Deus ilumina I

Moisés desceu do monte Sinai, tendo nas mãos as duas tábuas da lei. Descendo do monte, Moisés não sabia que a pele de seu rosto se tornara brilhante, durante a sua conversa com o Senhor. Êxodo 34.29
Moisés quebrando as tábuas, Rembrandt-1659
Moisés estava na montanha, falou com Deus e recebeu dele os Dez Mandamentos. Quando eu li o texto dentro do contexto, fiz a seguinte pergunta: Por que Deus iluminou apenas o rosto de Moisés? Por que o seu rosto não se iluminou depois de Deus ter falado com ele na sarça ardente? Aquela também foi uma experiência em que a glória de Deus esteve próxima dele. Desta vez, ele estava há 40 dias na montanha e Deus lhe deu as tábuas de pedra com os Dez Mandamentos. Por que somente neste exato momento o seu rosto se iluminou? Por que não antes? A Bíblia não diz que nenhum homem pode ver o rosto de Deus e sobreviver? Se Moisés não viu Deus de fato, e eu acredito assim, algum outro tipo de experiência naquela montanha fez com que seu rosto resplandecesse.

Os israelitas estavam dançando ao redor do bezerro de ouro. Eles não queriam ouvir a voz de Deus. Como Moisés poderia passar os Mandamentos para eles? Isso fica evidente quando Moisés com raiva quebra tábuas de pedra. Depois disso, Deus não passou para Moisés apenas a sua mensagem, mas também a sua glória, porque diante da idolatria do povo, até mesmo Moisés duvidou. Agora o povo está pronto para ouvir, e o brilho no rosto de Moisés enfatiza esse momento.

A glória de Deus aí tem um efeito duplo: motiva Moisés a falar novamente com o povo e fortalece sua fé. É importante que se diga que é a glória de Deus que brilha através de Moisés. Moisés não é o portador da glória divina, apenas reflete no seu rosto a mensagem da luz de Deus contra as trevas da idolatria. Jesus disse a seus discípulos: Vós sois a luz do mundo. Os discípulos são formados à luz de Jesus, e por meio deles que Jesus deve brilhar na escuridão do mundo. A glória de Deus não se presta apenas para me iluminar pessoalmente, mas principalmente para eu passar a iluminar os outros. 

Caberiam então as várias perguntas a seguir: O que Moisés fez para que seu rosto resplandecesse? O que podemos fazer para que uma luz, através de nós, ilumine o mundo com a glória de Deus? Se olharmos o texto, fica claro que Moisés não poderia realizar ações especiais. Isso foi simplesmente dado a ele. Ele não chegou a fazer qualquer esforço, aliás, ele nem percebeu que seu rosto resplandecia. Ele poderia até ter dito: Agora eu vou para a montanha e vou orar muito a Deus, para que, em seguida, ele acenda o meu rosto. Então, este povo obstinado vai passar a me ouvir

Moisés estava olhando para a montanha da presença de Deus e quis tão somente ouvir a voz de Deus. Ele estava disposto a ouvir o que Deus tinha para dizer. Ele não atentou para o efeito e para o impacto de um encontro com Deus, mas para ele foi a esse encontro, o que é até hoje um grande mal entendido na nossa fé. Eu vou ao encontro de Jesus para que ele me abençoe, me dê satisfação e sucesso. Se eu seguir certas regras, Deus vai me recompensar por isso. Mas essa não é a fé bíblica, isto é superstição! Moisés não foi à montanha para que Deus melhorasse a sua vida, mas foi porque ele queria estar perto de Deus. 


Por que eu tenho fé? Por que eu sou um cristão? É focado em Deus que eu quero alcançar algo diferente com a minha fé? Por que muitas vezes eu sigo certas tradições e convenções da igreja cristã? Será porque eu quero só fazer parte dela? Por que leio a Bíblia? Por que oro? Por que vou à igreja? Porque todo esse conteúdo e dever de um cristão, ou porque eu realmente quero falar com Deus? (continua)

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Sentar e chorar

Às margens dos rios da Babilônia, nós nos assentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros que lá havia, pendurávamos as nossas harpas, pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções, e os nossos opressores, que fôssemos alegres, dizendo: Entoai-nos algum dos cânticos de Sião. Como, porém, haveríamos de entoar o canto do SENHOR em terra estranha? Salmo 137.1-4

Nas águas da Babilônia, Tissot
Frequentemente somos assaltados pelos nossos fantasmas que nos trazem as mais terríveis lembranças do nosso passado. Nós voltamos momentaneamente a sofrer as angústias dos momentos em que estivemos à beira de uma tragédia, com maior intensidade do que as situações trágicas que realmente ocorreram, e tentamos imaginar o que seria de nós se aquele fato se consumasse. Mas a nossa consciência vem em nosso socorro, e faz com que nos sintamos gratos por este livramento novamente. Contudo, a nossa memória não é sempre tão bandida assim. Ela também nos traz lembranças boas, de situações de extrema alegria, nos transporta aos lugares maravilhosos que estivemos no passado, e nos coloca de novo diante das pessoas mais fantásticas que cruzaram a nossa vida. Nessa hora, quem age contra nós e a consciência, fazendo com que mergulhemos numa profunda e amarga saudade. E o que nos resta senão sentar e chorar?

Isso não coisa de velho, pois crianças de dois anos de idade também se sentem assim; não é coisa de gente, porque alguns animais também tem esse sentimento; não é coisa de fracassados, porque mesmo nas grandes vitórias contabilizamos inúmeras perdas e derrotas; também não é coisa da modernidade, porque o salmista há mais de dois mil e setecentos anos já passava por esta experiência e manifesta toda a sua indignação, neste salmo que é a mais exata narrativa de uma tragédia. Isso é a história de cada um de nós que ainda guarda dentro de si um pouco de humanidade.

Como a psicologia chama esta tentativa universal de retorno ao ventre materno? Que nome vamos dar a isso? Melhor dizendo, será que vamos mesmo querer chamar dar um nome a este bem maligno, ou mal benigno, não sei mais? Talvez, quem sabe, alguns se atrevam a fazê-lo na tentativa inútil de dominá-lo mais do que propriamente denominá-lo. Mas como dominar um bandido que nos assalta à noite, no despertar sobressaltado de um sonho. Ou, às vezes, à luz do dia, num acontecimento corriqueiro ou lembrança paralela?

O compositor Billy Blanco era oriundo de uma rica ascendência de judeus poloneses, e como todo bom judeu, desde muito pequeno ouviu e recitou por várias vezes este pequeno e triste salmo da Bíblia Sagrada. Baseados nisso, podemos afirmar com razoável certeza que, inspirado por este salmista, ou de alguma forma influenciado pelo salmo, Billy compôs a célebre música a qual deu o nome apropriado de Canto Chorado, onde ele diz:
O que dá pra rir dá pra chorar.
Questão só de peso e medida.
Problema de hora e lugar
Mas tudo são coisas da vida

Como se pode ver, esse salmo é uma herança da humanidade, e por mais que nos agrida os seus dois versos finais, ele é assustadoramente real. O rev. Jonas Rezende, colaborador fiel e assíduo das minhas incertezas, faz o seguinte comentário: Por essa razão o salmista se encoleriza e pensa na destruição do inimigo. Talvez com outra mentalidade, suplicasse o extermínio da inimizade, do exílio e da guerra. Todos nós participamos, como seres humanos, dessa valsa dos adeuses que desafia a nossa fé.

Vocês me desculpem, mas talvez este blog não fosse o local mais acertado para que eu escrevesse esse meu desabafo. Como adverte a música do Billy, eu sei muito bem que estou acabando com a paciência de vocês, mas é que estou com uma saudade danada do meu neto que se mudou para a Bahia, e não consigo pensar em outra coisa alguma agora a não ser nele. Por isso eu vou dizer a quem me cobrar alguma coisa: Como posso escrever algo minimamente razoável numa hora em que a saudade de meu neto está me matando? Só me resta sentar e chorar.


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O Papa que sorri

Papa sorrindo, REUTERS-Alessandro Bianchi
Texto do rev. Luiz Carlos Ramos
Primeiro, deixem-me estabelecer uma distinção entre “rir” e “sorrir”: Nós sempre rimos de alguém ou de alguma coisa, e sorrimos para alguém ou para alguma coisa. Não cheguei a essa conclusão recorrendo a altas filosofias, mas pela simples observação daqueles que me cercam. A partir dessa constatação, formulei uma teoria pela qual ouso classificar as pessoas em duas categorias: as que riem e as que sorriem. As primeiras, relego-as a uma casta inferior, porque rir de parece ser quase sempre um ato depreciativo, desdenhoso e, não raro, de desprezo. Ao passo que sorrir para sugere amabilidade, afabilidade e, mesmo, meiguice. Claro que todos nós por vezes rimos e por vezes sorrimos, no entanto, a teoria não é para ser aplicada ao episódico, e sim ao cômputo médio e geral. As pessoas ou são predominantemente ridentes, ou predominantemente sorridentes.

E o que tem o Papa a ver com isso? Bem, notei, desde a primeira vez que o vi, que ele é do tipo sorridente. E porque o tenho visto sorrindo em tão frequentes ocasiões, me dei conta de que raras vezes isso acontecia com os seus antecessores, bem como com o seu séquito de religiosos graves, de vestimentas escuras e semblantes carregados, que sempre o escoltam. Então, lembrei-me de ter aprendido do Rubem Alves que os demônios são sérios e graves, e que Deus é leve e ri (no caso de aplicar-se a minha teoria, devemos dizer que Deus é leve e sorri).

Não sou católico, mas gostaria que também os líderes das outras tradições religiosas sorrissem mais, inclusive os da minha igreja. Vejo-os, ultimamente, muito sérios e graves. Se eles sorrissem mais, saberíamos com certeza que nos querem bem e desejam, igualmente, o nosso bem (e não os nossos bens, como diria o Pe. Antônio Vieira). O texto do Evangelho do próximo domingo (28 de julho) inclui a passagem que diz: “Qual dentre vós é o pai que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou se pedir um peixe, lhe dará em lugar de peixe uma cobra?” (Lc 11.11). Ri-se às gargalhadas quem dá pedra a uma criança que lhe pede pão, ou dá cobra quando lhe pede peixe. O pai que ama o filho ou filha, ao contrário, dá-lhe, se preciso for, seu próprio pão e seu próprio peixe, e ainda o abençoará com seu sorriso.

Então, como não-católico, quero, pelo menos, retribuir a esse irmão Francisco o sorriso. E, com a simplicidade e a prudência dos que têm fé, dizer que ainda creio que a religião pode alimentar as crianças e fazer sorrir os anciãos.

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Atire a primeira pedra

Como eles continuaram a fazer a mesma pergunta, Jesus endireitou o corpo e disse a eles: — Quem de vocês estiver sem pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra nesta mulher!João 8.7
Jesus e a adúltera, Jean Drouet
Nunca foi preocupação do nosso povo conhecer a origem das palavras e, principalmente, dos ditados, nem mesmo os mais corriqueiros, que se utiliza. Se perguntarmos de onde foi tirada a expressão “tempo das vacas magras”, poucas pessoas entre nós saberiam dizer que vem do sonho do faraó interpretado por José, no Gênesis. O mesmo ocorre com as palavras que servem de título da nossa meditação. Seria bem provável que alguém dissesse que é derivada da marchinha composta por Ataulfo Alves e Mario Lago para os carnavais de antigamente, a qual deram esse nome.


Com o desconhecimento da origem vem algo muito mais grave: o barateamento do termo. É justamente quando a expressão perde a sua força e as palavras todo o seu valor genuíno e passam a servir para os fins grotescos, banais e completamente descontextualizados. É bem provável que os próprios autores citados, no diálogo musical que travam com a personagem fictícia Iaiá, não soubessem que foram exatamente estas palavras que um dia estabeleceram a fronteira entre a vida e a morte de uma mulher flagrada em adultério. Eles precisavam saber que tais palavras também colocaram em xeque todo o ministério de Jesus, bem como a sua reputação como Messias justo e verdadeiro.

A simples menção do seu uso indiscriminado por todo aquele que foi vítima de uma decepção amorosa, tira das palavras ditas por Jesus à turba enfurecida que queria apedrejá-lo, juntamente com a mulher adúltera, toda a seriedade e responsabilidade que temos diante de julgamentos cruciais como este no decurso da nossa existência.  

Será que já paramos para pensar na profunda gravidade desta simplória situação? Será que já nos demos conta de que é desta mesma forma que encaramos outras tantas situações que a Bíblia aborda com extrema seriedade, nos apontando a vontade de Deus para o momento, e nós tornamos todo o seu esforço irrelevante?

De uma coisa o Mario Lago e o Ataulfo tinham plena razão: Covarde sei que me podem chamar. O mundo pode realmente nos chamar de covardes, mas não porque não trazemos no peito essa ou qualquer outra dor de amor, mas porque não respondemos ao desafio das palavras de Jesus com o compromisso e com o engajamento que elas exigem de nós. Que o mundo nos atire a primeira e tantas pedras quantas forem necessárias para que entendamos a extensão da nossa falta, do quanto temos que aprender com os cristãos que levaram a Bíblia a sério.

Felizmente os inspirados compositores do passado terminam a sua canção com o desfecho mais bíblico que se possa imaginar. Ainda que desconhecendo o momento crucial em que as palavras foram proferidas, eles finalizam a composição com uma das maiores e mais abrangentes verdades do evangelho. Uma verdade que serviu tanto para eles, com serve para nós com igual intensidade hoje: Perdão foi feito pra gente pedir.


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O que é PEREGRINAÇÃO? II

Peregrinação a Cythera, Antoine Watteau em 1718
Como foi dito, a reforma do rei Josias extinguiu os santuários locais e fixou em Jerusalém a celebração das três festas. Esta reforma tinha por objetivo congregar todo o povo em um só local, evitando assim as contaminações idolátricas. Contudo, não permaneceu vigente após a morte deste rei, e o Templo de Jerusalém só voltaria a ser novamente santuário único com a sua reconstrução, após a volta do exílio babilônico. E para lá que toda a Palestina, como também todos os judeus que viviam dispersos fora dela, passaram a afluir nas celebrações, principalmente na Páscoa.


Os salmos graduais ou de subida estão sempre presentes nas romarias. O 120 é o que melhor expressa a oração dos peregrinos que subiam a Jerusalém: Sl 120.5 - Ai de mim, que peregrino em Meseque e habito nas tendas de Quedar. Já o salmo 134, era o principal cântico da peregrinação: Bendizei ao SENHOR, vós todos, servos do SENHOR, que assistis na Casa do SENHOR, nas horas da noite; erguei as mãos para o santuário e bendizei ao SENHOR. De Sião te abençoe o SENHOR, criador do céu e da terra!

A experiência da fé e da adoração, além da alegria da comunhão, proporcionava a esperança escatológica do Dia do Senhor, agora concebido não mais como um dia de castigo, mas como dia de salvação, tanto para o povo quanto para os pagãos: Is 2.2 - Nos últimos dias, acontecerá que o monte da Casa do SENHOR será estabelecido no cimo dos montes e se elevará sobre os outeiros, e para ele afluirão todos os povos.

O Segundo Testamento não traz nenhuma novidade nesta matéria. Jesus sobe a Jerusalém com seus pais, aos doze anos para obedecer à lei e no decurso na sua missão sobe também várias vezes. O apóstolo Paulo, ausente por vinte e cinco anos, faz questão de fazer a peregrinação de Pentecostes: At 20.16 - Porque Paulo já havia determinado não aportar em Éfeso, não querendo demorar-se na Ásia, porquanto se apressava com o intuito de passar o dia de Pentecostes em Jerusalém, caso lhe fosse possível.

Mas Jesus anuncia o trágico fim do Templo. Na incredulidade de Israel se consuma a ruptura entre a Igreja e o Judaísmo. A ressurreição de Jesus passa a convergir o culto dos seus fiéis para uma pessoa e não mais para um local. Jo 4.23 – Nem neste monte, nem em Jerusalém... Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores.

O modo de vida do cristão se apresenta agora como a verdadeira peregrinação. Ela é também um Êxodo conduzido por Jesus, que é o novo Moisés, mas que sendo maior que este, tem em si mesmo a plenitude da Palavra de Deus e a realidade plena do seu Reino. Jesus é a montanha de Sião, o sacerdote por excelência, a Assembleia dos Primogênitos, o Cordeiro que tira o pecado do mundo e o verdadeiro e definitivo Templo: Ef 2.19s - Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular.

Salvaguardando-se do comércio absurdo e supersticioso que se faz das peregrinações nos dias de hoje, alguns segmentos da Igreja, principalmente na Igreja Católica, estão apegados demais à história para negar o valor das peregrinações aos lugares que supostamente simbolizam a vida e o ministério terreno de Jesus, ou aos lugares em que se acredita terem acontecido alguma manifestação na vida de alguns santos. A Igreja ainda pode ver nessas reuniões nos lugares de atração uma ocasião para os fiéis se congregarem na fé e na oração. Mas seria providencial que se lembrasse de sempre que a verdadeira peregrinação nesta terra se faz no caminho estreito traçado por Jesus, e em direção a ele, que é caminho, verdade e vida.

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O que é PEREGRINAÇÃO? I

Abraão e os três anjos, Rembrandt em 1646
Comum à maioria das religiões a peregrinação é uma prática anterior à Bíblia. É uma viagem dos fiéis a um local consagrado por manifestação divina ou pela atividade de um mestre religioso para ali apresentarem as suas preces em um contexto particularmente favorável. Habitualmente a visita a um lugar santo é antecedida por rituais de purificação que se realizam diante de uma assembleia da qual o fiel é um membro destacado. Esta assembleia não somente lhe concede permissão para a sua peregrinação, mas também determina quando ela deve se iniciar e se findar. Em resumo: a peregrinação é uma procura ansiosa de Deus, um encontro extasiante com ele em um ambiente cultual apropriado.

Antes de Josias, através da sua reforma deuteronômica1, proclamar a unicidade do Templo, em Israel existiam numerosos centros de peregrinação, lugares sagrados relacionados com a sua história sagrada e onde aconteceram os grandes feitos dos seus ancestrais. Os patriarcas bíblicos faziam as peregrinações comuns aos caldeus: Gn 11.31 - Tomou Tera a Abrão, seu filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai, sua nora, mulher de seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã; foram até Harã, onde ficaram, bem como as peregrinações que eram orientadas pelo seu Deus: Gn 35.2b-3 - Lançai fora os deuses estranhos que há no vosso meio, purificai-vos e mudai as vossas vestes; levantemo-nos e subamos a Betel. Farei ali um altar ao Deus que me respondeu no dia da minha angústia e me acompanhou no caminho por onde andei.

Havia também outros lugares, como Siquém e Manre, onde aconteceram as teofanias a Abraão: Gn 18.1 - Apareceu o SENHOR a Abraão nos carvalhais de Manre, quando ele estava assentado à entrada da tenda, no maior calor do dia, e Peniel, onde aconteceu a luta de Jacó com um ser estranho: Gn 32.30 - Àquele lugar chamou Jacó Peniel, pois disse: Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva. Todas essas eram muito semelhantes às peregrinações que faziam os povos de Canaã a seus santuários, que comumente eram identificadas por imensos altares de pedra, estelas ricamente trabalhadas, árvores, montes e poços sagrados. O que Israel fazia como diferencial eram: a invocação do nome de Yahweh, as unções, aspersões, as abluções e os dízimos, que são práticas e preceitos comuns à fé judaica. É curioso o fato de que o local da grande teofania de Deus a Moisés, que se deu no monte Horebe, local onde realmente se iniciou a sua libertação do jugo egípcio e a consciência dos hebreus como Povo de Deus, nunca fosse lembrado: Ex 3.1s - Apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Midiã; e, levando o rebanho para o lado ocidental do deserto, chegou ao monte de Deus, a Horebe. Apareceu-lhe o Anjo do SENHOR numa chama de fogo, no meio de uma sarça; Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo e a sarça não se consumia.

A partir daí constatou-se uma longa e persistente ida de peregrinos a assembleias religiosas, tais como Bersabeia, Ofra, Saraa e Siló, esta última foi onde residiu a Arca da Aliança: Jz 21-19 - Então, disseram: Eis que, de ano em ano, há solenidade do SENHOR em Siló, que se celebra para o norte de Betel, do lado do nascente do sol, pelo caminho alto que sobe de Betel a Siquém e para o sul de Lebona. Mas depois da introdução da Arca em Jerusalém por Davi, e, principalmente, da construção do Templo por Salomão, as peregrinações ao monte Sião assumem importância predominante: I Rs 12.27 - Se este povo subir para fazer sacrifícios na Casa do SENHOR, em Jerusalém, o coração dele se tornará a seu senhor, a Roboão, rei de Judá; e me matarão e tornarão a ele, ao rei de Judá. Desde muito tempo, então, os códigos antigos das Alianças javista2 (Ex 34.18-23) e elohista3 (Ex 23.14-17)

Todas as peregrinações, até então, eram prescritas apenas à população masculina, e eram em número de três por ano, cada uma a um santuário, tendo a sua data determinada pela festa que lá se realizava: Dt 16.16: - Três vezes no ano, todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher, na Festa dos Pães Asmos, e na Festa das Semanas, e na Festa dos Tabernáculos; porém não aparecerá de mãos vazias perante o SENHOR. (continua)

¹ - Reforma instituída por Josias após a descoberta do rolo contendo o livro do Deuteronômio nos porões do Templo: II Rs 23.24 - Aboliu também Josias os médiuns, os feiticeiros, os ídolos do lar, os ídolos e todas as abominações que se viam na terra de Judá e em Jerusalém, para cumprir as palavras da lei, que estavam escritas no livro que o sacerdote Hilquias achara na Casa do SENHOR.

² - Tradição literária que chamava Deus de Yahweh, cuja tradução é SENHOR.

³ - Tradição literária que chamava Deus de Helohim.

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Quais as bases do nosso sonho?

Quando o SENHOR restaurou a sorte de Sião, ficamos como quem sonha. Salmo 126
Colheita do trigo, damiaomartinspintor.blogspot.com.br
Texto do rev. Jonas Rezende extraído do livro Salmos Para o Espírito.
Visitei a ilha de Patmos. Bem sabia que todas aquelas histórias a respeito da gruta onde João escreveu o livro do Apocalipse estavam irremediavelmente misturadas com lendas fantasiosas e como objetivo de incrementar o turismo religioso na bela ilha grega. Ainda assim, me emocionei ao imaginar o pobre homem de Deus, velho e isolado de todos, a sonhar com um mundo onde o mar não mais existe e, assim, o isolamento fosse anulado. E o seu sonho toma a forma tão bela, que João antevê outros tempos e lugares, a superação de tensões e sofrimentos e, finalmente, a vitória certa do propósito divino, na vida da humanidade e do cosmos: um novo céu e uma nova terra.

Ainda dessa vez, volto á utopia do salmista. Um sonho, entre tantos que o mundo conheceu. Como A República de Platão, escrita cinco séculos antes de Cristo. Ou A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, A Cidade do Sol, de Campanela, Utopia de Thomas More – obras certamente inspiradas no velho solitário de Patmos.

Antigo como a humanidade é o sonho de um mundo melhor. Uma verdade que ninguém discute. Mas, dentro das expectativas judaico-cristãs, quais as bases desse mundo novo que ocupa o horizonte das nossas esperanças e aciona toda a nossa fé?

Fazendo uma síntese dos sonhos que povoam a nossa caminhada histórica, é possível dizer que um dos alicerces do esperado mundo melhor é o humanismo, temperado pela visão moderna da ecologia e pelo ideário que a Bíblia vem transmitindo através dos milênios.

Muitas correntes, em especial no século passado e começo deste terceiro milênio reivindicam a necessidade do humanismo. Vamos aproveitá-las. Assim como nos servimos da confissão de Terêncio: sou homem, e nada do que seja humano considero alheio a mim. Isso é, assumimos plenamente a condição humana: os impulsos do corpo e os anseios do espírito. Foi por esse caminho que nasceu o Renascimento do século XVI.

Mas há correções que podem ser feitas no humanismo marxista ou existencialista; na própria ideia de um trono antropocêntrico, que resultou na assustadora devastação ecológica, certamente o grande problema que temos pela frente, neste século e nos próximos.

Não basta a noção de progresso econômico e tecnológico. Nem as conquistas da engenharia genética, ou a aldeia globalizada. O homem pós-moderno precisa de uma ética que respeite a vida e as diversidades; que, acima de tudo, considere o desnível econômico entre as nações.

Mas, a fé pede também um mundo no qual, no dizer do apóstolo Paulo, Deus é tudo em todos. Uma base teísta. Não o Deus explicativo dos fenômenos cósmicos, mas o Deus bíblico. O Deus dos salmos. O Deus que interage pessoalmente com o ser humano, Senhor da História e Pai Nosso que está nos céus e em nós. Deus que tenha o rosto de Jesus de Nazaré. Apenas o Deus de Jesus equilibra e corrige os desvios do nosso humanismo.

Aqui estão, em síntese, as bases do mundo que sonhemos e que vamos construir com o auxílio divino. O Pai está comprometido come esse projeto. A verdadeira mensagem do Natal coloca Deus na terra: a transcendência se faz carne, para viver conosco. Confie. Espera. Trabalhe.

Uma vez para sempre, Deus está de mãos dadas com o ser humano. Com você.


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Jornada Mundial da Juventude I

JMJ em Manila, 1995
Criada em 1986 pelo Papa João Paulo II, a JMJ, segundo palavras do seu criador, tem por finalidade fazer Jesus Cristo voltar a ocupar o centro da fé e da vida de cada jovem, para que Jesus se torne um ponto de referência constante e a verdadeira luz de todas as iniciativas e compromissos de cada nova geração. Um objetivo bastante ambicioso, principalmente para um país onde a Igreja Católica está perdendo fiéis de todas as faixas etárias para igrejas que por não terem uma identidade definida, não tem também compromissos com a geração de jovens atual e muito menos com as vindouras.

A JMJ no Brasil suscitou um misto de alegria e apreensão, visto que não poderia acontecer em um momento político pior da vida desta nação. Momento em que os jovens que estão focados em denunciar a corrupção e o desmando secular dos governos brasileiros, e se deparam com gastos absurdos para a recepção de um Pontífice que tem constantemente sinalizado o despojamento e a humildade como o abre alas do seu ministério papal. Somente a recepção no Palácio Guanabara custou aos cofres públicos cerca de R$ 1.500,00 por pessoa, o que fez dessa simples e curta recepção um evento mais caro do que um Reveilon bocalivre em um hotel cinco estrelas.

Como referência, temos a JMJ realizada em 1995 em Manila, nas Filipinas, quando esta cidade com 1,6 milhões de habitantes abrigou mais de 5 milhões de peregrinos, com um custo bem menor que a simples recepção do Palácio.   

Mas o meu objetivo nesta postagem não é chutar cachorro morto, e sim analisar os primeiros resultados desse que já se tornou o maior e mais diversificado evento cristão em solo brasileiro. O que se pode ver hoje nesta cidade que foi tomada de assalto por jovens de todas as partes do mundo?

1-   Um sorriso contagiante que traduz melhor que qualquer intérprete a alegria do jovem por ter abraçado a fé em Jesus Cristo. Fazia tempo que eu via este tipo de manifestação somente através das lágrimas de arrependimento e contrição de crianças mal saídas da adolescência, na tentativa de purgar pecados que jamais lhes poderiam ser imputados.
2-   Vejo também o católico brasileiro voltar a ter confiança em um guia espiritual que mais corretamente que grandes teólogos está sabendo interpretar as páginas das Escrituras Sagradas, e romper com as demais tradições papais deste século, na busca da boa, agradável e perfeita vontade de Deus, como exigia na carta aos Romanos o apóstolo de Jesus enviado aos não judeus.
3-   Não poderia deixar de falar do clima ordeiro e sacrificial que sabiamente orienta esta turba santa, que constantemente está em movimento, se deslocando de um lado para o outro, em uma dança que não tem princípio e nem fim.
4-   Vemos também os peregrinos dos mais diversos países e das mais diferentes raças, que envoltos em suas bandeiras exibem com orgulho a sua nacionalidade, orgulho esse que nem as Olimpíadas e nem a Copa do Mundo conseguirão de longe imitar.
5-   Quero falar também da minha inveja por não ser mais jovem e poder, mesmo sendo protestante, participar deste evento, que nitidamente exclui os dinossauros fundamentalistas de um Cristianismo que ainda se prende a usos e costumes, para não dizer que ainda se mascara de falso pudor e piedade.


Seja bem vindo Papa Francisco, que você e o seu exército de jovens cristãos possam mostrar aos nossos governantes que uma nação sabe reconhecer quem quer de fato o seu bem; a todos os governos, que o mundo pode ser governado com sorrisos e solidariedade; que as multidões ainda podem ser atraídas pela Palavra de Deus; que só Jesus pode quebrar as barreiras que existem entre aqueles que nele creem, como também superar as barreiras que existem entre nós e os que não creem como nós. (pretendo, com a permissão de Deus, voltar ao assunto)

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Vingança ou justiça?

Foto de http://blogdolobo.com.br/2013/07/cade-o-amarildo/
Na Bíblia estão contidos textos em que a relevância destes dois temas se mostra extremamente importante. Eu destacaria Dt 32.35, que diz: A mim me pertence a vingança, a retribuição, a seu tempo, quando resvalar o seu pé; porque o dia da sua calamidade está próximo, e o seu destino se apressa em chegarE também Is 11.3s: Deleitar-se-á no temor do SENHOR; não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos; mas julgará com justiça os pobres e decidirá com equidade a favor dos mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso.

Diante do que nos está sendo exposto, devemos nos perguntar: Até que ponto as sentenças de um julgamento justo estão isentas do tentador desejo de vingança? Esta é uma pergunta bem pertinente, principalmente no nosso contexto atual, em que minorias estão, na concepção de muitos, extrapolando através da vingança o seu direito de reivindicar justiça. O que mais se ouve hoje as pessoas fazerem a seguinte afirmação: quebrar lojas está errado, ao passo que depredar bancos é o certo. Este é o julgamento simples e sumário que o povo brasileiro faz contra os grandes vilões da livre e consentida opressão que o sistema financeiro exerce sobre nós. Estamos dizendo ao mundo que as lojas e instalações públicas estão sendo destruídas pelo enganoso desejo de vingança, mas que as instituições financeiras estão sendo depredadas pela mais completa, embora tardia, justiça que já se praticou neste país.

A despeito de todo esse imbróglio, eu queria destacar a “conversão” pela qual passou um dos proprietários da Toulon, que teve uma das suas lojas completamente vandalizada em um dos protestos que visava exclusivamente um de seus vizinhos, o governador Sergio Cabral. Depois de um depoimento emocionado em que ele mostrou toda a sua indignação e revolta contra a destruição do seu patrimônio acumulado através dos longos quarenta e três anos de trabalho. Disse Eduardo Ballesteros, sócio da Toulon, em um primeiro momento: Nunca vi uma maldade tão grande! Quem mais perde com o vandalismo é o Rio de Janeiro. Isso quando ainda não havia calculado a extensão do seu prejuízo.

Imediatamente após esse justo desabafo de revolta, a loja depredada passou a exibir em sua vitrine mensagens contra quem julgou serem os reais causadores da sua perda: o governo brasileiro em todos os seus escalões. A primeira mensagem dizia assim: Se houvesse vontade política de mudar alguma coisa, a reunião de hoje não seria só com a Secretaria de Segurança, mas com a de Educação, Saúde etc. E as que se seguiram também foram todas no mesmo tom, sendo que uma das mais emblemáticas cobrava do governo a paradeiro do pedreiro Amarildo, que sumiu naquela mesma madrugada, após ter ser levado pela polícia, confundido que foi com um foragido da justiça.

Não conheço os proprietários da Toulon, e nem sei quais eram as suas tendências políticas e religiosas antes do acontecido. Mas sei que eles souberam muito bem fazer a transposição da sua indignação para um clamor de justiça, que anteriormente não se fazia ouvir.

Uma das características do Servo Sofredor de Isaías, talvez a que menos dava a ele o controle sobre a situação, era aquela que dizia: Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido. Ou seja, não foi pelo muito que se dizia a respeito, muito menos pelo tudo que era anunciado aos quatro ventos, mas foi sentindo na própria pele o sofrimento de todo um povo, que o profeta diz que a verdadeira avaliação de uma situação pode ser feita. Somente quem acompanha de perto o crescimento da injustiça pode esperar que a justiça venha de forma avassaladora e implacável.

Seria bom que a Igreja se espelhasse nessa virada dada pela Toulon, e que analisasse segundo os padrões da nossa única regra de fé e prática até onde vai o que se pode chamar de vingança, e onde realmente começa a justiça que “ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso.”


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Sinais sabáticos que curam II

Cura em Siloé, Palma Giovane em 1592
Mas, voltemos agora o foco para o alvo do milaculum, aquele sobre quem se projetou o maravilhoso olhar de Jesus. Diz o texto que estava ali um homem deitado, Jesus vendo-o, perguntou-lhe: Queres ser curado? A palavra grega para dizer curado só aparece aqui no evangelho de João, neste capítulo 5 e também no capítulo 7, verso 23. Que palavra é essa? A palavra higies.

Façamos um pequeno parênteses aqui: Esculápio era o Deus da medicina no mundo grego, filho de Apolo e da Ninfa Coronia. Esculápio teve uma filha chamada Higies, Higéia ou Higia, que significa saúde, cura. Entre os romanos, higies virou salus, termo de onde deriva nossas palavras: são, saudável, saúde e salvação. Mas quem era esse rapaz a quem Jesus oferece a possibilidade de uma vida mais sã? O texto diz que ele jazia no poço, juntamente com uma multidão de enfermos. A palavra grega para dizer enfermo no texto é asthenéia: fraco, que também quer dizer sem força. Paulo usa muito esse termo, como em II Co 12.9: O meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.

A-sthenos : sem vigor, sem força. Aliás, em português asteniaé um termo usado na medicina para designar uma fraqueza orgânica, sem perda de capacidade muscular. Quando há perda muscular a palavra usada é miastenia. Daí a palavra neurastenia: fraqueza do cérebro. Ora, vejam que curioso: Um comentarista citado pelo biblista Leon Dufour, defende a tese de que se tratava não de um paralítico, mas de um neurastênico, irritadiço, enraivecido. Será por isso que ao ser perguntado por Jesus sobre se queria ou não a cura, ele joga a responsabilidade no outro: Ninguém me ajuda, ninguém me põe no poço quando as águas borbulham! O fato é que, neurastênico ou não, há ali uma impotência com consequente isolamento, essa barreira que parece sempre tão intransponível.

Jesus usa uma sequência de verbos, de convites à ação, capazes de despertar aquele homem, de tirá-lo desse isolamento. Lembrando o Cardeal Carlo Maria Matini no diálogo com Humberto Eco, no belo livro “Em que creem ou que não creem”. Poderíamos dizer que também aqui Jesus não faz apelo a nenhuma escola filosófica, a nenhuma discussão de ideias, mas simplesmente apela a uma espécie de inteligência que é dada a cada um de nós para compreender o sentido dos acontecimentos e orientar-se:
Levanta, toma o teu leito e anda...

Levanta...
Detalhe o verbo grego erguero, levantar, é usado nos evangelhos para se referir à ressurreição de Jesus. Levanta! O homem é capaz de ultrapassar a si próprio, como diz Heschel. Ele é parte do mundo, mas é maior do que o mundo. É condicionado por uma série de fatores, mas é tocado por exigências incondicionais que o convidam a elevar-se acima do povo, do ego, da terra, do próprio tempo. Levanta os olhos! Levanta, sacode a poeira, como diz a canção popular. Ressuscita! Pare de rodopiar sobre si mesmo. Sai dessa doença. Segundo Leloup a palavra hebraica para dizer doença, significa aquilo que não circula, que está paralisado. Tanto que o dom de uma vida sadia, exige uma vida justa. Daí o aviso de Jesus: cuidado para não cair novamente nesse mal!Entrar no círculo virtuoso e sair do circulo vicioso.

Toma o teu leito...
Toma o teu sofrimento. Toma a tua cruz. Toma a tua dor. Faze-o um despertador existencial à dimensão de profundidade de você mesmo e da realidade. A desgraça nos aproxima de Deus, quando pede de nós uma operação alquímica de transformação para que o sofrimento nos abra ao mistério e não nos submerja no desespero.

E anda....
No antigo Testamento frequentemente a relação com Deus é descrita como um andar com Deus: Enoque andava com Deus, etc. O verbo empregado aqui em João é peripatew, lembrando o método pré socrático de fazer filosofia: peripatético. Ou seja, andando, caminhando. Tomar o leito sem andar é afogar-se na dor. Andar sem tomar o leito é fuga.

Levanta, toma o teu leito e anda! 

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Sinais sabáticos que curam I

Então, lhe disse Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e anda. Imediatamente, o homem se viu curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. E aquele dia era sábadoLeia João 5: 1-18
Ícone da Igreja Cristã primitiva, em Dura Europos
Texto do rev. Edson Fernando, pastor da Igreja Cristã de Ipanema
Como entrar na imensidão desse texto? O poço, com todo o seu simbolismo; os trinta e oito anos de paralisia daquele homem, e tudo o que isso dá a pensar; a ênfase de João no conflito de Jesus com a tradição: o problema da cura no sábado. Como fazer uma homilia ou um sermão sem o recurso imprescindível do estudo deste lindo texto verso a verso? Quando olhamos para a estrutura deste terceiro dos sete grandes sinais em torno dos quais está construído o texto joanino, saltam aos olhos algumas coisas. E talvez aqui esteja uma chave de entrada no texto.


Jesus sobe para Jerusalém para a comemoração de uma festa. Mas, que festa é essa? A Páscoa, a Festa dos Tabernáculos, a festa da dedicação do templo? Será que esta indeterminação é deliberada, estando a serviço de uma espécie de ironia joanina? Será que a festa a que João se refere é o próprio sábado? Por que não? O sábado é o grande horizonte do texto. Ele está no centro da narrativa. Ele é o recheio desse sanduíche de duas partes. O encontro de Jesus com o desvalido nas cercanias do poço e o seu reencontro com o desvalido no templo. Entre esse dois encontros aparece a questão do sábado.
E era dia de sábado. Esse dia era sábado. É sábado!

Qual a ironia? As lideranças censuram aquele homem por carregar o leito, mas não reagem diante do fato da cura propriamente dita. Nos sinóticos, todos ficam maravilhados. Aqui não, ignora-se o milagre, o miraculum, o maravilhoso. Aqui a presença da luz não provoca admiração, admiraculum, espanto, abertura ao maravilhoso, ao sublime. Então eles dizem: Ele curou no sábado! Amarrados por uma compreensão literal, legalista, apequenada do princípio judaico do shabatt. É como se João dissesse: É sábado!!! Dando a entender que tal expressão revela não apenas a liberdade de Jesus diante da lei e da tradição, mas revela também a ideia do sábado como plenitude da criação, a plenitude de toda busca humana, o espetáculo maravilhoso da presença de divina em tudo e em todos.

A expressão é sábado! Aparece entre duas menções à saúde recuperada, a shalom recuperada, a sanidade recuperada. E conforme a expectativa judaica a cura dos enfermos é um sinal antecipatório da chegada do tempo da salvação plena. Vejamos, por exemplo, o texto de Isaías 35: 4-6: Então, se abrirão os olhos dos cegos, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos cantará; pois águas arrebentarão no deserto, e ribeiros, no ermo.

Corroborando com essa afirmação do sábado está a palavra de Jesus: O meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho. Ou seja, Jesus situa o milagre de Betesda no contexto do agir divino que quer levar a criação ao seu supremo acabamento. A ironia de João está, pois, em que os as lideranças religiosas repetem: É sábado, é sábado! Como pode acontecer isso? É como se Jesus dissesse: É sábado!!! É o tempo próprio para isso! Sábado: o mundo como poderia ser não fosse a alienação a que está submetido. O mundo como poderia ser não fossem homens e mulheres e sistemas enfeitizados pela ganância, pelo egoísmo, pelo materialismo barato, que nos impede a elevação de nós mesmos. (continua)

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O que é ANGÚSTIA?

O filho pródigo entre porcos, Rembrandt em 1648
Distinta do medo, provocado por seres ou circunstâncias desse mundo, distinta do cuidado, que anseia por assistência particular, ou da preocupação excessiva a respeito de um trabalho ou de uma missão que está para ser cumprida, a angústia traz uma inquietação que brota das profundezas do eu, uma incerteza diante da morte ou do futuro em geral.  Na Bíblia, ao menos em sua tradução grega, este sentimento aparece no decurso de relatos que incluem algum termo específico, como por exemplo: Os que se encontram na agonia quanto ao resultado de um combate: Lc 22.44 - E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra. Perde-se o ânimo quando ocorre um impasse ou falta de uma saída: Lc 21.25s - Haverá sinais sobre a terra, angústia entre as nações; haverá homens que desmaiarão de terror; pois os poderes dos céus serão abalados.

O termo synechomai denota a ideia de estar bloqueado ou sequestrado, o indivíduo sente-se preso, encerrado ou dominado pelo temor. Lc 8.37 - Todo o povo dos gerasenos rogou-lhe que se retirasse deles, pois estavam possuídos de grande medo. Dominado por uma doença: Lc 4.38 - Ora, a sogra de Simão achava-se enferma, com febre muito alta; e rogaram-lhe por ela. Já stenochoria, que significar mergulhado na aflição ou oprimido: Dt 28.53 - Comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas, ...na angústia e no aperto com que os teus inimigos te apertarão.

Jacó, quando chega ao vale do Jaboc, se vê num impasse: Gn 32.7s - Então, Jacó teve medo e se perturbou; dividiu em dois bandos o povo que com ele estava, e os rebanhos, e os bois, e os camelos. Pois disse: Se vier Esaú a um bando e o ferir, o outro bando escapará. Diante do seu irmão Esaú ele enfrentará uma situação de angústia tão grande, que nem a sua luta com o anjo do Senhor pôde superar, mas nesta nova situação obteve a certeza de que Deus estava do seu lado.

Elias, quando deitado sob o zimbro, preferiu a morte ao desespero: IRs 19.4b - Basta; toma agora, ó SENHOR, a minha alma, pois não sou melhor do que meus pais. Julgando erradamente ser o último a não apostatar, considera o seu ministério profético um fracasso. Mas o anjo do Senhor o recolocaria de volta no caminho certo.

O povo inteiro está mergulhado nas trevas. Não estaria ele na stenochoria? Is 8.22 - Olharão para a terra, e eis aí angústia, escuridão e sombras de ansiedade, e serão lançados para densas trevas. Da mesma forma Jeremias perde o ânimo frente à calamidade pública. Jr 8.18 - Oh! Se eu pudesse consolar-me na minha tristeza! O meu coração desfalece dentro de mim.

Jó, tomado de medo, chora; se não acontece aquilo que ele espera a amargura lhe sobrevém; o temor de um deus barganhador o domina, até o dia em que se interrompe a obsessão pela salvação individual. É quando deixa de buscá-la e passa a crer que o justo espera em Deus a sua salvação.

No coração daquele que crê, a angústia pode ser experimentada em dois graus de profundidade. Primeiramente, a de Paulo ante a morte, quando temeu pela sua vida. Foi aí que passou a entender que nem mesmo a morte pode separá-lo do amor de Cristo. Passou a ter a certeza de que em Cristo a morte já está vencida, e que ela adquiriu um valor redentivo e útil ao Reino de Deus: II Co 4.12 – Em nós opera a morte, mas em vós a vida. Mas a angústia pode renascer em um nível mais profundo. Não mais pela própria vida ou pela salvação pessoal, mas diante da vida do próximo, da sua liberdade e da sua salvação. Não faz isso por altruísmo ou por obrigação, mas constrangido por um amor que excede a compreensão humana. Esta é uma angústia que nos oprimirá até o fim dos séculos, mas que pela fé pode ser sobrepujada, na certeza e na não certeza de um coração que abriga ao mesmo tempo o regozijo de um Reino que já está entre nós, e a angustiante espera da sua plenitude. 

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A realidade é mais complexa

Os que com lágrimas semeiam com júbilo ceifarão. Quem sai andando e chorando, enquanto semeia, voltará com júbilo, trazendo os seus feixes. Salmo 126.5-6
O galho de ouro,  J M W Turner (1775-1851)
Está aí um salmo propício para alentar a esperança de quem passa por alguma aflição ou por quem aguarda uma resposta definitiva. Não somente os versículos citados, mas todo o salmo, porque ele fala justamente de uma mudança para melhor, e a julgar pela euforia do salmista, para muito melhor. Tão melhor que foi reconhecida e celebrada até mesmo por estranhos. Contudo, não são as sensações imediatas que determinam o contexto original do texto bíblico. Que a Bíblia toda serve para encorajar a nossa caminhada de fé, não há quem conteste, mas seria bom que entendêssemos as motivações dos seus escritores, para que nos chegássemos mais próximos do ela realmente quer comunicar.


Em rápidas palavras, eu gostaria de citar três das algumas linhas de interpretação dos versículos citados, como também abordar rapidamente os seus contextos.

A primeira e mais imediata interpretação nos dá conta de alguém que reconhece o valor de um favor divino, mas que este ainda não lhe é suficiente, por isso pede mais. Como é comum a todo pedinte, um semblante penitente pode fazer toda a diferença. Mostrar-se humilde, com cara de choro, ou até mesmo chegar aos prantos, pode ser um bom indicador da real necessidade do que está sendo pedido. Sei que é pedir muito hoje em dia, mas diante das cobranças que muitos fazem a Deus e diante das exigências de cumprimento de promessas que nunca foram prometidas, um pouco de solenidade e comedimento em nossas petições seria recomendável. Bem disse Billy Graham: Avivamento não é descer a rua batendo um grande tambor; é subir o calvário em grande pranto.

Sabemos bem que Deus nos trata como filhos, e não como empregados ou escravos, como queria ser tratado o filho pródigo. Por isso, esta interpretação, por mais piedosa que seja, escapa um pouco do que se entende de uma relação aceitável com Deus.

A segunda interpretação, um pouco mais comprometida, levaria em conta a escassez de alimento na região, causada principalmente pela aridez do solo. Daí o salmista clamar para que as torrentes alaguem o Negueb, que como o nome já sugere, são terras secas, cultiváveis apenas quando irrigadas pelas enchentes. Nesta circunstância, o lavrador precisa tirar da família parte das poucas sementes que lhe restaram para o seu sustento, e plantá-las na esperança de uma colheita futura.

Aqui o salmista estaria expressando a realidade angustiante daquele que semeia com fome, daquele que joga a semente ao chão com os olhos marejados, na esperança de sobreviver até o dia da colheita. Embora comprometida, esta exegese contrariaria princípios básicos do amor de Deus, que não exige de nós sacrifícios e sim misericórdia.

Talvez uma terceira visão a partir da condição humana fosse mais apropriada. Tanto o Israel de Deus antigo quanto o atual são suscetíveis a crer no resultado imediato, não importando muito os meios para obtê-los. Importante hoje é uma igreja cheia de gente que contribui e adora. Assim como o Israel antigo, o Israel atual vive cercado de atrativos pagãos, que seduzem irresistivelmente. Assim como o antigo, o atual tem se deixado levar pelos resultados imediatos.

Sabe-se bem que os povos pagãos adoravam deuses especializados. Não era por mero acaso que os deuses da fertilidade e da agricultura exigiam rituais de orgia e autoflagelação. Uma cena comum naquela região era ver um lavrador se autoflagelando em louvor a um deus enquanto semeava. Os judeus viam que isso estava dando resultado, e que lançar a semente com lágrimas ou com o sacrifício próprio, não estava. Por que não experimentar o chicote? Não custa nada! Eles nunca atentaram para o fato de que as terras dos pagãos eram mais próprias ao plantio do que a deles. Nunca reconheceram que o caminho bom é o estreito.

Particularmente, fico com essa interpretação. Fico com o salmo que é, antes de tudo, um alerta, mesmo servindo para nos dar esperança. A realidade do salmo é a nossa certeza de que uma colheita jubilosa não depende de lágrimas, de sacrifício ou do nosso sangue. Depende sim da nossa submissão em aceitar como boa qualquer dádiva que procede das mãos de Deus, e sermos sempre agradecidos por ela.



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Aprendendo com os solavancos

Aos justos nasce luz nas trevas... não será jamais abalado... e a sua justiça permanece para sempre. Salmo 112
Elias na caverna, Heather Theurer (?)
Texto do livro Salmos para o Espírito do Rev. Jonas Rezende.
Jó era um homem que parecia um pequeno burguês de Gorki. Sua vida e seus negócios seguiam muito bem. Uma espécie de oportuno biombo de respeitabilidade social fazia dele um cidadão, de que se diz que está acima de qualquer suspeita. Mas essa vidinha, que daria um bonito cartão postal, é sacudida por um verdadeiro tornado que parece não deixar pedra sobre pedra, a tudo abala desde os alicerces. Seria o fim? Pois bem, o livro bíblico que narra as suas desventuras termina com um depoimento de Jó, em forma de oração. Senhor, antes eu te conhecia apenas de ouvir dizer, mas agora os meus olhos te viram.

O salmo 112 está diante de você. Leia-o com atenção e vai perceber, na repetida comparação que o Saltério faz entre o destino do homem que ama a Deus e os que são dominados pela injustiça, consequências inevitáveis. Diz o salmista que o desejo dos perversos perecerá, mas aos justos nasce luz nas trevas.

Nasce luz nas trevas. Isto é, as próprias tormentas e solavancos, como aconteceu na vida e Jó, trazem lições que tornam ainda mais bela a existência dos homens de bem.

Rubem Alves, teólogo psicanalista, nos ajuda a entender o papel das crises que sobrevêm a todos os seres humanos, quer tomados como pessoas, quer vistos na dimensão social.

E o sábio, que conto entre meus bons amigos, nos ensina que de nada adianta querer localizar um bode expiatório para responsabilizá-lo pelas crises que, em última análise, nascem de todos nós, uma vez que estamos todos envolvidos.

Também é inútil e até contra producente quere encontrar uma espécie de messias que nos retire do maldito olho do furacão. Os falsos messias estão sempre de plantão nessas horas sombrias, não para nos ajudar ou simplesmente para caminhar ao nosso lado nas tormentas. Os falsos messias usam as crises desejando apenas, dentro da vigente mentalidade desumana, tirar vantagem das desgraças alheias.

O que nos resta então fazer, quando somos assaltados pelas tribulações? Em primeiro lugar, é importante não perder a calma e sobretudo a esperança. A crise abala e machuca, mas aos justos, como assegura o salmista, nasce luz nas trevas. O chão revolvido se prepara para receber as sementes e produzir fartas colheitas.

Mas, veja bem. O homem sábio e sensível é aquele que busca entender a mensagem que chega no bojo das crises. Junto com as tribulações, há sempre um oportuno recado para as pessoas e os povos. Um antigo hino nos ensina:

Quando a tempestade ruge com seu feroz bramir,
Quando nas nuvens se acumulam raios mil a despedir,
Do trovão, o som tremendo faz-se ouvir, e com pavor,
Mas na voz da tempestade soa a tua voz, Senhor.


Aos justos nasce luz nas trevas.

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Luz e sombra

Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Mt 11.25s
Jesus e as crianças, jesusandkidz.com
Uma das investidas mais iradas que os ateus fazem contra o pensamento cristão recai sobre o famoso argumento de apologética levantado pelo filósofo, físico e matemático francês do século XVII Blaise Pascal, que ficou conhecida como a Aposta de Pascal. Em resumo ele diz o seguinte: Não se pode provar que Deus existe. Mas se Deus existe, o crente ganha tudo (céu) e o descrente perde tudo (inferno). Se Deus não existe, o crente nada perde e o descrente nada ganha. Portanto, há tudo a ganhar e nada a perder em acreditar em Deus. A despeito de reconhecer a genialidade de Pascal, não faço coro com ele neste pensamento, simplesmente porque penso que o crer não pertence a mim, eu, sim, pertenço a ele. Minha preocupação maior é se Deus, após tantas quedas, omissões e iniquidades, ainda acredita em mim.


Todavia, aproveitando-me de um viés deixado por essa lógica de Pascal, permito-me fazer a seguinte pergunta: Por que as pessoas humildes creem com mais facilidade em Deus do que as mais abastadas? Estaria apenas na falta do poder aquisitivo a inclinação do homem para a fé? Quem não poderia dizer nesta hora que uma melhor condição econômica tem o poder de elevar a mente humana a um patamar de onde ela enxergue mais motivos para não crer tão facilmente quanto os humildes? Ou seja, novamente insistimos em confinar as questões da fé unicamente na vontade e na razão humana. Nós decidimos crer ou não crer, e ponto final.

Não é bem isso que a Bíblia diz. Jesus, momentos antes do diálogo que travou com um dos baluartes da cultura em Israel, diálogo esse que o levou a contar a parábola do Bom Samaritano, faz a oração que é o nosso versículo base: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Ele estava querendo dizer que, mais do que uma conquista da qual a mente humana possa se orgulhar, a fé é uma questão de estar na luz da revelação ou estar numa sombra bem próximo a ela. Ao contrário do que pensam os ateus acerca dos cristãos viverem permanentemente na escuridão da fé, Jesus diz que os que não creem vivem em uma espécie de penumbra, de onde, apesar de toda a sua cultura, não conseguem enxergar a revelação de Deus.

Mas aqui se levanta uma outra questão: Por que Deus ora se revela e ora se esconde? Pelo menos é o que concluímos a partir da leitura do Primeiro Testamento, da qual o intérprete da lei que coloca Jesus à prova era perito. Ele entendia que Deus era um ser que necessitava ser buscado, perseguido, até mesmo, como fez Jacó, enfrentado em uma luta, para se obter dele uma breve revelação. Mas Jesus veio trazer justamente o oposto. Veio anunciar um Deus que está à espreita, não para castigar, mas para se revelar por inteiro na figura do Cristo, ao menor passo que o pecador der em sua direção.

Jesus diz também que Deus escolheu pela sua própria vontade se revelar através do evangelho. Esta é boa notícia que só está disponível aos que realmente são pequeninos, humildes e impotentes, porque somente na glória de Deus eles podem ver novamente a idoneidade que lhes faz tanta falta. É lá que ainda podem ter a esperança de que seus desejos sejam realizados. Onde podem olhar novamente para os seus rostos no espelho e sentirem que por trás da imagem luz e sombra, ainda existe uma alma. Somente aqueles que nada mais tem a perder, e aqui Pascal é questionado, creriam na aposta de um Deus que, no lugar de um poderoso guerreiro, envia uma criança indefesa para realizar o seu propósito maior.

Bem melhor e mais propício ao evangelho do que se engalfinhar com os que não creem na tentativa de provar que Deus existe, podemos mostrar através de atos concretos de amor, a nossa gratidão por termos sido alcançados pela luz da revelação de Deus. Isso é suficiente para que eles tenham, ainda que envoltos pela sombra, a luz de um Deus os ama, a despeito de crerem ou não. 

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Seis passos da compaixão II

O Bom Samaritano, Delacroix em 1849
O cuidado entra nesta lista como o grande diferencial da compaixão. Cobrir as feridas com óleo era uma prática antiga e bem conhecida. Evitava que o ferimento ficasse exposto às infecções, dando ao organismo mais condição de se autorregenerar. Mas colocar vinho já é diferente. Qual seria a função do vinho neste caso? Eu sempre soube que vinho é bom pra curar outro tipo de ferida: dor de cotovelo, coração partido, reconhecimento póstumo etc. Mas aplicá-lo diretamente sobre uma ferida aberta, confesso a minha ignorância. Não deveria ser pelo teor alcoólico, pois o do vinho é muito baixo. Não é importante, o importante é que conscientemente ou não, o samaritano fez o que estava ao seu alcance. O que as suas entranhas o impulsionaram a fazer. Mais forte do que a consciência de não fazer o mal, ele é movido pela compaixão para fazer o bem.

No entanto, no momento em que coloca o ferido sobre o próprio animal ele se compromete bastante. Imaginem vocês se ele tivesse cruzado com um grupo de judeus naquela hora. Eles iriam bater nele primeiro e perguntar depois. Não poderia haver um motivo lógico para imaginar que o samaritano estava de boa intenção, só querendo ajudar. O comprometimento da compaixão traz consigo riscos. O simples fato de interagir com grupos marginalizados, já faz da pessoa um marginal também, e o samaritano mais do que ninguém sabia disso. Se alguém tem dúvida, que observe a expressão de surpresa da mulher samaritana quando Jesus se dirigiu a ela no poço de Jacó. Se o diálogo simples com um samaritano já era algo incomum, o que não dizer da sua presença numa cena de crime?

É somente nessa hora que eu posso entender as palavras de Jesus sobre o comportamento. Quando ele diz para cortar fora a mão que nos faz pecar ou tirar fora o olho que nos induz ao erro. É melhor ficar mutilado numa ação em favor do Reino, do que permanecer perfeitamente são, agindo contra ele. Dizia Paulo: o que é o sofrer para quem já foi considerado como ovelha para o matadouro?

Não sei também qual seria o procedimento correto de encaminhamento de uma pessoa ferida naquela época. Provavelmente seria levá-la a uma guarnição de Império Romano e registrar uma queixa. Hospital público, nem pensar. Se ainda hoje são raros e lotados, se é que existia algo semelhante, como seriam? Talvez algum bom coração levasse o ferido a um curandeiro e o deixasse lá, mas o samaritano o levou a lugar onde poderia tratar melhor dele. Nesse cuidado ele despende dinheiro. Um dinheiro que era fruto de um trabalho, que certamente o fazia correr o mesmo risco que o judeu assaltado correu. Um dinheiro que representava a sua própria vida.

Mas o sexto passo é que determina o sentido exato da compaixão. O samaritano, movido pela compaixão, não se satisfaz em atender apenas as necessidades imediatas do ferido, não se contém em fazer somente o necessário pelo necessitado, não se detém diante do bem simplesmente; ele quer o melhor. Ele quer ver a restauração completa e a cura realizada, por isso ele retorna depois de um tempo para certificar-se disso.

A Parábola do Bom Samaritano é largamente usada para mostrar a necessidade da Igreja em se engajar na ação social. Mas ele é mais do que isso, pois ela se refere a uma relação de iguais, de pessoas de níveis sociais equivalentes. Não fala exatamente de uma atitude de compaixão para com o pobre, mas de compaixão para com o próximo que está aflito.


É importante que se observe as duas perguntas que deram início ao diálogo que motivou Jesus a contar essa parábola: E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? (Lc 10.25), e a outra foi: Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? (Lc 10.29) Jesus dá um resposta que servirá para todo o sempre. O que eu fazer para herdar a vida eterna? O que eu preciso fazer para salvar a minha alma? Todas as vezes que nos perguntarmos isso, vamos tentar ouvir o que Jesus nos ensinou na parábola do Bom Samaritano: Quer salvar a sua alma? Cuide do seu próximo, tenha compaixão dele.

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Seis passos da compaixão I

Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Lc 10.33-35
O bom samaritano, Ferdinand Hodler (1853-1918)
A palavra hebraica que normalmente é traduzida por compaixão na Bíblia, não é um sentimento que tem lugar no coração, como é comum entre os ocidentais. Em vez de citarem o costumeiro aperto no peito, como sempre fazemos nessa hora, o povo semita fazia referência às dores da região do ventre. O sentimento de compaixão era revelado através do revolver das entranhas, como é por diversas vezes citado na Bíblia. Porém, se formos cavar um pouco mais neste solo, vamos descobrir que essa referência faz alusão a uma sensação própria do ventre materno. Ou seja, ter compaixão é o mesmo que sofrer as dores de um parto ou ter uma ligação do tipo mãe e filho com a pessoa por quem se tem compaixão.


Esta comparação, por mais que pareça o extremo exagero da sublimidade aos nossos olhos, ainda assim ela é relativizada na Bíblia, quando fala da compaixão de Deus para conosco: Acaso, pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti. (Is 49.15)

Na parábola do Bom Samaritano, Jesus faz um resumo do que é compaixão, traçando um roteiro para que este sentimento se desenvolva em nós.

Primeiramente ele fala que o samaritano viu o acidentado. Nós sabemos que entre ver e olhar existe uma enorme diferença. Um instrutor do meu curso técnico costumava escalonar a visão dos alunos da seguinte maneira: O aluno do primeiro ano, não olha e nem vê. O do segundo ano olha, mas não vê. Quando chega ao terceiro ano, ele vê apenas o que olha. Somente o aluno do quarto e último ano consegue ver sem olhar. Contudo, até mesmo no ver encontramos diferenças, porque, segundo a parábola, tanto o levita quanto ao sacerdote também o viram o homem caído, mas o viram através dos olhos da lei. Segundo a lei judaica, um corpo morto torna impuro tudo que o toca, e aqueles homens necessitavam do estado de pureza para desenvolverem os seus ofícios. Tocar naquele caído representaria um alto risco à sua condição.

Mas Jesus fala de um outro olhar. Um olhar que não leva em consideração preceitos legais, diferenças raciais, ideológicas, financeiras ou de afinidade. Jesus coloca num samaritano, que era considerado extremamente impuro pelos judeus, a capacidade de ter esse olhar da compaixão, o olhar de quem se importa.

A parábola também enfatiza que o samaritano se aproximou do ferido. Ele se fez próximo. É bom que nos lembremos de que essa era uma das perguntas do intérprete da lei quando quis colocar Jesus à prova: Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? (Lc 10.29) Essa era a pergunta que nem mesmo o mais inculto judeu faria, visto que próximo é, para a lei judaica, a pessoa mais importante depois de Deus, e tão importante quanto à própria pessoa. Ao mesmo tempo, é também uma pergunta cuja resposta pode determinar uma série de implicações, pois amar um romano, por exemplo, significava ser um traidor de Israel. 

Mas Jesus vai buscar a sua referência numa cena que deveria ser comum. Certamente na estrada que ligava Jerusalém a Jericó, por ser deserta, esse tipo de crime era corriqueiro. No entanto, Jesus teve a sabedoria de inverter os papéis. Nessa parábola ele mostra ao judeu que quem precisava do favor do próximo não era um judeu como ele, e não o contrário. Um judeu ajudar a outro judeu seria um cumprimento da lei. Um judeu ajudar um não judeu seria um arroubo de bondade. Ajudar a um romano seria uma alta traição, mas ajudar um samaritano seria um desperdício de tempo e sacrifício. É justamente por isso que Jesus inverte os papéis, ensinando através da necessidade de se obter compaixão, a urgência e a frequência com que a compaixão deve ser praticada entre aqueles que o seguem. (continua)

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