus. A pregação da misericórdia se junta à pregação sobre a ira. Só quem conhece a grandeza da ira de Deus pode avaliar a grandeza do seu amor misericordioso. Inspirando-se nos profetas, os autores do Segundo Testamento usam o termo ira geralmente no sentido escatológico. A ira provocada pela pecaminosa conduta da humanidade está guardada para os tempos da consumação: I Ts 1.10 - e para aguardardes dos céus o seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra da ira vindoura. Exponencialmente aumentado pela lei, o pecado trona-se ainda mais culpado, não restando alternativa ao homem, senão na graça de Deus: Rm 5.20 - A lei veio para aumentar o mal. Mas, onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda.

É pela reconciliação com Deus através de Cristo que escapamos à ira. O texto de João 3.18 - Aquele que crê no Filho não é julgado; mas quem não crê já está julgado porque não crê no Filho único de Deus, parece ser um simples jogo de palavras, é a explicação mais lógica do binômio ira-misericórdia. Na realidade, não é Deus quem está exercendo o julgamento, pelo contrário, através da entrega do seu Unigênito está colocando ao alcance de todos a sua misericórdia. Aquele que não a aceita, ou aquele que não leva é conta que é uma oferta gratuita, condena a si mesmo a viver em um mundo que desconhece a misericórdia, e onde a ira prevalece absoluta sobre todas as coisas.

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Parábola das dez virgens

Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão-se apagando. Mas as prudentes responderam: Não, para que não nos falte a nós e a vós outras! Ide, antes, aos que o vendem e comprai-o. E, saindo elas para comprar, chegou o noivo, e as que estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta. Leia Mateus 25.1-13
Parábola das dez virgens, Walter Rane
Esta é parábola na realidade de hoje se chamaria a história verídica dos sem gás. Por que quem de nós já não ficou no escuro sem vela, no meio da rua sem gasolina, do lado de fora do carro e as chaves do lado de dentro e no trabalho sem a mínima disposição? Quem é que já não disse para si mesmo: hoje eu estou sem gás? Com toda a tecnologia que dispomos contra os blackouts da vida isso seria quase que indesculpável, mas no tempo de Jesus não era bem assim. Não dava para prever com exatidão quando uma lamparina iria necessitar novamente repor seu combustível. Então a pergunta é a seguinte: Se nós conseguimos nos perdoar todas as vezes e por todos os motivos que ficamos sem gás, por que, num evangelho de amor indescritível e de perdão incondicional as cinco virgens imprudentes ficaram fora da festa?

Quem primeiramente levantou esta questão para mim foi o saudoso amigo João Wesley. Esta postagem pode ser creditada a ele, bem como a seguinte dúvida: não teria esta parábola um significado maior do que condenar sumariamente cinco moças que na aflição do agito de um grande dia esqueceram na mesa o vidro de azeite? Está mais do que claro que o contexto é o final dos tempos, que, na interpretação de muita gente, virá de supetão, porque teria que sem uma exata reedição da arca de Noé, pegando todo mundo literalmente de calça na mão.

Porém, antes de bater o martelo precisamos considerar alguns aspectos que estão omitidos nesta seletiva parábola. De onde vem o noivo? Que lugar é esse em que as dez virgens ficam à espera? O que vai acontecer de bom para elas nesse lugar? Qual a importância das lamparinas nessa situação? E o principal: onde está a noiva? Por outro lado, quem tem o direito de chegar atrasado ao casamento é a noiva. E é ela também que delibera sobre as suas damas de honra. E ainda há um terceiro aspecto: os casamentos daquela época pouquíssimas semelhanças tem com os casamentos de hoje.

Sem entrar nesses detalhes, eu queria falar do principal motivo da exclusão, que é a lamparina apagada. Na realidade, o texto não fala exatamente em lamparinas, mas em tochas, que é bem maior e bem mais brilhante. A palavra usada aqui descreve o mesmo utensílio usado pelos homens que vieram prender Jesus. Era algo para quebrar a escuridão da noite no campo, e não para ser usado dentro de casa. Elas eram abastecidas com betume de petróleo, e não com azeite.

Parece que a questão aqui é de uma iluminação crucial, onde nem mesmo dez lamparinas seriam suficientes.  Então teríamos na parábola cinco virgens com lamparinas de óleo e cinco outras com tochas de betume. Como Jesus não está contando esta parábola para os seus inimigos escribas e fariseus, e sim para os mais chegados, podemos identificar bem dois momentos da vida cristã. Um dentro da igreja, onde pequenas luzes são suficientes para iluminar a todos. Mas existe também o momento da caminhada na escuridão de um mundo adverso. Existe a hora em que precisaremos de muito combustível para conseguir manter as nossas lâmpadas acesas. Chegará o momento em que precisaremos de muito gás do que o normal.

O texto fala de uma caminhada no escuro, em que fatalmente nos perderíamos, caso nos faltasse o gás necessário. Uma caminhada perigosa, fora do conforto e da contribuição das pequenas luzes dos irmãos da fé. Talvez o maior risco dessa caminhada não fosse exatamente o de batermos na porta certa e ficarmos, por um tempo, do lado de fora, e sim o de batermos na porta errada e ficarmos iludidos por toda a eternidade.

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O que é melhor: consolo ou desafio?

Eu sou pobre e necessitado; ó Deus, apressa-te em valer-me, pois tu és o meu amparo e o meu libertador. SENHOR, não te detenhas! Leia Salmos 70
Cristo cura o paralítico, Jacopo Bassano  em 1571
Texto do Rev. Jonas Rezende extraído do livro Salmos para o Coração.
Francisco Penha Alves, meu professor de ética no curso de Teologia, ao comentar o trabalho pastoral de um brilhante colega, não deixou também de formular uma crítica positiva: as mensagens dele são muito bem feitas, revelam o gênio, disse o professor. Faço apenas um reparo à sua atuação como um todo: ele desafia, mas não consola. E há tanta gente que precisa ser confortada.

O velho pastor ilustrou sua observação com um apelo de Jesus: venham a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei, tomem sobre vocês o meu fardo e aprendam de mim, que sou manso e humilde de coração, e acharão conforto para a vida, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.

Leia com atenção esse curto salmo. Davi suplica a Deus socorro e auxílio. O salmista se sente satirizado pelos que se comprazem no seu mal, e ainda dizem: Bem feito! Bem feito! Apesar de ser a maior autoridade do seu povo, o rei Davi está sofrido, esmagado e atingido pela maldade. E registra no salmo que escreve: eu sou pobre e necessitado... tu és meu amparo e meu libertador.

Deus é amparo e consolo de todos os que nele confiam. Em outros salmos, o poeta volta a esse tema: responde-me quando eu clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia tu me alivias.

Ser consolo e amparo, neste caso, não significa que o Senhor corresponde à nossa febre burguesa de consumo: casa própria; automóvel; uma confortável conta no banco. Ele também não legitima a religião como muleta e não endossa essa mentalidade conservadora, que vê o mundo como um campo inimigo minado, só visitado no dia-a-dia, porque temos de assegurar a nossa subsistência. Deus nos consola porque está conosco e nos aceita como somos e como estamos. O seu amor traz um sentido superior e eterno para todos os gestos da nossa vida.

Mas ele é também um desafio, porque nos liberta, como descreve Davi neste salmo. E espera que administremos, com responsabilidade ética, a nossa liberdade. Jean-Paul Sartre afirma que somos condenados à liberdade, porque há um desafio implícito no fato de sermos livres. Esta é a razão porque os animais domésticos quando perdem, em grande parte, a sua liberdade de origem, deixam de ser o que são na Natureza. E porque os passarinhos que nascem em cativeiro não voam para longe, ainda que a porta da gaiola esteja aberta. Se o ser humano for domesticado, embota-se a sua liberdade e todos os desejos; não é mais atingido pelos desafios, e seus sonhos morrem melancolicamente...

Veja bem. Uma fé que se restringe apenas ao desafio sem consolo termina em ativismo, torna-se subalterna diante das diferentes ideologias; por fim, institucionaliza-se e morre.

Por outro lado, uma fé que se resuma em consolo sem desafio estimula o comodismo alienado diante de um mundo diante de tantas demandas e carências. Por isso mesmo, palco de nossa ação.

Consolo e desafio são dimensões ou vertentes da fé que age por amor. Na parábola do bom samaritano, contada por Jesus, os dois tipos estão entrelaçados de modo indivisível. O homem assaltado era um desafio que ninguém queria aceitar. O samaritano para a sua viagem e salva da morte aquele em quem reconhece o seu próximo.

E o Cristo diz aos seus ouvintes:

Vá e faça da mesma maneira.



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Agostinho, o santo universal

Vivamos decentemente, como pessoas que vivem na luz do dia. Nada de farras ou bebedeiras, nem imoralidade ou indecência, nem brigas ou ciúmes. Romanos 13.13
Santo Agostinho e Santa Mônica, Assereto Gioachino (1600-1649)
Mais uma vez, a carta de Paulo aos Romanos influiu decisivamente na História da Igreja. Assim como mais tarde aconteceu com Lutero e John Wesley, Agostinho teve a sua vida transformada a partir da leitura deste pequeno trecho das Escrituras. Apesar da casa do bispo ser um local propício; apesar da estranheza da ordem que na voz de uma criança lhe dizia: pegue e lê; apesar da Bíblia estar aberta no texto no texto acima; as circunstâncias da sua conversão serem as mais inusitadas, mais marcante ainda foram as suas palavras após a leitura: Eu não pude ler mais. Nem precisava ler mais. Porque num instante, como se fosse uma luz brilhante, uma segura entrou no meu coração e toda a escuridão da minha vida desapareceu. Minhas dúvidas desapareceram.

Que forças podem transformar um anônimo beberrão em uma das maiores celebridades do pensamento filosófico da história da humanidade? Que luz é essa que tem o poder de transtornar tão radicalmente a vida de quem já tinha um destino trágico previsivelmente traçado? A quem chame de carma, ou mesmo de feliz coincidência, mas quem é cristão não pode atribuir a outra coisa, senão ao poder da oração. Porque a transformação de Agostinho não começou no jardim da casa do bispo Alipius e nem mesmo na hora em que ele ouviu a voz da criança, ou quando se deparou com a Carta de Paulo aos Romanos. A sua conversão começou quando as lágrimas começaram a escorrer no rosto de sua mãe, quando em prantos não cessava de dirigir a Deus fervorosos pedidos em favor deste filho, em oração.

Tão mais convincente que a fase posterior da conversão de Agostinho, foram as primordiais orações de sua mãe. Não é possível que um filho de tantas lágrimas se perca. Estas foram palavras de consolo dirigidas a Santa Mônica, que incansavelmente, há dezessete anos, orava pela conversão de seu filho. Foram as palavras que a sustentaram na firme convicção de que o perdido filho Agostinho, a salvação de Deus também iria alcançar. Muito mais eficaz do que o anúncio descompromissado de absurdas promessas, o foco na razão de uma fé lógica pode dar ao sofrido coração uma esperança sólida que não se esvai com o passar do tempo. Mais tarde Agostinho vai reconhecer o poder que estava contido nas lágrimas do coração aflito, e vai dizer: Com o coração se pede. Com o coração se procura. Com o coração se bate e é com o coração que a porta se abre. Abriu-se para ele de forma completamente inesperada, mas que também completamente atingiu o seu objetivo, pois não voltou para Deus vazia.

É muito provável que Agostinho não tivesse entendido bem o que lia naquele momento, mas uma coisa ele sabia: aquele seu momento de fé, ainda que insipiente, era mais do que suficiente para iniciá-lo na caminhada da fé. Agostinho percebeu tão bem este momento que o traduziu mais tarde: Se não podes entender, crê para que entendas. A fé precede, o intelecto segue.

Mas aquela fé cresceu, e cresceu a ponto afirmar com todas as letras: Ter fé é assinar uma folha em branco e deixar que Deus nela escreva o que quiser. Não se pode dizer que a folha da história pregressa da vida de Santo Agostinho fosse exatamente branca, mas este é um dado que para a fé cristã não conta.

Por todas essas razões, mas principalmente pela poderosa ação de Deus na sua vida, não pode haver uma denominação cristã séria que não considere Agostinho de Hipona um dos três maiores pensadores do Cristianismo, que não louve a Deus por ter separado para si esta mente brilhante que fielmente soube traduzir a sua mensagem, e que, consequentemente, não reconheça que, ao lado de Paulo, Pedro e João, ele foi dos grandes santos da Igreja.

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A importância do Reino para Jesus III

Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte. Apocalipse 21.8
As bodas de Caná, Tintoretto em 1561
Seriam as parábolas de Jesus histórias terrenas com um significado celestial? Esta é uma conclusão vaga e pouco lógica, pois não são todas as histórias as histórias que contamos, histórias terrenas? E que parte destas histórias podem ser creditadas como celestiais, a parte que fala do pecado ou a que fala da ação de Deus? Além disso, as nossas vidas são vividas na terra, quando chegarmos ao céu precisaremos de histórias celestes, mas agora, precisamos mesmo de uma história com um significado terreno. Descreia de imediato de quem vende mapas do caminho do céu, no céu ninguém precisará de mapas. Precisamos de mapas que realmente nos ajudem a atravessar o deserto. Estes mapas serão indicadores confiáveis, na medida em que forem sendo descobertos nas entrelinhas das parábolas do Reino.


Seriam as parábolas histórias para ilustrar a verdade? Talvez, mas devemos ter sempre em conta que ninguém, nem mesmo os discípulos, agarravam-se a todos os elementos das parábolas. Vejam a parábola dos trabalhadores da décima primeira hora. Nela o proprietário é livre para agir em sua infinita graça. Se por um lado destrói muitas expectativas, por outro dá muito mais do que é esperado. Sua liberdade não se limita a valores, e a sua graça não é uma questão de cálculo. Sem entrar na questão meritória, a parábola nos ensina que os seres humanos precisam compreender-se como inteiramente aceitos por Deus, independentemente das suas condições, e que sua existência não é uma questão de realização própria, conseguindo obter tudo o que deseja o coração, mas que é definida pelas prioridades do Reino.

Nas três parábolas de Lucas 15 sobre o perdido que é encontrado, Jesus afirma: Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores. Observe que foi o tipo de pessoas mencionadas no início do capítulo que levou Jesus a contar estas parábolas. Vejam também que é uma mensagem de aceitação incondicional de Deus para com os seres humanos. Para Jesus, os cobradores de impostos e os pecadores nunca estarão irremediavelmente perdidos, por isso Jesus come com eles, por isso anda no meio deles.

No primeiro século da nossa eram as leis sobre a alimentação que ocupavam o centro da pregação e da moral judaica. Eram elas que determinavam, com maior peso, o grau de pureza ritual. Em Levítico 10:10 encontramos: Você é a distinção entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo. Neste contexto, o tipo de comunhão à mesa praticado por Jesus constituiu um ataque frontal aos fundamentos da distinção bíblica entre puros e impuros. A altura e a largura da aceitação amorosa do pai do pródigo é nova e inesperada, tanto para ele, que se achava perdido, quanto para o irmão mais velho. Pois este último não se entende aceito incondicionalmente, mas somente através da relação de retribuição por bom comportamento.

A análise da importância que o Reino de Deus tinha para Jesus, aqui ligeiramente esboçada e carecendo de meditação e pesquisas mais profundas, tem várias implicações importantes para o Cristianismo. Em primeiro lugar, constitui um aviso contra o capitalismo espiritual, esse mal invadiu a igreja e que orienta o nosso pensamento sobre o Reino. Uma análise segura vai nos propiciar uma eficiente defesa contra a mentalidade venal de uma doutrina que estimula investimento no Reino, não pela sua justiça, mas através de oferendas, que em última análise, nada tem de Cristianismo e muito tem de paganismo. Em segundo lugar, esta análise vai nos mostrar o perigoso caminho que lava a busca de bênçãos e retribuções comp promessas do Reino. Quando Jesus taxativamente advertiu sobre a nossa incompetência de fazer elocubrações sobre o fim dos tempos, ao mesmo tempo nos disse para não perdermos tempo tentando imaginar as bênçãos celestes de longo prazo, pois os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e nem penetrou em coração humano algum o que Deus te preparado para os que o amam. A ação concreta em favor do Reino deve sempre tomar a forma do presente e ter em mente a necessidade do agora, se é que podemos assim definir o tempo do evangelho. O presente é feito de amor, e o amor, como disse Mestre Eckhart, é sem porquê.

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A importância do Reino para Jesus II

Também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. Apocalipse 14.10
A adoração do Cordeiro, irmãos Hubert e Jan van Eyck em 1432
Se Jesus estava se referindo à vindicação final dos propósitos de Deus no Reino de justiça e de paz, onde os justos se sentarão no banquete ao lado de Abraão, Isaac e Jacó, é insensato sugerir que o Reino estava presente na terra quando Caifás era o Sumo Sacerdote e Pilatos governador da Judeia. Por outro lado, se Jesus estava se referindo à soberania redentora de Deus no mundo para a destruição de todas as obras presentes do mal, como sugere Mateus 12,28: Se, porém, eu expulso demônios pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós, é um disparate discutir que o exercício desse ministério, para ele, ainda faria parte de um projeto futuro.


Jesus redefiniu o significado de Reino para seus contemporâneos judeus. Enquanto eles aguardavam um líder militar que estabeleceria um Reino político neste mundo, segundo o modelo antigo do reino de David, o próprio Jesus tinha um modelo muito diferente de Reino em mente. A parábola do grão de mostarda é um belo exemplo da sua redefinição de Reino: Ele não vai aparecer de uma só vez em todo o seu esplendor, mas vai começar discretamente. Aqueles que esperavam Jesus para liderá-los em uma marcha sobre as guarnições romanas iriam se decepcionar muito. No entanto, no modelo que ele está oferecendo, mesmo redefinido, permanece inalterado o sonho de liberdade. O ministério de Jesus, embora em nada se pareça com o Reino esperado, é, na verdade, o seu princípio. Estranho e inusitado, é fato, mas o único viável. 

Para Jesus, grandeza é definida em termos de serviço, onde o primeiro é o último e onde o maior é o servo de todos. Em outra ocasião, quando os discípulos discutiam sobre qual deles era o maior, ele colocou uma criança no meio deles e declarou: Esta criança é o que existe de maior no Reino de Deus. Se vocês quiserem tornarem-se grandes no Reino, tornem-se crianças. Estas não parecem ser as formas típicas do pensamento que atualmente dirige a Igreja.

O Reino também encarna um perdão radical e inesperado. Aqueles a quem ninguém espera que estejam no Reino de Deus, são exatamente aqueles que são mais bem-vindos. Temos como exemplo as parábolas do filho pródigo e a do fariseu e do publicano, e as diversas situações vividas com coletores de impostos, prostitutas e pecadores.

As parábolas eram a forma mais característica do ensino de Jesus sobre o Reino de Deus. Por definição, uma parábola é uma metáfora ou analogia tirada da vida comum, que prende o ouvinte pela sua vivacidade ou estranheza, mas deixando na mente uma dúvida suficiente sobre a sua aplicação, para aguçar o seu pensamento, dizia C. H. Dodd. A parábola força o ouvinte a participar na construção do seu significado. Este processo pode subverter o mundo do ouvinte, pois ela pode vir a ser uma abertura para uma nova visão da realidade. Parábolas assim começam no mundo familiar do ouvinte, mas, em seguida, apresentam-lhe uma visão diferente deste seu mundo, desafiando as expectativas cotidianas do ouvinte.

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A importância do Reino para Jesus I

Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas no Reino de Deus, e vós serdes lançados para fora. Lucas 13.28
O Banquete Messiânico
Há quase consenso universal sobre a importância do Reino de Deus para Jesus. A maioria dos estudiosos vai mais longe ao afirmar que a palavra Reino nos dá pistas vitais para entendermos a intenção de Jesus com a sua pregação. Barclay dizia: A dificuldade que nos confronta em qualquer estudo do Reino é o fato de que em nenhum lugar no ensinamento de Jesus o Reino definido é definido por ele, mas é continuamente ilustrado pela parábola após parábola. Talvez a melhor maneira de se aproximar de uma definição é perceber o paralelismo de Mateus 6.10: Quando o Reino vier, a tua vontade será feita, tanto na terra como no céu. Ambas as ideias significam a mesma coisa, assim, quando a vontade de Deus é feita perfeitamente na terra e no céu, será sempre Reino de Deus.

O Reino de Deus é um símbolo que expressa a atividade de Deus na criação, e de sua soberania na história. Quando se fala que a vontade de Deus que está sendo feita, toda a criação que está sendo trazida para a plenitude e conclusão. (Thomas Groome) O Reino de Deus é real o governo de Deus, a hora e o local onde o poder de Deus e vai manter o domínio. (Stanton ) O seu Reino vem ... quando é feita a Sua vontade. (Maston) Todos esses teólogos concordam que o Reino de Deus ou Reino dos Céus, estão relacionados diretamente com a vontade de Deus.

A expectativa do Reino começa no Primeiro Testamento, nos primórdios do judaísmo. Muito antes de Jesus, os profetas de Israel tinham desenvolvido uma expectativa de que um dia que Deus iria estabelecer o seu Reino. Ninguém sabia quando ou como, eles simplesmente afirmavam que Deus o faria. Então, o Reino de Deus deve ser entendido antes no contexto das esperanças judaicas. Jesus foi evocado a partir de uma linha histórica, que tanto ele quanto seus ouvintes conheciam muito bem. Havia a permanente expectativa de que Deus iria estabelecer o seu domínio sobre a terra. A cura, a paz, o perdão seriam características desse Reino. A melhor palavra que caracteriza o Reino é plenitude. Plenitude em todas as esferas da atividade humana.
Plenitude física: no Reino não haveria doença, uma vez que certamente não é a vontade de Deus que as pessoas sejam devastadas pela doença.
Plenitude na relação interpessoal: vizinhos não vão mais atacar um ao outro, e as nações não vão entrar em guerra umas contra as outras.
Plenitude espiritual: o perdão incondicional dos pecados.

O Reino é o foco central da pregação de Jesus e da Igreja Primitiva: Em Marcos 1.14-15 Jesus proclama a Reino. Em Lucas 9.2, Jesus enviou os discípulos a proclamar a Reino de Deus. Em Atos 1.03, até mesmo depois da ressurreição Jesus falou sobre o Reino. Em Atos 28.31, os Atos dos Apóstolos terminam com Paulo proclamando o Reino de Deus e o senhorio de Jesus Cristo na capital do mundo, que era a antiga Roma.

Os milagres são os sinais da plenitude do Reino, daí a importância dos milagres de cura que Jesus realizou. Esses milagres são o cumprimento das expectativas do Primeiro Testamento que constam em Isaías 35:5-6; 61:1-2. Os milagres mostram que o Reino de Deus já se faz presente, e que aí há um paradoxo a respeito da natureza presente e futura do Reino:
O REINO é dito como algo que já veio e já é presente: os exorcismos realizados por Jesus declaram a presença do REINO. Os milagres e as curas de Jesus testemunham do Reino.
Mas o Reino também é projetado no futuro: Em Marcos 1.15, Jesus diz que o tempo é chegado e que o Reino está próximo. Já em Lucas 23.51 fala dos justos que aguardavam o Reino. Em 11,02, Jesus ensinou seus seguidores a orar pela vinda do Reino.

Presente ou futuro? O paradoxo é esse: o Reino é ao mesmo tempo PRESENTE E FUTURO: Sua principal característica é a dialética temporal do presente e do futuro. (Schrage) O debate fica entre aqueles que sustentam que Jesus já declarou o Reino de Deus como chegado, e aqueles que sustentam que ele declarou ser iminente e irredutível, mas que os seus termos, mesmo os mais simples, nós somente o reconhecemos quando ele tiver se identificado de forma diferente de tudo aquilo que se refere ao mundo presente. (continua)


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São Bartolomeu Apóstolo

Jesus viu Natanael aproximar-se e disse a seu respeito: Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo! Perguntou-lhe Natanael: Donde me conheces? Respondeu-lhe Jesus: Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira. Então, exclamou Natanael: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel! Ao que Jesus lhe respondeu: Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás. João 1.47ss
A dor esquisita de São Bartolomeu,
Damien Hirst (1965-)
O nome dele figura em apenas uma lista de discípulos dentre todas as narradas pelos evangelhos. No entanto, existem evidências fortes de se tratar de Nathanael, discípulo de João Batista. Ele é apresentado como um dos primeiros seguidores de Jesus, em termos que sugerem que ele se tornou um dos Doze. Ele claramente não é Pedro, André, Tiago, João, Filipe, Tomé, Judas Iscariotes, Judas o Iscariotes e também não é o chamado Lebbaeus ou Tadeu, os quais João nomeia separadamente. Ele não é Mateus, cujo chamado é descrito de forma diferente. Isso deixa-nos apenas Bartolomeu, Tiago, filho de Alfeu, e Simão zelote. Destes, Bartolomeu é o principal candidato pelas duas razões seguintes:
1- Bar-tholomeu é um apelido de família que significa filho de Tolmai ou Talmai. Portanto, é provável que ele tivesse outro nome. Um romance histórico judeu do primeiro século usa este apelido como um sinal de respeito para falar de um judeu significativamente mais velho. Natanael filho de Tolmai parece ser mais provável do que Nathanael também chamado de James.

2- Nathanael é introduzido na narrativa de João como um amigo de Filipe. Este Bartolomeu está emparelhado com Filipe em três das nossas quatro listas de Apóstolos em que os nomes deles aparecem associados.

Quanto ao seu destino,após a ressurreição de Cristo, também existem não mais que poucas evidências. Não temos, na realidade, qualquer informação sobre a vida posterior de Bartolomeu. Alguns escritores, incluindo o historiador Eusébio de Cesareia, dizem que ele iniciou a pregação do evangelho na Índia. A tradição da Igreja apresenta vários indícios que Bartolomeu foi missionário na Armênia. Seu ministério se encerrou quando foi finalmente esfolado vivo e decapitado em Albanópolis, no Mar Cáspio. Por isso é que o seu emblema na arte é uma faca de esfola. O esfolado Bartolomeu pode ser visto na pintura de Michelangelo, na Capela Sistina, retratado no Juízo Final. Ele está segurando firme a sua pele. O rosto na pele é geralmente considerado um autorretrato de Michelangelo.

Mas existe também a história que o próprio Jesus conta, sobre a qual não paira qualquer dúvida. Assim como Pedro, Tiago e João são reconhecidamente os mais próximos de Jesus, e que Judas era o discípulo mais confiável, por ser ele o tesoureiro do grupo, Bartolomeu era considerado como a reserva moral entre os Doze. Era ele o verdadeiro israelita, o mais fiel representante de tudo o que restou de bom do povo com quem foi firmada Antiga Aliança. Ele era também o bem aventurado do salmo 42 de Davi. Era ele o homem a quem Deus não atribuía iniquidade, pois ela já havia sido perdoada, e em cujo espírito não havia qualquer sinal de dolo.

Antes mesmos dos grandes pilares da Igreja nascente, foi Bartolomeu quem identificou a verdadeira face daquele rabi que de aparência tranquila, que estava reunindo um pequeno grupo para dar início a maior revolução que a história humana já presenciou. Mesmo sem ter maiores evidências, do fundo do seu coração saem as benditas palavras: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!

Quer tenha acontecido na Índia ou mesmo na Armênia, a narrativa bíblica deixou de registrar coisas estupendas realizadas por Bartolomeu em nome do evangelho. Maravilhas que só se revelaram aos olhos daquele que foi o primeiro a realmente crer que coisas maravilhosas estavam prestes a acontecer. Não há motivo algum para duvidarmos que essas coisas tenham de fato acontecido. Duvidamos sim, que o trágico fim deste santo da Igreja, tenha sido exatamente como ele gostaria que fosse. Porém, assim como Dietrich Bonhoeffer de olhos fitos na vida e a obra de São Bartolomeu, podemos ter duas certezas: Deus não faz tudo o que queremos, mas ele sempre cumpre as suas promessas. 

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Honra a quem honra

Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra. Romanos 13.7
A adoração de Mamon, Evelyn de Morgan (1855-1919)
Se fôssemos usar um ditado antigo para definir a situação da Igreja hoje no Brasil, teríamos que dizer assim: a banana está comendo o macaco. Isto porque podemos observar claramente que inversão não se dá apenas nos valores e na tradição, mas também no reconhecimento de quem foi o que na História da Salvação. Por inúmeras vezes, ao citar John Wesley dentro da própria Igreja que surgiu do movimento iniciado por ele, ouvi pessoas me desafiarem com o seguinte disparate: John Wesley não é Jesus não! Claro que não. Se estas pessoas conhecessem um pouco do que representou Wesley na Historia da Igreja Cristã, jamais imaginariam coisa semelhante, o que somente vem reforçar a citação acima.


Já não cabe mais na maioria das igrejas a antiga galeria de fotos que nos contavam a história dos antigos heróis locais da fé. Por conseguinte, a galeria de heróis de Hebreus 11 também já merece qualquer consideração, a não ser quando são lembrados pelas bênçãos que receberam por seus testemunhos de fé, nunca por seus infortúnios. Parece que somos herdeiros por direito de uma plêiade de vitoriosos e vitoriosas em indistintamente todos os aspectos da vida.

Falo essas coisas pela revolta em que encontro, após participar de um culto em memória de uma prima, que faleceu esta semana, após uma dolorosa permanência em um hospital. Como parente mais próximo, me vi na obrigação de narrar um alguns feitos daquela que foi um orgulho para a fé de toda a família. Mas isso só ocorreu depois que o pastor chamou o que restava dos seus parentes diretos, para ministrar sobre eles uma bênção, da qual fiquei incluído fora, graças a Deus.

Falei que Neusa, esse é seu nome, foi uma das grandes heroínas que descendeu diretamente do trabalho de evangelização iniciado pelo meu pai entre seus sobrinhos. Citei que ela sempre foi uma fiel obreira na igreja em que seu tio foi um dos principais fundadores. Falei também da sua obstinada fé, mesmo depois que passou pela dor de ver um de seus dois filhos sendo consumido por uma diabetes, que o fez sofrer sucessivas amputações até o dia da sua morte. Falei que esta mulher continuava afirmando, a despeito de tudo, que nada a podia separar do amor de Deus. Falei que ela cantava sem titubear: As tuas mãos dirigem meu destino. O acaso para mim não haverá.  Finalmente falei da pequeneza na minha fé diante desta conduta inabalável, para encerrar dizendo que o meu encontro com ela na glória dos céus seria improvável, posto que ela havia conquistado um lugar bem mais próximo do trono de Deus do que aquele que estava destinado a mim.

Não é que para minha surpresa o pastor daquela Igreja voltou as suas atenções para mim, com o intuito de evangelizar o pobre pecador que ali declarava a sua total insuficiência na fé? Não é que ele queria aproveitar o gancho para engrenar um exorcismozinho de leve? Com isso ele deixou bem claro duas coisas: Primeiro, que o seu ministério à frente daquela Igreja que já encontrou pronta, era mais eficaz e mais importante do que tudo que havia acontecido antes da sua chegada. Segundo, que não importava tanto as manifestações de fé dos membros, nem que eles preservassem íntegra a pergação do evangelho em suas atitudes, nem com a sua transmissão incólume às gerações posteriores, feitos que levaram aquela Igreja a ser reconhecidamente uma bênção por várias gerações. Mas exaltou, e muito, o valor da Neusa pela regularidade e benevolência na contribuição financeira, esta foi a virtude que melhor a representava, e a que mais deveria ser seguida.

O macaco está realmente sendo comido pela banana, e haja macaco para dar prosseguimento a esta história. O que me preocupa nesta situação não é se depois de tudo, ainda vai sobrar uma comunidade de fé para eu dividir as minhas esperanças e inquietações. Não é isso. Mesmo sabendo da quantidade enorme de pastores que são ordenados diariamente, não me sinto ameaçado de ficar sem emprego, mesmo porque não tenho, até hoje, o ministério pastoral como fonte de renda. Ainda tenho o orgulho de, assim como o meu pai e como o meu mentor, Rev. Jonas Rezende, dizer: nunca recebi qualquer quantia de igreja alguma.

Mas isso não é sobre mim, é sobre os destinos de uma fé cristã que já foi referência em todos os mais exigentes padrões de conduta, e hoje está desacreditada, anacrônica, centrada em si e completamente alheia aos anseios do mundo à sua volta;

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Quem é minha mãe?

Ele ergue do pó o desvalido e do monturo, o necessitado, para o assentar ao lado dos príncipes, sim, com os príncipes do seu povo. Faz que a mulher estéril viva em família e seja alegre mãe de filhos. Aleluia!  Salmo 113 
Jesus e Maria, afresco em Amhara, Etiópia
Texto do Rev. Jonas Rezende e uma homenagem deste blog ao dia em que a Igreja Católica Romana escolheu para homenagear a Virgem Maria como a rainha da mães.

Volto, pela terceira vez, a esse salmo. E quero destacar a maternidade, que o salmista reconhece como bênção especial de Deus. A figura da mãe, depois de Deus, é a mais importante em nossa vida. Porque a mãe é a plasmadora de muito daquilo que chegamos a ser. Embora as crianças pequenas vejam a mãe e o pai como um bloco monolítico, a presença materna se impõe, até porque fomos formados dentro dela. Um olhar mais atento nos mostra que o machismo não pode ser, na verdade, dominante.


A maternidade é a grande força da mulher. Como uma corrente subterrânea, a mulher pode nem sempre aparecer, mas a sua influência é um fato inegável: a mão que embala o berço governa o mundo, reconhece a sabedoria popular. Como em um teatro de marionetes, a mulher e, em particular, a mãe, deixam o palco para o homem, mas suas mãos conduzem os fios invisíveis das ações masculinas. O feminismo apenas quebra parte desta magia, quando reivindica o óbvio. E o feminismo rejeita, com razão, injustiças e a arrogância masculina. Mas eu insisto em que é um domínio que serve, até certo ponto, ao jogo de cumplicidades e conveniências para os dois lados: jogo que mal disfarça o poder muito maior da mulher. Da mãe, em última análise.

O Antigo Testamento pouco fala sobre a mãe. O saltério, quase nada, além dessa citação. E, no entanto, quem lê a Bíblia sabe que foi por causa de Bethsabá que Salomão, entre inúmeros irmãos, subiu ao trono no lugar de Davi, seu pai. Foi a política materna que levou o filho para o trono.

Acho natural que a mulher ocupe hoje todos os espaços, mesmo os que pareciam feudos masculinos: da condução de um ônibus até o exercício do poder executivo de uma nação.

Já existe uma tradução da Bíblia que retira os traços caricatos do machismo entranhado na narrativa sagrada. É com absoluta naturalidade que a Teologia ressalta hoje a face maternal de Deus. Assim, foi muito feliz a americana Ana Jarvis quando lançou as bases para o Dia das Mães, mas a mãe é muito grande para ser homenageada apenas em um dia. Acredito, porém, que como temos um único Deus, rejeitamos a idolatria de todos os modelos, e certamente não idolatramos a figura materna. Nossa prioridade continua sendo o Reino de Deus e a sua justiça, que devem ser buscados em primeiro lugar. A mãe é um ser humano sujeito a falhas e equívocos. Pode criar filhos dependentes e neuróticos. E fazer chantagens afetivas, passar falsos conceitos e valores às crianças que educa. Aspirar o lugar que apenas pertence a Deus. Foi por isso que Jesus perguntou aos seus seguidores: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Imagino que o mestre tenha feito um gesto abrangente, antes de concluir: quem fizer a vontade do Pai que está no céu, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe.

E depois detalhou: quem não amar menos o pai, a mãe, o marido, a mulher e os filhos do que a mim, não é digno de mim.

Não podemos nos esquecer que é Deus quem faz a mulher estéril viver em família e se tornar uma alegre mãe de filhos. Estou dizendo como o poeta brasileiro>

Ó, ter mãe, ter uma constante ternura!

Damos graças a Deus por tal ventura.

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O rei da floresta

Os 300 de Gedeão, Gustav Doré
Então todos os homens de Siquém e de Bete-Milo se reuniram na árvore sagrada de Siquém e ali fizeram de Abimeleque o seu rei. Quando Jotão soube disso, subiu até o alto do monte Gerizim e gritou para eles:
— Homens de Siquém, me escutem, e Deus escutará vocês!
Aí Jotão disse:
— Uma vez as árvores resolveram procurar um rei para elas. Então disseram à oliveira:
— “Seja o nosso rei.” E a oliveira respondeu:
— “Para governar vocês, eu teria de parar de dar o meu azeite, usado para honrar os deuses e os seres humanos.” Aí as árvores pediram à figueira:
­— “Venha ser o nosso rei.” Mas a figueira respondeu:
— “Para governar vocês, eu teria de parar de dar os meus figos tão doces.” Então as árvores disseram à parreira:
— “Venha ser o nosso rei.” Mas a parreira respondeu:
— “Para governar vocês, eu teria de parar de dar o meu vinho, que alegra os deuses e os seres humanos.” Aí todas as árvores pediram ao espinheiro:
— “Venha ser o nosso rei.” E o espinheiro respondeu:
— “Se vocês querem mesmo me fazer o seu rei, venham e fiquem debaixo da minha sombra. Se vocês não fizerem isso, sairá fogo do espinheiro e queimará os cedros do Líbano.” Juizes 9.6-15

Esta é uma parábola muito interessante, embora não seja de origem judaica, pois a simples utilização das palavras Deus e homem, lado a lado, já seria considerada, nesta fé, uma grande blasfêmia. Contudo, a sua aplicação na prática é de uma genialidade fantástica.

Gedeão, o grande juiz de Israel, havia morrido. O temor que a nação viesse a ser invadida novamente pelos povos vizinhos era visível. Seu filho Abimalec, após matar setenta de seus irmãos homens, tentou se fazer rei em Israel. Um dos irmãos que havia escapado era um meio irmão, cujo nome parece querer significar Deus é perfeito, Joatão, rapidamente tentou impedir esta que seria uma inominável tragédia. Joatão, aproveitando-se de uma reunião marcada junto ao carvalho de Siquém, árvore considerada sagrada por todos aqueles povos, inclusive os judeus, aos berros propõe a parábola das árvores que queriam um rei. E não é que ele consegue mostrar nessas breves palavras todos os aspectos negativos dessa escolha?

A oliveira, a figueira e a parreira são plantas básicas na economia daqueles países, e, de uma forma bastante evidente, contestam a soberania dos cedros Líbano, que produz madeira somente uma vez, posto que necessita ser cortado, e que se destacam das árvores daninhas e perigosas, como os espinheiros.

O radical kbd usado para qualificar o fruto da oliveira é a origem de palavras traduzidas por engordar, enriquecer e sustentar. Os figos são a base da alimentação e do comércio daquela região, um elemento vital que não pode sofrer alterações sem que o povo venha a se ressentir. E a uva é o símbolo da alegria da liberdade que pode ser perdida, caso aquele proponente seja ungido rei.

Na parábola, Abimalec é o espinheiro, que faz sangrar todos os que dele se aproximam, e que também é a causa de incêndios florestais, pois alguns deles, sob o sol escaldante, produzem combustão espontânea. 

A parábola é demais significativa para os nossos dias. Ela narra com detalhes precisos o conluio dos nobres do cedro de Siquém, que não contribuem com absolutamente nada para a economia da região, mas se reúnem a revelia do povo para escolher um governante sinistro, que por sua vez nada produz, apenas dor e prejuízo, para ser a ruína anunciada de todos os que trabalham e movimentam a economia que gera a vida e o bem estar das nações. Mais detalhe sórdido: o espinheiro, quando se vê contestado na sua autoridade, não faz outra coisa, a não ser ameaçar punir com extremo rigor, todos aqueles que a ele se opõem.

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Cair da graça

A queda de Lúcifer, The Creation em 1990
Um amigo sempre dizia que não existe caminho sem volta justificando assim: Há pelo menos o caminho que serviu de ida. Olhando sob este aspecto, qualquer buraco, encrenca ou dificuldade que nos aconteça, teria como alternativa imediata o retorno à origem. Sabemos bem que este não é um princípio que se aplica a todos e a qualquer situação. Sabemos também que existem buracos negros na nossa vida que não só impedem a volta, como também consomem todas as nossas esperanças, destruindo as pontes que nos serviram e que ficaram atrás de nós. Isso, quando não somos nós mesmos que queimamos os nossos próprios navios, na tentativa de romper definitivamente com o mundo e com o passado.

E a questão da fé, é mesmo um caminho definitivo e sem volta? Como dizem algumas doutrinas: uma vez na graça, sempre na graça? Não sei exatamente se foi João Calvino quem elaborou esta doutrina, mas, com certeza, foi o seu grande divulgador. Não sei também se é somente nas igrejas que conheço, mas esta doutrina já não é mais tão visivelmente predominante como era há tempos atrás. Contudo, se analisarmos com critério algumas situações concluiremos que: pode ser que na teoria não se pense exatamente assim, mas muitas das práticas existentes nos círculos cristãos não permitem que ela fique totalmente esquecida. O que existe de fato na Igreja de Jesus Cristo hoje é uma nociva superestimação da graça de Deus. Predomina entre nós uma certeza de que podemos fazer qualquer coisa, adiar qualquer compromisso, relevar qualquer preceito, que a graça responderá positivamente consertando as coisas, para que no final tudo acabe bem e que sejamos sempre felizes para sempre. Afinal, uma vez na graça, sempre na graça.

Em um dos sermões gravados do Rev. Garrison, ele diz: assim como um navio é responsável pelo seu sulco, cada pessoa é responsável pelo rastro que deixa para trás. E aqui nós nos encontramos em um dilema. Quando nós somos flagrados em alguma falta, clamamos para que a graça não permita que paguemos por esse nosso erro. Mas quando somos nós que saímos prejudicados pelas más atitudes de outros? Vamos clamar a Deus que também perdoe a falta deles e que deixe tudo esquecido no passado? Será que a graça tem o poder de recompensar satisfatoriamente todos os envolvidos na questão, ou ela deve se preocupar apenas com quem está realmente nela?

O perdão existe e está sempre disponível, mas ele custa caro. Ele cobra o preço do arrependimento sincero, da consciência do mal praticado, da pré disposição de não tornar a repeti-lo e da sensação de estar em dívida com quem saiu machucado. O perdão, embora seja definitivo e irreversível, não é capaz de eliminar todas as sequelas, e por si só pagar a dívida, quando esta ainda pode ser integral ou parcialmente paga por nós.

Já deixei bem claro de que não compartilho com esse clima de vitória que é manifestado pelas liturgias de culto e, principalmente, pela hinologia cantada nas igrejas hoje em dia. Temos sido constantemente alertado através de apelos e clamores de alguns poucos pastores, no sentido de manifestarmos de alguma maneira a nossa indignação contra a forma com que o rebanho do Mestre tem sido conduzido na grande maioria das igrejas. Contra a exploração da fé, o mau uso dos recursos das ofertas, a atração de fiéis pela ganância, falsas promessas que jamais serão cumpridas, curas arranjadas, comércio de amuletos nos templos e a pedofilia que viola para sempre a inocência das nossas crianças.

Quem sabe se não deveríamos invadir os espaços de culto denunciando quem são os verdadeiros lobos sanguinários que aviltam o evangelho, assim como os nossos jovens estão invadindo os espaços públicos e confrontando a polícia para denunciar os políticos corruptos? Ele vão nos chamar de vândalos. Vão dizer que estamos possuídos pelo demônio. Vão mandar nos prender. Vão nos levar aos tribunais. Vão alegar que não permitimos a liberdade religiosa. Mas não vão tirar das nossas consciências a certeza de que estamos firmemente ligados ao nosso primeiro amor.

Se realmente cremos que uma vez na graça, sempre na graça, o mínimo que podemos fazer é seguir a velha canção que diz:
Antes de um escravo ser
Eu prefiro aqui morrer
E no céu, com Jesus, livre estar.

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A vida no evangelho

O ladrão vem para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. João 10.10

Criança Geopolítica Assistindo 
o Nascimento do Homem Novo, Salvador Dali
Muito embora há muito se tem pregado as restrições impostas a vida de um cristão, o evangelho propõe algo muito maior do que um simples e comum período de existência de um mortal. Jesus prometeu àqueles que seguissem as sua palavras uma vida abundante. Ele sabia bem que se falasse simplesmente de vida, as pessoas compreenderiam um ou outro aspecto, e abririam mão de todos os demais, por imaginarem, como os protestantes fundamentalistas imaginam, que existe uma proibição taxativa aos prazeres e bons momentos que uma vida plena poderia proporcionar. Para falar de vida, o grego bíblico se valeu de vários vocábulos, e de a cada um um um significado específico, como veremos a seguir.

O grego utiliza o radical bios, para falar da vida que conhecemos com biológica. Ou seja, falar das funções dos órgãos vitais, das necessidades básicas de alimento, condições de higiene, e de tudo o que se refere ao necessário para que a vida possa acontecer e vingar. Um aspecto importantíssimo para o evangelho, uma vez que é uma unanimidade as mensagens bíblicas que denunciam a fome, a miséria e as más condições de vida. O próprio nascimento de Jesus, que hoje é retratado através da tranquilidade e harmonia dos presépios, foi um grave denuncia de Deus, pois viu seu Filho nascer em condições sub humanas, em meio a excrementos de animais. 

Mas também utiliza a palavra psichê, quando quer se referir à vida consciente e aos pensamentos e ponderações que os humanos tem sobre a vida. A psichê seria um avanço sobre a vida biológica, pois consegue fazer com que as pessoas analisem a sua vida além das poucas necessidades básicas. A música Comida dos Titãs é o retrato exato do que poderíamos chamar dessa vida que se expressa através da psichê
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...

A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...

Embora muitos cristãos façam questão de desviar dela, vivemos também um vida política. Longe de mim fomentar aqui a política partidária e pretender, como muitas igrejas pretendem, um governo totalmente evangélico. Parece que vivemos os dois extremos: uns fazendo malabarismos para se elegerem com os votos e o aval das igrejas, e outros escapando pela tangente, abominando qualquer iniciativa que tenha cunho político. O equilíbrio alcançado por Jesus é algo a ser necessariamente imitado. Ele tanto interveio nas decisões dos líderes de seu povo, contrariando leis seculares, quanto não aceitou ser aclamado rei nas cidades da periferia da capital. Um ser político mas que não fez da política um modo de ser.

Temos que ter obrigatoriamente também uma vida social. O relacionamento com as outras pessoas, com outros credos, com outras posições políticas, e ao que parece, daqui para frente, com outros tipos de organização familiar. A igreja não pode se fechar a esta realidade, e precisa urgentemente mudar o seu discurso de forma a atingir e ser influente em todos esses meios. O próprio Jesus nunca evitou o contato com quem quer que fosse: jantou na casa de fariseus e até de um desprezado leproso, aceitou receber unção de prostitutas e mulheres supostamente endemoninhadas e esteve presente nos lugares mais degradantes de Jerusalém, as piscinas e fontes frequentadas exclusivamente pelos amaldiçoados da fé judaica. O que aconteceu na nossa história que nos fez viver uma vida de comunhão tão seletiva?

Não poderíamos deixar de considerar a vida espiritual. A nossa vida de devoção, de introspecção e de enlevo espiritual. A importância que estes momentos tem para o evangelho é crucial. Jesus foi flagrado diversas vezes no seu isolamento e seguidamente recomendava que seus discípulos cultivassem esse costume. Apesar de importante, a vida espiritual não lhe era fundamental, pois não se fechava completamente nela. Sempre que a necessidade de uma pessoa se apresentava como urgente, Jesus interrompia o seu precioso momento para atendê-la.

Por todos esses argumentos que o evangelista João, no versículo acima, coloca na boca de Jesus a palavra grega zoé. Somente os que tinham uma grande compreensão daquela língua, como era o caso dele e de Lucas, entenderiam que Jesus, quando estivesse se referindo à vida abundante, que essa vida seria plena, não especificamente em um ou outro aspecto, mas em todos os aspectos que a vida se apresentasse total e igualmente. 

Parece que algo se perdeu nesta busca e que estamos nos propondo trocar a abundância de vida por uma vida eterna em um tempo que está por vir. Até nisso a nossa concepção está errada. Pois é no exato momento em que nos apropriamos da vida abundante que Jesus propôs, o tempo da eternidade começa a contar. Quem não crê assim, deveria atentar para o que Angelus Silésio, um místico do século XVII ensinava: Se, no teu centro um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de, algum dia, nele entrar.

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A salvação entrou nesta casa

Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Então, Jesus lhe disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido. Ler Marcos 10.32-44 e Lucas 19.1-10
Jesus e Zaqueu, Basílica de São Marcos, Veneza
Os que andavam com Jesus tinham o pressentimento de que algo muito ruim estava para acontecer. Jesus, por sua vez, não escamoteia o perigo iminente, antecipa com detalhes a sua paixão e morte. Com isso ele está dizendo que não está ali a passeio e sim com o propósito firme de seguir seu caminho, mesmo que isso o leve à morte. Completamente alheios a este clima tenso, Tiago e João tentam obter privilégios através da bajulação, o que despertou a ira dos demais discípulos. Jesus, ignorando a imbecilidade de todos, insiste no tema principal, e diz: Esqueçam de vez esta bobagem de querer ocupar altas posições,não foi para isso que eu chamei vocês. Se alguém entre vocês quiser importante, deixe esse seu desejo e sirva os outros. Se alguém entre vocês quiser ser o primeiro, que este seja o escravo de todos. Porque nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvar muita gente. Ou seja, nada, absolutamente nada, nem mesmo a incompreensão dos seus amigos mais chegados iria tirar Jesus da preocupação com a sua morte.

Após este mal estar, Jesus entra em Jericó e no encontro com Zaqueu revela algo importante sobre o julgamento de Deus. Zaqueu, apesar de ser um homem riquíssimo, tem dois problemas. O primeiro é que todos na sua cidade o odeiam. Ele era um traidor do povo judeu. E segundo, o povo o desconsiderava por ser de baixa estatura. Talvez fossem esses dois motivos que o impediam de chegar perto de Jesus, por isso ele teve que subir numa árvore. Mas Jesus o descobriu lá cima e disse que queria ficar na casa dele. Este convite deixou Zaqueu eufórico, mas também deixou o povo ressabiado. Porque motivo Jesus iria se hospedar na casa de um pecador confesso?

Existe um paradoxo aqui, e para entendê-lo vamos recorrer à parábola do fariseu e o publicano. Na nossa vida cristã nós nos espelhamos sempre no bom fariseu e rejeitamos sempre o mau publicano. Mas nesta parábola foi o mau que voltou em paz para casa. Como pode isso? Se quisermos ser honestos, vamos ter que detestar esta parábola. Para aceitá-la, teríamos que acrescentar algo e imaginar que o publicano volte ao templo demonstrando alguma melhora no seu caráter, e com o discurso do fariseu na ponta da língua: Eu te agradeço, ó Deus, porque não sou como os outros agora.

A parábola viva de Zaqueu é justamente isso: um publicano fazendo o discurso de um fariseu. Depois do belo e arrependido discurso, era de se esperar que Jesus dissesse para Zaqueu: Hoje a salvação entrou na sua casa porque você se arrependeu, fez o bem aos pobres, devolveu tudo o que havia roubado e agora é um homem reto. Quem não pensaria assim? Era isso que gostaríamos de ouvir, pois é bem provável que isso o tornasse grande entre os seus vizinhos, o fizesse patriota ante a sua comunidade, mas para Jesus isso não acrescentou nada. Contrariando a toda nossa lógica de bons cristãos, Jesus reedita o resultado da parábola do fariseu e do publicano e diz: Hoje a salvação entrou nesta casa, porque o Filho do Homem veio buscar quem está perdido. Porque este também é um descendente de Abraão. Assim como Deus rejeitara a oração do fariseu, Jesus rejeita o discurso de Zaqueu para colocá-lo no único lugar onde ele poderia receber um julgamento favorável, e esse lugar é o último, não é o primeiro. Esse lugar é o menor, não o mais importante. 

Mas o que significa ser descendente de Abraão? Significa que a salvação não se deu pelas boas obras de Zaqueu, mas unicamente pela sua condição de ser um perdido. Ele era mais um perdido na longa história da preferência de Deus pelos perdedores. A predileção de Deus por fabricantes de ídolos, como Abraão e Sara. Por assassinos como Moisés. Por adúlteros como Davi. Por safados como Jacó. Por atrapalhados, como Jeremias. Por perseguidores cruéis como Paulo. Pelo que não presta, como Nazaré da Galileia. Por gente má e inconsequente como nós.

Jesus está declarando a única lei que impera no julgamento de Deus: Salvar o perdido. Nunca será julgado o que somos ou o que fazemos na nossa vida, porque assim todos estaríamos sumariamente condenados. Por causa disso que ele nos julgará apenas depois que nos restaurar na grande ressurreição. É o que ele diz para Zaqueu: Eu não tenho compromisso algum com a sua história triste. Estou caminhando para a morte justamente para negar e apagar todo esse seu passado. A salvação entrou na sua casa, mas não foi pelo que você fez, mas sim pelo que eu vou fazer em Jerusalém: dar a minha vida para salvar muita gente.

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Sou o que sou ou o que faço?

Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento. Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, segundo o seu próprio trabalho. Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de Deus, edifício de Deus sois vós. I Co 3.6ss
Ascenção, ladrilhos em Barcelos
O Papa Francisco, dentre outras coisas, me surpreendeu bastante ao abrir mão de seu título de mandatário da Igreja Católica, para ser chamado de Bispo de Roma, não apenas para se colocar em pé de igualdade com os demais duzentos e tantos bispos que poderiam ser eleitos, como ele foi, mas para se nivelar ao menos expressivo cristão no mundo. Embora alguns vejam esta atitude como demagógica e populista, pelo menos aqueles que não pensam assim deveriam assumir sobre si a enorme responsabilidade que ela encerra, ou seja, todos os cristãos são igualmente vocacionados ao ministério.

Comprovadamente a Igreja hoje está experimentando uma crise de personalidade. Já não existe nem mesmo uma marca que identifique quem é desta ou daquela denominação, mas isso ainda não é o pior: estamos sendo primordialmente identificados pelos nossos cargos e funções dentro da Igreja. Não bastasse a apropriação indevida de honrarias que deveriam sem conquistadas reconhecidamente por mérito, como era antigamente o título de Bispo, já há também uma hierárquica identificação pelo dom recebido. Não faz muito tempo foi postado neste blog o clamor de um cantor gospel que pedia pelo fim da cultura gospel. Nem mesmo os que levam a sério a música gospel estão suportando mais essa discriminação dentro de uma Igreja onde alguém deveria aspirar no máximo ser reconhecido como mais uma ovelha.

Paulo ao se deparar com este problema na antiga Igreja de Corinto deixou claro que cada ministério tem o seu valor: aquele que semeia igrejas tem para si a alegria do pioneirismo; aquele que sustenta o trabalho, o orgulho de não deixar a peteca cair. Ele continua dizendo que quem planta não é nada e quem rega nada é, porque o que realmente conta é o crescimento, e esse vem de Deus. Mas ele encerra dignificando o trabalho de cada um sem hierarquizar funções, mas reconhecendo o mérito do título que realmente conta: o de colaborador do Reino.

Fiquei feliz pelo fato do Papa Francisco ter nos advertido sobre este importante atributo da fé cristã, que já andava tão esquecido em nosso meio. Mas tanto ele quanto Paulo aprenderam de Jesus esse ensinamento. Jesus também fez com que os seus discípulos atentassem bem para este aspecto. Quando os setenta primeiros missionários cristãos voltaram, se alegravam contavam as vantagens de quem havia feito mais na sua missão. Jesus os interpela severamente dizendo: Porém não fiquem alegres porque os espíritos maus lhes obedecem, mas sim porque o nome de cada um de vocês está escrito no céu. Não seria esse o tesouro que a traça não corrói e os ladrões não roubam?

Mais ainda há um outro problema na crise de identidade: o da glorificação. O Papa se esvaziou de um título que recebera por mérito, para não motivar a tentação de ser visto como os demais Papas do passado. Andou de vidros abaixados para se misturar com a multidão, para ser visto, fotografado e filmado como mais um cristão no aglomerado. Paulo também pergunta aos coríntios: Quem é Paulo, quem é Pedro, quem é Apolo senão servos? Também foi de Jesus que eles aprenderam esta crucial lição sobre a glorificação de quem quer que seja. Quando aquele pequeno grupo se extasiava perplexo no principal momento de exaltação do ministério de Jesus, que foi a sua ascensão em glória depois da ressurreição, Deus envia seus anjos para mostrar-lhes o verdadeiro sentido do que estavam vendo: Eles ainda estavam olhando firme para o céu enquanto Jesus subia, quando dois homens vestidos de branco apareceram perto deles disseram: — Homens da Galileia, por que vocês estão aí olhando para o céu? Esse Jesus que estava com vocês e que foi levado para o céu voltará do mesmo modo que vocês o viram subir. Não seria essa a verdadeira expectativa da convivência numa fé de que se fundamenta exclusivamente na esperança?

O que Jesus fez na sua vida terrena, na sua paixão e na sua glorificação se tornará relevante para o mundo, na medida em que o fizermos voltar a esse mundo, através do compromisso que cada um assume sobre si, seja o de plantar, de regar ou mesmo de se reconhecer como um humilde colaborador da obra de Deus.

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Lutar pelo que vale a pena

Captura de Jerusalém, pintura medieval do século XI
Eu escolhi o branco porque quero transmitir a paz! Escolhi os plantões porque sei que o escuro da noite amedronta os enfermos. Escolhi estar presente na dor porque já estive muito perto do sofrimento. Escolhi servir ao próximo porque sei que todos nós, um dia, vamos precisar de ajuda. Escolhi estudar métodos de trabalho porque os livros são fontes de saber. Escolhi me dedicar à saúde porque respeito à vida!


Assim transcreveu em seu Facebook a linda loira Yasmin, que hoje tem dezenove anos, mas com quem tenho tido a bênção de conviver e a alegria de apreciar seus belos olhos azuis há mais de dezoito anos. A apropriação das palavras acima se deve à confirmação da sua vocação na área de medicina, mas servem também para comprovar o seu total engajamento na carreira que se prepara para exercer, do qual sou testemunha.

Yasmin, como boa parcela da juventude brasileira, milita nessa onda de conscientização política que está nas ruas exigindo melhores condições de saúde, transporte e segurança para todos. Tive a oportunidade de acompanhar o seu despertar cívico e, ao mesmo tempo, conhecer quais são os seus sinceros apelos quanto aos rumos da política no Brasil. Diante disso, tenho que confessar que ela fez rapidamente uma escolha lúcida que me surpreendeu bastante, uma vez que me lembro bem da dificuldade que tive para completar esse amadurecimento em uma época em que o aviltamento dos direitos civis era bem mais flagrante. Faço votos que ela não precise levar a eternidade que eu levei para descobrir que o homem que matou o homem mau era mau também.

Que tempo enorme eu levei para compreender que simples troca do poder por outro poder nunca levou, nunca tem levado e nunca levará a lugar algum. A História está repleta de exemplos que atestam esta terrível sina. Mesmo que esse tipo de troca seja acompanhado das melhores intenções, o seu fracasso é iminente, pois nem mesmo a pureza da mais sublime das religiões foi suficiente para quebrar esta regra. É só nos lembrarmos de que o monte Sião na cidade de Jerusalém, outrora abrigou um importante templo de um deus cananeu, para depois se tornar o centro da religião judaica, transformando-se depois na joia do Cristianismo medieval, para finalmente abrigar a segunda maior mesquita muçulmana. Em absolutamente nenhuma dessas fases o seu povo pode experimentar alguns momentos de paz e de justiça, e hoje é o epicentro de um conflito que é indicado como o mais provável estopim da terceira grande guerra mundial.

Nada tenho contra aqueles que infernizam a vida pessoal e familiar desses nossos políticos. Imagino ser este um caminho bastante viável. Contudo, permanecer na ilusão de que o sucessor destes será melhor e mais justo, isso jamais. Poucos países viveram uma transformação política com aconteceu na mudança do governo do PSDB para o governo do PT. Me lembro bem que este país vislumbrou um amanhecer de diferente, onde a esperança era mais do que uma simples utopia. Mas não demorou muito para que todos vissem o grande fiasco que foi esta visão. Trocou-se apenas seis por meia dusia, com s e sem acento. Trocou-se apenas a latinha, pois a “m” permaneceu inalterada.  

Espero fielmente em Deus que estes jovens venham perceber que a verdadeira revolução tem que nascer antes no coração. Tem que ser motivadas por decisões que corroborem com as palavras transcritas pela Yasmin. Tem que experimentar o sabor amargo da perda, para, enfim, projetar, ainda que nos seus filhos, um pálido adocicado de vitória. Como dizia Vinicius de Moraes: e se perdendo, ser-lhe doce perder.

O coeditor deste blog, o rev. Jonas Rezende, tem uma poesia que não somente fala de perto aos que vivem a ânsia da mudança, como também projeta um raio de esperança para os momentos de decepção nessa caminhada.

Ame para acreditar que os desertos florescerão,
que todas as desgraças terão fim,
que o coração humano tem uma inalienável juventude.

Ame para acreditar que não é ridículo viver como D. Quixote,
Ou sonhar como Francisco de Assis
Que os homens sub-homens se humanizarão novamente no amor
E se farão novamente no amor, irmãos da paz.


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