O oposto do homem comum


O fariseu e o publicano, afresco barroco
na Basílica de Ottobeurem, Alemanha
Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano;  jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será
humilhado; mas o que se humilha será exaltado. Lc 18,10-14
A história da igreja cristã tem em seus registros diversos personagens muito curiosos. Alguns que se destacaram pela sua obstinada fé, como Jó e Maria Madalena, outros pela irreverência da sua mensagem, como Amós, Ezequiel e João Batista, e outros ainda pelo próprio anonimato, como a viúva pobre e o exorcista estrangeiro. Mas se ela registra curiosidades que acrescentam, da mesma forma o faz com atitudes de outros personagens que, apesar de não fazerem exatamente o oposto, não tem contribuído muito para o seu brilhantismo. Quero destacar aqui aqueles que de alguma forma tentam se sobressair ante os demais por alguns aspecto não fundamental da fé cristã. Quero falar daqueles que através das atividades meio, querem impor a autoridade sobre os demais que se esmeram no anonimato nas atividades fim. Este homem, que aqui vamos chamar de homem superior (HS), e tentar apresentar algumas maneiras de como ele tenta ser diferente do homem comum (HC).

1 – O senso comum não afeta o HS, porque as suas experiências, que são definitivas, lhe dizem exatamente o contrário. Tem uma música que ouvi na madrugada que retrata com perfeição este sujeito. Diz ela assim: Podem falar, podem falar, eu não estou nem aí. Já tomei posse da vitória que Deus tem pra mim. Isso é querer ser superior ao próprio Cristo, que se impostou com que a opinião pública pensava a seu respeito, e para isso promoveu uma enquete entre os seus seguidores mais próximos perguntando: Que dizem os homens ser o Filho do Homem? Normalmente estes são pessoas que chegaram à fé cristã através de experiências traumáticas e fazem dela a revelação máxima que Deus pode realizar na vida de uma pessoa. Neste caso recomendo tratá-las com a filosofia que aprendi do meu professor, o remo. bispo Paulo Ayres: Com que foi curado não se discute.

2 – O HS sempre encontra respaldo na Bíblia para tudo que faz, ainda que precise distorcer aquilo que ele que ela realmente está querendo dizer. A sua exegese é própria e é normalmente fundamentada na própria experiência, que na sua lógica, provém da sua superioridade espiritual sobre os demais homens, mesmo aqueles que não são tão comuns assim.

3 – O HS é aquele que consegue manter viva a sua supremacia, ainda que esteja atravessando a fase mais trágica da sua vida. O HS dissimula o seu próprio infortúnio, na adversidade contabiliza bênçãos, não por ser exatamente um resignado que espera pela ação de Deus, mas porque isso redundaria em uma mácula na trajetória da sua fé, porque a sua vida inteira se anunciou primordialmente pela bênção, que é aparentemente inegável, e pelo seu testemunho constante das vitórias alcançadas.

4 – Para o HS a sua geração é a última geração de humanos sobre a face da terra, ainda que saiba que muitos que antes dele pensavam assim já tenham morrido. O seu tempo foi meticulosamente escolhido por Deus para a realização do seu maior drama cósmico, a volta gloriosa de seu Filho Unigênito. Como HS não poderia deixar de ser testemunha deste ato definitivo de Deus?

5 – A mais degradante fase da história humana é justamente a sua. É a era cujos dias são os mais conturbados, mais sangrentos e quando se comentem as maiores apostasias já registrados até então. Tudo isso lhe assegura um inequívoco sinal do fim dos tempos, ainda que o consenso insista em ver o mundo sob uma visão mais otimista, e não debaixo desse caos propagado.

6 – A hinologia do HS é computada por ele como a mais inspirada, mesmo que não seja fiel a qualquer doutrina reconhecidamente inspirada, que não obedeça às regras da métrica, não se importe com a rima poética, mas cuja mensagem é um apelo mais que convincente, e, portanto deveria atingir a fundo a sensibilidade dos demais.

7 – A hinologia do HS sempre exalta o poder e a grandiosidade de Deus com ênfase nos benefícios que ela lhe traz, e não por ele ser o que é. Enaltece a sua magnificência pelo que ele ainda fará em sua vida, quase nunca se referindo às bênçãos já alcançadas.

Vou parar no número sete não porque ele seja um número cabalístico, mas é um número relevante na Bíblia. Porque este é o número de povos que viviam em Canaã quando o povo de Deus chegou à terra prometida. Estes povos representam tudo que existe de oposto à vontade de Deus e ao seu plano de salvação. Vou parar no sete, mas não por acaso.

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Oração de Jabez

Ilustração da capa do livro The Prayer
of Jabez, de Bruce Wilkinson, 2001
Jabez fez esse pedido ao Deus de Israel: abençoa-me, alarga as minhas fronteiras e ajuda-me. Preserva-me do mal para que eu não sofra. Deus concedeu-lhe o que havia pedido. ICr 4,10

O nome Jabez é um nome que carrega consigo o trauma, o arrependimento e a nulidade da maternidade, pois significa “dei a luz com dores”. Uma pessoa que logo ao nascer recebe a negação total da validade do seu nascimento. Seu nome era o sinal visível de que ele nascera em vão. Tenho pra mim que somente uma mãe extremamente amargurada colocaria
um filho sob um signo tão maldito (na tradição hebraica quem escolhia o nome do filho era a mãe). Mesmo assim, e talvez até por causa disso, contrariando todas as expectativas ele tenha suplantado os irmãos. Podemos entender que em seu estado natural, isto é, antes de ter consciência da bênção, Jabez é um homem que temia a sina do seu próprio nome, porque se sentia debaixo de uma iminente maldição que se arrastava desde a sua mais tenra idade. Por conseguinte, como um ultimato a si próprio, coloca diante de Deus uma oração que tem como primeira finalidade expurgar o mal imprecado pela sua mãe, contrapondo-o com uma bênção de Deus que ainda careceria ser confirmada: Se me, abençoardes... Uma vez que a maldição era evidente, os efeitos da bênção contra a maldição, também deveriam sê-lo. Se ele era o menos afortunado dos irmãos, deveria, a partir de então, ser o mais pródigo e o mais ilustre deles.

Para efeito de uma meditação rápida devemos perguntar: Como se configura essa bênção conhecida como “Benção de Jabez? 

1 – Alargarás as minhas fronteiras, significa um aumento substancial na sua propriedade. Com o aumento de terras, viria a reboque maior número de empregados, o que arregimentaria mais homens dispostos a lutar tanto pela preservação do seu patrimônio, como também pela conquista de mais territórios. 

2 – Farás com que o mal se afaste de mim. Aqui entra a doutrina do Morbus Divinus. Uma doutrina que afirma que quando alguém é atingido por um mal sem causa, é Deus quem o está afligindo. Não existia antes do exílio babilônico uma personificação do mal, portanto o bem e o mal vinham da mesma fonte, ou seja, de Deus (I Sm 16, 14)

3 – Que a minha dor tenha fim. Repare que a maldição e a dor são sintomas diferentes. Não adiantaria para ele apenas a maldição ter fim se as sequelas e traumas deixados por ela não fossem juntamente eliminados. Na teologia de Israel não bastava apenas que Deus perdoasse os pecados, eles deveriam ser esquecidos. No sacrifício judaico eram usados dois bodes: o expiatório, que morria para que seu sangue encobrisse os pecados; e o emissário, que era enviado para o deserto para nunca mais ser achado. Não adiantaria de nada se a dívida fosse apenas remida, o seu escrito também deveria ser rasgado para que não existissem provas materiais para uma condenação posterior. 

Como a Bênção de Jabez pode ler entendida hoje?
Jabez se torna o mais importante dos irmãos. Ser o maior significa ter domínio sobre os demais. Perder o domínio auferido pela primogenitura para um irmão mais novo seria como assinar com o próprio punho uma declaração de incapacidade total. Um domínio que poderia ser adquirido de duas formas: pela primogenitura, o que lhe conferiria a maior parte da herança, ou pela conquista pessoal de riquezas e prestígio. Isoladamente ou em conjunto estes são, para a teologia vigente na época, os sinais mais evidentes que a bênção se confirmara. Contudo, nem de longe se pode tomá-la como aceitável à teologia cristã, pois é uma bênção unilateral, que privilegia uma pessoa em detrimento das demais. 

Uma vez que não consta como descendente de nenhum dos patriarcas bíblicos, então por que a menção do nome de Jabez na genealogia das tribos meridionais? Muito provavelmente que Jabez tenha entrado no texto do cronista como uma crítica velada à realeza de Israel. Eu me arriscaria dizer que é um protesto escamoteado entre linhas contra o mau reinado que Saul estava fazendo, profetizando que Deus já estaria preparando a sua bênção para transferi-la para alguém muito menos dotado de atributos reais. Basta que se observe que Saul era o mais alto, o mais forte e o mais belo dos homens do reino. Em contrapartida, Davi era o mais novo dos irmãos, o que exercia a mais degradante tarefa e havia sido deixado de fora quando, a pedido do profeta, Jessé apresentou seus filhos.

ps. Não estou recomendando o livro porque não o li. Estou apenas utilizando a sua capa como ilustração da postagem.

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Os pães da criança III

Alimentando a multidão, B.Strozzi (1581-1644)
Muita gente vai dizer que é a massificação da informação, mas é o que ao longo de mais de três mil anos tem dado certo. Este é o princípio da fé, e era exatamente assim que a nosso amiguinho do texto bíblico estava sendo criado. Ele foi ensinado no caminho que devia andar. A criança da multiplicação dos pães foi preparada para escolher andar com Jesus, foi preparada para escolher a melhor parte. Está certo que criança precisa brincar, mas aquela não era a hora para brincadeira. Não importa o que a psicologia moderna descobriu, não importa que avanços foram
alcançados na pedagogia. Se o princípio da sabedoria não for não for a lei do Senhor, vai ser muito difícil levar a cabo uma educação minimamente satisfatória. Eisten dizia: O importante não é se Deus está comigo, e sim se eu estou com ele, porque Deus está sempre certo.

Eu queria terminar citando uma denuncia que o texto faz de mais uma grave violência cometida contra a criança. Os discípulos de Jesus fizeram a seguinte ponderação: Temos aqui cinco pães e dois peixes, mas o que é isso para tanta gente?  Esse é o tipo de atitude que desestimula qualquer iniciativa voluntária, que nunca deveria ser feita na presença de uma criança, para quem aqueles pães e peixes eram tudo que dispunha para o seu sustento. Sabe-se lá a que distância ele estava de casa, de quanto tempo ainda ficaria sem comer novamente. Jesus acolhe aquela oferta, e em vez de ridicularizá-la, como fizeram os discípulos, dá graças a Deus por ela, e logicamente por aquele menino, por aquele pequeno profeta enviado por Deus que saindo da multidão, se revela na hora mais oportuna.

Eu penso também que os evangelistas bíblicos tinham a obrigação moral de deixar registrado o nome dessa criança, para que as futuras gerações de cristãos pudessem homenageá-la dando a seus filhos e filhas o seu nome, assim como fazemos com Paulo, Pedro, Ester, Davi etc. Não sei por que naquela época era tão comum esse infeliz costume de omitir as atitudes louváveis das mulheres e das crianças, assim como também omitiram o nome da viúva pobre, ela que contribuiu mais que todo mundo. Mas os discípulos se deram mal. Como eu disse anteriormente, não estavam lidando com uma criança qualquer. A criança lhes deu uma bela resposta, porque o que ela fez não é coisa que criança alguma faça natural ou espontaneamente. Aqueles que imaginam que a criança nasce pura e inocente deveriam conviver mais perto delas, para ver do que esses anjinhos são capazes. Com certeza existe muita coisa boa numa criança, mas o altruísmo e a voluntariedade não estão entre elas. Ninguém nasce altruísta. Criança nasce de mão fechada. Esse menino aprendeu desde muito cedo a compartilhar, a dividir, a repartir, e isso não acontece da noite para o dia, depende de um longo e penoso aprendizado. Contudo, o que mais surpreende é que essa criança fez muito mais do que isso. Ela repartiu seu lanche sem ser requisitada, sem que ninguém tivesse que pedir ou lhe devesse favores. Assim como que antecipando o milagre, antes mesmo que Jesus repartisse o pão com a multidão, a criança se antecipa e reparte o seu pão com Jesus.

Com toda certeza o menino não era o único naquela multidão a ter um lanche guardado em sua bolsa. Muitos adultos prevenidos tinham escondido no fundo de suas sacolas a sua comidinha. Não se serviram dela para não passarem pelo incômodo de comer diante de pessoas famintas. Talvez para não cederem ao ensejo de ter que dividi-la com alguém. Foi preciso que Jesus os constrangesse com a humilde oferta do menino para que seus corações se fizessem sensíveis. É claro que Jesus poderia ter dado pão e peixe a todos sem precisar de oferta alguma. Se fosse simplesmente assim ele teria dado o inequívoco sinal de que era realmente o Messias enviado de Deus. O milagre da multiplicação da quantidade de pães e peixes fica por conta de Jesus, mas o milagre do quebrantamento dos corações insensíveis e egoístas tem que ser creditado à atitude voluntária daquela criança. Para a igreja fica a lição do quanto a criança tem a dar para a construção do Reino de Deus. Para o mundo, ela ensina que a simples iniciativa de uma única pessoa, pode satisfazer a necessidade de tantos que não tem, ao mesmo tempo em que faz transbordar a alegria da partilha no coração de uns poucos que tem.

Eu queria encerrar falando de uma belíssima música que Toquinho e Vinicius fizeram e que retrata o compromisso de um adulto, no caso eles, assumem com uma criança ao longo da trajetória da vida, na figura de um simples caderno, que, aliás, é o nome da sua composição. Após assumir os tais compromissos, no verso final os autores fazem um pedido, que reconhecem ser um pedido justo, caso eles realmente venham a cumprir com o que se comprometeram nos versos anteriores.

Sou eu que vou seguir você dos primeiros rabiscos até o b-a-ba.
Em todos os desenhos coloridos vou estar.
A casa, a montanha, duas nuvens no céu,
E o sol a sorrir no papel.

Sou eu que vou ser seu colega, seus problemas ajudar a resolver.
Lhe acompanhar nas provas bimestrais, você vai ver.
Serei de você confidente fiel,
Se seu pranto molhar meu papel.

Sou eu que vou ser seu amigo, vou lhe dar abrigo se você quiser.
Quando surgir os primeiros raios de mulher.
A vida se abrirá num feroz carrossel,
E você vai rasgar meu papel.

O que está escrito em mim comigo ficará guardado, se lhe dá prazer.
A vida segue sempre em frente, que se há de fazer?
Só peço a você um favor, se puder.
Não me esqueça num canto qualquer.

Que Deus nos faça enxergar o tamanho da responsabilidade que é o de lapidar essas joias que ele nos coloca como guardiões, as suas mais preciosas joias, para estarem sempre aptas a andar com Jesus. Que ele nos dê sabedoria suficiente para transmitir a elas os ensinamentos que aprendemos do evangelho. E que nos capacite a dar a elas os exemplos necessários para que possam aprender não somente a amar Jesus, mas aprender o quão importante também é amar como Jesus amava. Mas até lá, que ele tenha misericórdia de nós e que ele, e você meu neto, perdoem as nossas omissões.

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Os pães da criança II

Multiplicação de pães e peixes, Hildebrando Lima (1946-)
Leiam João 6,1-13
Essa mãe ou esse pai, não sabemos ao certo, cuidou muito bem para seu filho, ou filha, estivesse preparado para ir atrás das oportunidades que se apresentassem. Esse cuidado o manteve pronto para perseguir e alcançar o seu objetivo, que era de estar com Jesus. Ele teve uma criação esmerada e
apropriada, para que, mesmo na tenra idade, fosse fisicamente capaz de acompanhar aqueles que queriam estar com Jesus.

Outra coisa evidente é que em nenhum momentoand a narrativa dá a entender que essa criança acompanhava Jesus com o intuito de pedir algo, ou mesmo para agradecer uma bênção alcançada. Dá a entender que ele queria estar com Jesus por estar, sem pedir, sem reivindicar, sem negociar nada. Empreendeu uma dura caminhada apenas e tão somente para estar com Jesus. Não seria nada estranho se André viesse a Jesus com o seguinte recado: Olha Jesus, tem uma criança aí que está com a mãe doente, o pai desempregado e a irmã paralítica, mas ela tem cinco pães de dois peixes. Por favor, não me condenem por levantar essa hipótese, isso é mais do que comum hoje em dia. Alguém que chega com um pacote para ofertar à igreja e logo atrás vem um caminhão lotado de pedidos e reivindicações. Podem perguntar isso a qualquer pastor ou padre. As igrejas estão cheias de gente assim, mas essa criança era diferente.

Eu fico aqui pensando na pergunta que Satanás fez a Deus no livro de Jó: Será que Jó te ama mesmo, de graça? Por nada? Debalde? Eu tenho um amigo pastor assembleiano que quando faz alusão a esse texto ele diz sempre: Amar a Deus de balde duvido que exista alguém que ame, mas de canequinha talvez. A pergunta de Satanás é oportuníssima. Será que existe alguém hoje, nesse mundo de Deus, que como essa criança, empreenda esse enorme esforço simplesmente para estar com Jesus, apenas por estar? Será que ainda existe alguém que venha à igreja sem reivindicar nada, sem querer barganhar nada, sem pedir nada, apenas para estar na presença de Deus? Eu não sei quem foi que disse isso, mas sabiamente o disse: O homem comum não ora, só pede.

Diante de tanto “meu Deus eu declaro”, “meu Deus eu determino”, “meu Deus eu exijo”, João nos coloca o desafio dessa criança que aprendeu a confiar, e por isso quer somente estar na presença de Jesus, se aquietar, e descansar nela. Porque ele vê em Jesus uma presença que se mostra tão acolhedora, tão amável e tão transformadora que nem pensa em pedir mais nada, pelo contrário, entrega a Jesus tudo que possui como se tivesse dizendo: O Senhor é o meu pastor, e nada me faltará. Numa tradução mais literal: O Senhor é o meu pastor, e eu não preciso de mais nada. Aliás, nos verdadeiros encontros com Deus ninguém vai pedir nada, pelo contrário, ele é quem vai nos pedir algo. Como no encontro de Jesus com a samaritana, ele é quem pede a ela, você pode me dar água? Filho meu, dá-me o teu coração, é o que vamos ouvir nesse dia.

As pessoas normalmente imaginam que gerar filhos saudáveis, de boa índole e bom caráter, é obra do acaso, da combinação de fatores aleatórios ou da associação de genes corretos. Bom, isso não é o pior. Tem gente que acredita até que depende do signo zodiacal ou da constelação ascendente ou até de um bom anjo da guarda. Mas toda essa gente está enganada. Para se formar este tipo de pessoa há necessidade de muitas horas dedicadas à sua educação. É preciso que os pais lhe dediquem total atenção, que lhe passem irrepreensíveis exemplos, que estejam dispostos a renunciar a muitas coisas em suas vidas em favor deles. É preciso que lhe transmitam segurança, tranquilidade e que sejam criadas em um ambiente de amor e respeito. É uma educação que leva praticamente uma vida.

Não sei bem qual foi a corrente de pensamento que surgiu a com a ideia de que devemos deixar a criança crescer e desenvolver seu intelecto, para ela mesma escolher o seu destino. Hoje sabe que isso nunca deu certo, que não tem dado certo e que jamais dará certo. Mas sabemos também que muitos pais que nunca se mostraram de acordo com esta corrente filosófica em vários aspectos, quando se deparam com o assunto religião, aí então são totalmente adeptos ao “Laissez faire”, ao deixe acontecer naturalmente. Esses mesmos pais que na hora em que o filho não quer ir para a escola, saem arrastando a criança pelo braço. Da mesma forma, quando os filhos não querem tomar remédio, enfiam o medicamento garganta a baixo, são moderninhos somente no que diz respeito à fé, e dizem: quando ele crescer decidirá por si que religião seguir.

Por isso é que a Bíblia, desde os seus escritos mais remotos, desde suas narrativas mais antigas ensina ao povo de Deus como deve ser a educação religiosa. Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Sabem como por onde se começa amar a Deus? Não é pela rejeição de outros deuses e outras doutrinas, nem pelo cumprimento irrestrito de todos os sacramentos e rituais, muito menos pela elaboração e repetição de credos comprometedores. Isso até pode ser consequência, mas não começa por aí não. Começa pela obediência, simplesmente fazendo o dever de casa. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. É verdade, os pais da Bíblia sabiam de coisas que precisamos aprender urgentemente.

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Os pães da criança

Multiplicação dos pães, Lambert Lombard (1505-1566)
Leiam João 6,1-13
Este sermão foi feito para ser pregado no culto de batismo do meu neto.

Alguém pode achar estranho que um texto que fala da multiplicação dos pães seja apropriado para um culto de celebração de batismo infantil. Mas este é o texto que coloca a criança em evidência, senão no maior, pelo menos no mais testemunhado milagre de
Jesus. Um texto que não deixa dúvidas quanto à importância que a criança tinha para Jesus e para o Reino de Deus. Ainda bem que João teve mais cuidado que os outros evangelistas em detalhar esse particular em seu evangelho, pois não omitiu a participação da criança como fizeram os demais. Se não fosse ele estaríamos dando crédito dos pães a um dos apóstolos, porque é assim que esse trecho e apresentado nas outras versões. O texto de João vem nos mostrar claramente a importância que a criança tem no ministério de Jesus, mas que, infelizmente, quase nunca foi levada em conta.

Por duas vezes é relatado um Jesus enfurecido, cuspindo marimbondo, como dizemos na gíria. Uma, quando os cambistas estavam mercantilizando a fé, e logo na casa do seu Pai. E a segunda, foi quando mexeram com as suas crianças. Ele falou apenas isso: Se alguém escandalizar um desses meus pequeninos, que creem em mim, é melhor esse alguém pendure uma pedra bem grande no pescoço e se atire no fundo do mar. Mas ainda assim não irá escapar. Isso nos dá uma pálida ideia do valor que Jesus dava à participação infantil no seu ministério. Então, seria bom que começássemos a valorizar a criança antes que tenhamos que procurar as tais pedras grandes.

O evangelho de João, diferentemente dos outros que mostram Jesus correndo de um lado para o outro, narra um Jesus que tem tempo para dialogar com uma mulher à beira de um poço, mostra Jesus em longas conversas com fariseus. E, no caso em questão, mostra um Jesus, que mesmo cercado por uma enorme multidão, mesmo quando prestes a realizar o mais poderoso prodígio do seu ministério, a instantes do mais evidente sinal da sua messianidade, para tudo e dá atenção a uma criança e à sua singela e praticamente inexpressiva oferta de cinco pães e dois peixinhos.
Parece que Jesus quer dar um calaboca definitivo na nossa eterna tentação de achar que quando estamos diante de realizar algo grandioso, as pequenas pessoas e as pequenas coisas podem ser omitidas e deixadas de lado. Para Jesus é o contrário, a multidão pode esperar, a fome pode esperar, o milagre que pode esperar, mas a criança não. Esta não pode ficar jamais para depois de coisa alguma. Jesus tem o cuidado de no seu milagre definitivo incluir um simples gesto de uma pessoa tão simples que sequer estava sendo contada no meio daquela multidão. É verdade, os evangelistas só contaram cinco mil homens; mulheres e crianças, que deveriam ser, como sempre são, a maioria, ficaram de fora. 

Mas o texto vai nos mostrar que não estamos tratando de uma criança qualquer. Ele vai nos revelar quem era e como era aquela criança, o que ela tinha de tão especial, e o porquê dela ter sido inserida com destaque na gloriosa história da salvação. A narrativa começa contando que Jesus atravessou o mar, e a criança foi atrás; que Jesus subiu a montanha, e a criança subiu também; que grande multidão seguia Jesus por onde ele fosse, e lá ia o garoto junto. Não parece atitude de uma pessoa que seguia Jesus por necessidade de ser curado urgentemente de alguma moléstia. O texto, pelo contrário, dá a entender que é uma criança bem saudável. Acompanhar Jesus nas suas peregrinações não era coisa muito fácil nem mesmo para um adulto, aliás, acompanhar Jesus sob qualquer aspecto nunca foi nada fácil, o próprio Jesus advertia os seus discípulos quanto a isso. Certa vez ele disse a um adulto jovem e culto que manifestou o desejo de acompanhá-lo: As raposas têm seus covis, as aves dos céus, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. Isto quer dizer que Jesus tinha hora para sair, mas não sabia a hora que ia voltar, ou mesmo sabia se ia voltar. Foi o suficiente para que muitos mudassem de ideia. 

Quando aconteceu o boom das camisetas com mensagens evangélicas, eu gostava particularmente de uma que dizia: “andar com Jesus no peito é fácil, difícil ter peito de andar com Jesus”. Era realmente preciso estar preparado para caminhadas longas, atravessar lugares desertos e encarar subidas íngremes. Se isso era difícil para um adulto, imaginem o quanto não foi difícil para este garoto. Para o bem da verdade, o texto fala de uma criança em idade escolar. Não diz se é um menino ou uma menina, e também não insinua ser alguém autossuficiente, pronto para a fase adulta, mas a descreve como alguém que ainda inspirava cuidados, atenção e orientação. Mas que esta era uma criança bem preparada e bem cuidada não temos a menor dúvida. É só observarmos o lanche que ela trazia: cinco pães e dois peixes. Não eram cinco desses pãezinhos que estamos acostumados a comprar nas padarias, eram pães de cevada, feitos cuidadosamente em casa, e cada pão daqueles era grande o suficiente para a refeição de uma família. Da mesma forma, não devemos pensar também que se tratava de dois peixes frescos, que precisariam ser cozidos ou assados na hora, como é idiotamente retratado nos filmes. O texto grego fala que é uma deliciosa iguaria feita com peixe, devidamente elaborada para resistir ao calor e ao tempo, algo que não se estragasse facilmente. Quando se toma conhecimento do que foi “lanchinho”, só se pode concluir que é coisa de mãe mesmo. Só mãe tem esses exageros, sai para ir à praia, mas leva casaco, guarda chuva e mesmo sabendo que vai almoçar fora, carrega biscoito para três dias.

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Do palhaço à palhaçada

Cegos de Madri, Julio Pomar (1929-)
Assim o meu povo se ajunta em grande número para ouvir o que você tem para dizer, mas eles não querem pôr em prática o que você diz. “Ele fala bonito” — eles dizem, mas o que querem é ganhar dinheiro. Para eles você não passa de um cantor de canções de amor ou tocador de harpa. Eles ouvem o que você diz, porém não fazem nada daquilo que você manda. Porém, quando acontecer tudo o que você diz — e vai acontecer mesmo —, aí eles ficarão sabendo que um profeta esteve no meio deles. Ez 33,31-33

Sem dúvidas Ezequiel é de longe o mais enigmático visionário profeta de todo o Primeiro Testamento. Nascido em Jerusalém de uma família de sacerdotes, viu sua cidade ser conquistada e foi um dos exilados da primeira leva. Já no exílio, recebeu a notícia de que uma de suas profecias se cumpriu, justamente a que mais o aterrorizava: a destruição total do Templo de Jerusalém. Não é sem motivo que suas visões que falam de luzes mirabolantes, objetos que se movem para todos os lados sem tocar no chão e que provocam ruídos estrondosos, foram confundidas por Von Daniken como sendo o testemunho de uma conspiração alienígena. Com estes agravantes fazendo pressão ao seu chamado profético, não é de se estranhar a sua linguagem chula, que, por vezes, beira as raias da ofensa moral, principalmente quando compara o povo de Israel a uma prostituta de um nível tão baixo, que necessita pagar os seus amantes para se relacionar com eles. Alguns versículos do seu livro, como o Ez 23,20, não encontraram respaldo em qualquer pregação que se tenha feito de um púlpito até hoje, devido, é claro, aos seus termos de baixíssimo calão.

Mas este profeta é muito mais do que imprecador ambulante. Ele realmente toca em pontos fundamentais da mensagem profética, explicitando as diversas situações de como ela é recebida pelos ouvintes. Na realidade, Ezequiel é um crítico da mensagem profética, e faz um esforço enorme para torná-la mais compreensível, de modo a não deixar dúvidas quanto à sua gravidade e urgência. Ele expõe as várias situações para as quais dirige a sua mensagem de uma forma didaticamente repetitiva, para que absolutamente ninguém possa dizer que não a obedeceu por não tê-la entendido. E é justamente por isso que, como nos apresenta o texto acima, recebeu pouco crédito, e foi muitas vezes ridicularizado pelas pessoas que o ouviram pregar.

O que aos olhos da consciência crítica comum não passa de um grande desperdício de tempo, é de fato a característica mais marcante da profecia. É o atestado de forma cabal de que ela foi proferida e se fez presente antes de acontecer o mal que ela denunciou. O povo pôde não ter se dado conta naquele momento, mas depois eles ficaram sabendo que um profeta de Deus esteve no meio deles. Isso era tremendamente admirado pelos povos vizinhos, que ao contrário dos seus magos, prognosticadores, necromantes e adivinhos, que faziam uso de visões alucinatórias e práticas ocultitas para proferirem seus prognósticos, os verdadeiros profetas de Israel valiam-se tão somente da sua consciência crítica e da sua capacidade em analisar situações para fazerem as denúncias dos acontecimentos futuros. Eles podiam não saber exatamente o que Deus queria, e aí estava a maior angústia do chamado profético, mas eles tinham plena convicção daquilo que Deus não queria de forma alguma. Conhecendo os rígidos critérios de Deus e constatando a ausência total da justiça, não poderiam concluir senão o pior futuro para aquela nação.

Contudo, mesmo que a minha admiração por este profeta seja extrema, tenho que admitir que ele foi superado pelos profetas do nosso tempo. É duro ter que reconhecer que o velho Zaca foi passado para trás por pregadores que nem de longe viveram experiências tão dramáticas quanto as suas. Que ele foi superado por pastores que jamais experimentaram a décima parte do ônus da sua profecia. Por visionários que enxergam mais precisamente e com muito mais detalhes a vontade de Deus para o povo. Ezequiel com toda a sua vocação profética nunca foi capaz de dizer quem ia se casar com quem. Até onde vão os seus registros, não se nota qualquer declaração de prosperidade ou a ordenação de uma bênção, por mínima que seja, sobre a vida de pessoa alguma.

Das duas uma: ou os profetas atuais de fato colocaram Ezequiel e os demais profetas no chinelo, ou tudo isso que vemos atualmente não passa de uma grande comédia pastelão. Ou os profetas antigos estão se revirando de inveja nos seus túmulos, ou estão embasbacados com a total falta de senso que existe em nosso tempo. Para agravar de vez a situação, Ezequiel deve ter lamentado muito menos sentir que o seu ministério não passou de grande palhaçada para o povo do seu tempo, do que está lamentando agora os aplausos e venerações com que são recebidos os palhaços do nosso tempo, quando no exercício daquilo que tem a coragem de chamar de vocação pastoral.

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Desdobrando a escada

Escada de Jacó, William Blake
Eu afirmo a vocês que isto é verdade: vocês verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem. Jo 1,51. Leia Jo 1,45-51

Em honra ao nome de meu pai, que se vivo fosse estaria fazendo hoje cento e doze anos, vou me permitir fazer uma analogia entre o Primeiro e o Segundo Testamentos. Vou me esforçar ao máximo para tentar repetir o que ele mais fazia, e o fazia muito bem, pois esta era uma característica marcante nos sermões que pregava,
nas inúmeras igrejas que ajudou a fundar. Diga-se de passagem, indiferentemente da sua denominação. Na contabilidade da sua vocação, igreja só tinha um nome, Igreja de Jesus Cristo. Não é que para o meu espanto os céus conspiraram em meu favor. Vieram em meu socorro fazendo com que o texto do Calendário Litúrgico de hoje trouxesse uma referência a uma analogia de um tema que já foi citada no princípio este blog, e que curiosamente foi feita por João, o evangelista de quem meu pai herdou o nome. Uma das primeiras postagens deste blog tinha por título Escada de Jacó (http://amosboiadeiro.blogspot.com.br/2012/02/escada-de-jaco.html, e foi baseada na saga do patriarca narrada nos capítulos 25 a 29 do Gênesis, um texto que tem uma relação direta e indissolúvel com a chamada de Natanael descrita no capítulo primeiro de João.

Para começar, temos o próprio nome do discípulo, Natanael, que significa presente ou dom de Deus, e é disso que João quer nos falar. É desta maneira que João quer apresentar Jesus, como o dom supremo de Deus que está em Cristo. Ele faz isso através da citação de Moisés e dos profetas, que evoca a ansiedade da humanidade por Deus. Ele quer deixar claro que Jesus veio para suprir um anseio antigo, porque desde os tempos mais remotos a humanidade anseia por Deus.

Logo no primeiro contato Jesus diz que Natanael é o israelita verdadeiro, em uma clara alusão à transformação que Deus processa, fazendo com que o enganador, traiçoeiro e usurpador Jacó, se transforme em Israel, aquele que tem que lutar com Deus para não deixar que ele se vá de si, para que ele fique ao seu lado. Transformação essa que se dá somente depois que Jacó, completamente atormentado pelo desconhecido, em um lugar de demônios tem um sonho. Ele que sonha com uma escada que o conduz diretamente ao céu de Deus. Onde seus temores se dissipam, onde ele encontra Deus nos mais improvável de todos os lugares.

Como a palavra hebraica que foi traduzida por escada denota uma rampa de acesso a um lugar elevado, algo que os contemporâneos de Jacó se empenharam bastante em construir, como é o caso da Torre de Babel, também descrita no Gênesis. Ao reconhecer as medidas inglórias que o homem tem tomado para encontrar-se com Deus, Jesus se apresenta como sendo ele esta rampa, caminho, escada que leva o homem diretamente à presença de Deus. Em Jesus, o sonho de Jacó se concretiza plenamente, não pelo esforço humano, mas por uma dádiva de Deus. Israel não precisa mais sonhar, o caminho está aberto, o acesso agora é livre, o caminho já existe além do sonho. Natanael é o israelita que confessa sem a falsidade de Jacó que Jesus é o enviado de Deus para redimir Israel, e fazer com que todo povo tenha acesso aos céus.

A pergunta de Natanael a Filipe, embora possua grande margem de preconceito, antecipa a dificuldade que Jesus teria para se fazer crer, e as próprias palavras de Jesus, quando disse que nenhum profeta é aceito em sua terra natal. Pode de Nazaré vir coisa boa? O ministério de Jesus não poderia ser de forma alguma mais fácil do que o dos profetas que o antecederam. Nem mesmo a simplicidade da sua mensagem, traduzida na mais linguagem mais próxima do povo faria diferença. A única forma de Israel aceitar Jesus como enviado de Deus é sendo verdadeiro, deixando de lado a falsidade e a própria superstição de uma tradição que vê o mundo inteiro como um lugar de demônios que impedem a presença de Deus, e não permitem que o homem se chegue a ele.

Os céus se abrem, e Natanael enfim recebe o seu presente. Tão somente porque creu, assim como Jacó, ele viu anjos subindo e descendo sobre o Filho do Homem. A escada de Jacó se desdobra diante dele, apresentando-se como uma nova realidade viável, incondicional e gratuita. Agora, mais do que nunca Natanael e todo Israel de Deus podem experimentar o que Jacó experimentou naquela noite fria, escura e amedrontadora: que através de Cristo, Deus está presente em todos os lugares, por mais que a nossa realidade demoníaca se esforce para negar.

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Pão da vida - os convertidos

Pentecostes, Luis Tristán(1585-1624)
Então ele perguntou aos doze discípulos: — Será que vocês também querem ir embora? Simão Pedro respondeu: — Quem é que nós vamos seguir? O senhor tem as palavras que dão vida eterna! E nós cremos e sabemos que o senhor é o Santo que Deus enviou. Jo 6,67-69. Leia todo este capítulo.

Com toda certeza o menor grupo foi aquele que permaneceu ao lado de Jesus após o duro discurso. É certo também que não contava com um número muito maior do que os doze homens citados pelos textos, acrescido de umas poucas mulheres. Nem por isso podemos dizer que era um grupo
seguro na sua decisão, que possuía uma fé inabalável e estava firmemente convicto. Se fôssemos fazer uma comparação com a Teologia dos profetas no Primeiro Testamento sobre o “Resto de Israel”, diríamos que estes eram o resto dos discípulos de Cristo, a pequena parcela que conseguiu sobreviver depois que Deus agiu firmemente na história dos homens. Se tivéssemos que escolher uma pessoa para representar este grupo, a escolha recairia inquestionavelmente sobre Pedro, sem dúvida a expressão máxima da ambiguidade que se instalou entre eles. O próprio texto se incumbiu de fazer esta escolha quando fez dele o portavoz da decisão que havia sido tomada em conjunto, mas em meio às murmurações de costume. 

Tenho pra mim que saber de fato quem era Jesus no contexto do plano de Deus, dificilmente eles sabiam. Mesmo que Pedro já o houvesse confessado com o Santo de Deus, e Filho do Deus Vivo, suas atitudes posteriores não condizem com este elevado grau de fé. Vislumbrar um futuro brilhante e promissor a partir daquela decisão, podemos assegurar que eles também não vislumbraram. A pergunta, desta vez dirigida diretamente a eles, ainda era a mesma, e os atingiu com surpresa e aridez de igual intensidade que aos demais grupos citados anteriormente. A sua resposta também não foi um não definitivo e convicto, mas sim a aquela que expressava o sentimento de quem não tem alternativa: A quem iremos? A quem seguiremos daqui para frente? É de crucial importância este sentimento no cristão. Foi assim que se sentiram as várias pessoas que manifestaram o desejo de seguir Jesus. Foi assim com o jovem rico, que saiu triste por ter que abandonar a segurança dos seus muitos bens. Foi assim também com o outro rapaz que queria manter-se firmemente ancorado com os laços com o passado, quando antes de seguir Jesus queria enterrar seus pais, ou seja, queria receber a sua herança. Deixe que os mortos enterrem seus mortos, foi o que ouviu de Jesus. Deixe a herança do mundo para o mundo, foi o que ele entendeu. 

Nenhuma garantia extra foi dada a esse pequeno grupo. Nenhuma promessa havia sido feita secretamente, sem que os demais grupos soubessem. Eles não foram atrás de outro Messias porque eles não havia outro Messias. O Messias era Jesus Cristo, aquele lhes falava e ponto final. Eles não cederam à tentação de ir atrás do apóstolo fulano, nem do missionário beltrano, muito menos do bispo primaz Don Cicrano. Ainda que completamente aturdidos pela veemência da questão que estavam envolvidos, no fundo eles sabiam que a verdade estava com Jesus, fosse ela a mais causticante que se apresentasse. 

A quem iremos? No capítulo 13, verso 15 do livro que leva o seu nome, Jó faz uma afirmação de igual perplexidade. Responde ele aos seus “amigos” quando questionado na sua fé em Deus diante do próprio infortúnio: Ainda que ele me mate, nele esperarei. Esta é a resposta do crente em Jesus Cristo. A resposta de quem não tem a sua esperança depositada em qualquer outra pessoa, instituição ou circunstância. É a resposta de quem lhe foi tirado todo chão de certezas e convicções, e só lhe resta a fé. É a reposta que deu Hans Küng quando disse: O cristão é aquele para quem Jesus Cristo é definitivo. Se um dia a Arqueologia encontrasse a tumba de Jesus, e atestasse firmemente que aqueles eram seus ossos, isso nada mudaria para ele. Para quem acha absurda e inverossímil esta hipótese, concluo com Dostoievsky: Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade.

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Pão da vida - os desertores

Muitos o abandonaram, Emilia Cleopas (??)
... mas mesmo assim alguns de vocês não creem. Jesus continuou: — Foi por esse motivo que eu disse a vocês que só pode vir a mim a pessoa que for trazida pelo Pai. Por causa disso muitos seguidores de Jesus o abandonaram e não o acompanhavam mais. Jo 6,64ª;65-66. Leiam todo capítulo 6 do evangelho de João.

Embora grande, o grupo dos decepcionados não era de longe o mais radical e nem o mais indignado dentre os discípulos.
Havia outro grupo que ficou ainda mais revoltado com as palavras de Jesus no discurso narrado por João no capítulo 6 do seu evangelho, o grupo dos que o abandonaram. Em bom português, o grupo dos que o deixaram falando sozinho. Por causa disso muitos seguidores de Jesus o abandonaram e não o acompanhavam mais. Importante que se diga que Jesus continuou promulgando seu discurso, enquanto este grupo fazia a sua debandada. Importante frisar também que foram aquelas palavras o motivo principal, e talvez único, dessa debandada, e que não poderíamos escolher melhor representante para este grupo do que Judas, o mais indignado dentre todos os discípulos.

Assim como os doze, Judas havia deixado sua família, seu trabalho e tudo mais que era seu para seguir Jesus em seu projeto de pregar o evangelho, curar os doentes e libertar os oprimidos pelo mal. Qualquer julgamento que se faça deste grupo, aqui representado por Judas, deve considerar em primeiro lugar este dado. Todos eles eram pessoas que tinham deixado para trás projetos e sonhos, para atrelarem-se de corpo e alma ao projeto de Jesus, ao qual pretensiosamente ele deu o nome de Reino de Deus. Contudo, não é assim que eles foram e estão sendo julgados pela História. Vejam o exemplo de Judas, quanto preconceito foi instaurado desde então. O próprio João, colocando palavras na boca de Jesus, o chama de Diabo, coisa que sequer passou pela cabeça de qualquer evangelista ou mesmo de outro escritor bíblico.

Há de fato muito preconceito no julgamento de Judas. Vejam por exemplo o verbo grego paradoson, que somente é traduzido por trair quando se refere a ele, em todos os outros casos na Bíblia a palavra empregada na tradução é entregar, como podemos ver em Mt 17,22 - Mt 26,2 - Mt 26,24 e Mt26,45. Entregar aos sacerdotes uma pessoa que cometia um delito contra o Judaísmo era obrigação de todo bom judeu, e Jesus cometera vários, como profanar o templo. Que ninguém venha querer me convencer que foi pelas trinta moedas de prata, que valiam o salário de um mês de um operário não tão bem remunerado. O que era isso para quem tinha deixado uma vida para trás?

Este grupo se sentia exatamente como Judas, especificamente neste caso, quando Jesus exigiu que eles comessem da sua carne e que se bebessem do seu sangue. Esta era uma gravíssima transgressão, e que os colocaria diretamente dentro da maior maldição prescrita pelas leis judaicas de ingestão de alimento impuro e de contaminação com sangue. Os olhos da moderna Teologia enxergam a metáfora por trás das palavras, e, com total certeza, a comunidade para quem o evangelista João originalmente dirige este evangelho também. Mas não posso dizer o mesmo da totalidade dos discípulos de Jesus. São tantas as narrativas que nos dão conta de que eles não entenderam várias outras metáforas. Jesus teve que se dar ao trabalho de explicá-las, mesmo as mais simples e mais corriqueiras.

Mas ainda assim, mesmo que a igreja de João interpretasse corretamente o sacramento da Santa Ceia, o mundo romano à sua volta o rejeitava. Por ser o Cristianismo uma religião nova, cujos rituais, inclusive o da ceia, eram restritos apenas aos iniciados, eles entendiam que os cristãos se reuniam secretamente para comer o corpo e beber o sangue de um tal Jesus. Não foram poucos os perseguidos e nem desprezível o número dos que foram mortos por causa disso.

Aceitar este simples e inocente pacto representava o rompimento definitivo com a religião de seus pais, com a tradição milenar instituída desde Moisés e com a pregação recente e ainda fervilhante de João, o batista. O que será que Jesus estava pensando que era para radicalizar tanto assim a sua pregação? Melhor perguntando, o que eles pensavam que Jesus era? Assim como para os decepcionados, esta é a pergunta chave também para os desertores. Para eles, Jesus era o superjudeu, a mais nova e aprimorada versão de Moisés, o maior de todos os profetas, o sumo pontífice. Jesus era para eles a mais representativa presença de Deus desde a Arca da Aliança, mas não era o Senhor de suas vidas. Para aquele grupo Jesus não era definitivo, Deus ainda contava com o Judaísmo, assim como hoje contamos com as instituições, para salvar o mundo. Para eles Jesus era mais que muito bom, era ótimo, talvez excelente, mas não era tudo, e para aceitar esse pacto a excelência não é suficiente. Como dizia João Wesley: Todo cristão deve estar pronto para morrer, ou para pregar, ou ainda no melhor espírito de santo Agostinho:
Ser cristão não é conquistar Cristo,
mas deixar-se conquistar por ele.
Deixar que ele conquiste em ti,
que ele conquiste para ti,
que ele te conquiste
.

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Pão da vida – os decepcionados

O Milagre do Maná de Tintoretto
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim, e eu vivo nele. Leia todo o capítulo 6 de João

Talvez o momento crucial do ministério não tenha sido o confronto com os sacerdotes, escribas e fariseus. E é bem possível que não tenha sido também o confronto com a morte na cruz. Pela dramaticidade do tema, temos sérias razões para
pensar que o embate decisivo do seu ministério tenha sido o confronto com os seus próprios discípulos. Não estamos falando dos discípulos ocasionais ou oportunos, como aqueles que foram rechaçados porque o seguiam por terem comido pão e saciado as suas necessidades. Falamos daqueles discípulos bem próximos, talvez muitos dos setenta que foram enviados em campanha. Falamos daqueles que viram Jesus fazer mais do que curar enfermos e multiplicar pães. Falamos daqueles que estavam divididos pelo entusiasmo do oba oba e o compromisso com um novo tempo. O texto sugerido acima assinala definitivamente o clima deste confronto. Esta é a hora de saber quem vai e quem fica, de saber quem está com ele cem por cento, e quem o acompanhará até as últimas consequências.

A proposta de Jesus de um pacto de sangue, logicamente que exigia sangue, e Jesus por mais de uma vez disse que estava pronto a verter o seu em favor deste novo pacto. Aqueles que se propuseram a fazer o pacto sinceramente, se comprometeriam também em verter o próprio sangue, caso fosse necessário. Esta aparente simples relação tem desdobramentos diversos. Em primeiro lugar, João não está precisamente descrevendo uma cena de um tempo presente para si. Está sim fazendo teologia após alguns anos do ocorrido, pelo menos uns bons sessenta anos. É bem provável que os discípulos de Jesus a quem João estava se dirigindo, conhecessem bem mais de perto as implicações deste pacto, uma vez que a perseguição aos que se anunciavam ser de Cristo era cabal. Aos da época anterior estava sendo apresentado apenas uma visão futurista do que poderia vir a acontecer. Pode ser também que estas palavras estivessem tentando motivar a fé de quem já estava sangrando por amor a Cristo. Mas o que temos de fato é que tanto os discípulos presentes com Jesus, como aqueles a quem João escrevia estavam diante da decisão mais difícil de suas vidas.

De acordo com a decisão que cada um tomou podemos identificar os vários grupos que se formaram a partir daquele ponto. Um dos grupos, o maior deles, era composto pelos decepcionados com Jesus. Aqueles discípulos que tinham convicção de que ele era o Messias e que não o seguia por interesses pessoais, como aqueles que já haviam ficado para trás, desmascarados por Jesus nas suas intenções de aquisição de bens e alimento pelo método fácil. Era um grupo bem intencionado que tinha perspectivas nacionais com respeito à política de dominação do território, e, quem sabe, até algumas esperanças globais no que dizia respeito à saúde e o bem estar de todos. Estavam com Jesus visando um projeto maior que suas próprias barrigas, mas que na hora do “vamos ver” ficaram indignados com Jesus: Muitos seguidores de Jesus ouviram isso e reclamaram: — O que ele ensina é muito difícil! Quem pode aceitar esses ensinamentos? (Jo 6,60)

Este contingente era composto de pessoas parecidas com os caminhantes de Emaús, que da mesma forma que estes, ficaram tristes, cabisbaixos, diria até que ficaram consternados, mas, acima de tudo, ficaram mesmo decepcionados. Nós pensávamos que era ele quem iria redimir Israel. Perdemos três anos seguindo o Messias errado.Seguiram o Messias das suas próprias convicções, o Messias que estava programado para fazer aquilo que sempre se esperou que um Messias fizesse. O Messias das mais nobres expectativas humanas. Eles queriam o Messias que fazia sangrar, não o que sangrava. O Messias que vencia os inimigos pela força, não o que os amava como a si mesmo. O Messias que vencia a tudo e a todos, não o que se deixava ser consumido pelo mal.

Para quem pensa assim aquela proposta de pacto é inviável, inexequível. Não faz qualquer sentido se deixar derrotar quando a vitória depende de meros detalhes, tais como convocar doze legiões de anjos para lutarem em seu favor. O Império Romano dispunha, segundo alguns, de no máximo seis legiões na época, e nem um anjo havia entre eles. Significava uma barbada para as tropas celestiais de Jesus. E a lógica não para aí, o mundo inteiro seria beneficiado, caso Roma deixasse de oprimi-lo, como já fazia há séculos.

Mas a condição imposta por Jesus não previa esta possibilidade. Era cortar a mão, perder um olho, ficar manco e estropiado ao lado dele no Reino, ou continuar gozando de plena saúde e conforto fora do Reino. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim, e eu vivo nele. O Pai, que tem a vida, foi quem me enviou, e por causa dele eu tenho a vida. Assim, também, quem se alimenta de mim terá vida por minha causa.

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Livramento ou risco?

Os setenta discípulos, iluminura de um manuscrito medieval
Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos. Leia Lc 10,1-12, é muito importante.

Estas são palavras bem conhecidas do cotidiano brasileiro. Alerta sobre situações de risco são alardeadas em todos os telejornais e das formas mais diversas possíveis. Já no livramento, o carioca leva uma vantagem,
pois além de ser bombardeado com promessas de livramento anunciadas incansavelmente pelos pastores eletrônicos no rádio, na TV e na Internet (nesta última tenho a minha parcela de culpa), temos o nosso próprio morro do Livramento, que mesmo pacificado, não oferece as garantias prescritas no seu nome.

Além de conhecidas, estas palavras são interdependentes. Não existiria uma sem a outra, é claro! Somente necessita de livramento aquela pessoa que se encontra em estado de risco iminente. Por outro lado, a maior necessidade de quem se encontra em estado de risco é o livramento. Quanto ao morro do Juramento, antigamente conhecido como morro da Favela, foi palco de atuação de um dos mais fantásticos pastores que já pisou em nosso território, rev Hugh Clarence Tossir. Um dia contarei a história dele.

A despeito de tudo o que se relaciona a este tema que tem opções de vida indiscutivelmente antagônicas e de fácil escolha, o texto do evangelho sugere algo contraditório a tudo o que foi concluído até agora. Segundo o texto que narra a missão dos setenta enviados de Jesus, a opção natural do cristão deveria ser pelo risco e não pelo livramento. Vamos tentar esclarecer melhor este intrincado raciocínio.

Em certa altura de seu ministério, Jesus envia setenta dos seus melhores discípulos a percorrer as vilas e cidades por onde ele mesmo gostaria que o evangelho fosse anunciado. Algumas prescrições, porém, se faziam necessárias: 
1- Renunciar a qualquer tipo de segurança ou garantia, não levando consigo suprimento ou vestuário extra.
2- Não saudar ninguém pelo caminho, pois a missão do evangelho é promover a paz através da justiça, e não de acomodar as pessoas com circunstanciais e apressadas promessas de livramento imediato. 
3- Permanecer até o final da sua missão na mesma casa que o hospedou quando da sua chegada à cidade. Logicamente para evitar ceder à tentação de conseguir melhores acomodações, como também o constrangimento do primeiro anfitrião.
4- Curar os doentes em seu nome. Jesus era conhecido primordialmente como curandeiro.
5- Anunciar de todas as maneiras que o Reino de Deus é chegado.
6- Confiar na generosidade que a pregação da sua mensagem irá provocar, sem, contudo, abusar dela de forma alguma.
7- Condenar sumariamente todos aqueles que rejeitarem previamente esta oferta gratuita. Isto está bem de acordo com a poesia de Dorival Caymmi, pois quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé.
8- Fazer a jornada aos pares, para que haja testemunho de tudo o que está sendo realizado.
9- Pedir insistentemente ao Senhor da colheita que aumente o número de operários, porque o campo é vasto e os trabalhadores são poucos, e também para que esses poucos não venham a se vangloriar ou ter privilégios.
10- E depois de tudo feito e do trabalho consumado, permanecer com a certeza de que prostitutas e publicanos nos precederão no Reino dos Céus.

Não bastassem as precárias condições em contrapartida ao acúmulo de exigências, os setenta saíram debaixo de uma terrível ameaça. Em um país pronto a explodir em guerra; debaixo da inflexível opressão romana; vivendo num mundo recheado de superstições e religiões de mistério; no meio de um povo miserável que já não tinha mais como suportar a exploração dos ricos; presenciando uma religiosidade exterior, completamente atrelada e comprometida com os interesses dos poderosos; contemplando dia após dia a desesperança e o descrédito nas promessas de Deus, Jesus ainda ousa dizer: Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos. É assim que age o bom pastor? É desta maneira que o pastor dá a sua vida pelas ovelhas? São essas as garantias que o evangelho tem a nos oferecer? Não sei bem a resposta a esta questão, ou melhor, até sei. Mas não é para satisfazer curiosidades ou aplacar consciências o intuito primeiro deste blog, e sim para levantar a dúvida sobre o que poderíamos nós pensar que de fato foi oferecido aos setenta naquele dia, livramento ou risco?

ps. A Bíblia Online ao lado foi melhorada. Não deixe de conferir esta facilidade oferecida pela Sociedade Bíblica do Brasil.

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Hillel e Shammai

Hillel e Shammai,Shoshana Brombacher 1959-
Os fariseus perguntaram: — Nesse caso, por que é que Moisés permitiu ao homem mandar a sua esposa embora se der a ela um documento de divórcio? Jesus respondeu: — Moisés deu essa permissão por causa da dureza do coração de vocês; mas no princípio da criação não era assim. Leia Mt 19,3-12

Por mais que evitasse discutir assuntos referentes ao legalismo judaico, principalmente os que extrapolavam os mandamentos bíblicos, Jesus, vez por outra, se via envolvido nas questões temporais,
que nada acrescentavam à sua missão de implantação do Reino Deus. Já não bastavam os 613 mandamentos bíblicos, já não bastavam que estes mitzvot, como eram conhecidos, fossem em número de 248 positivos, ou seja, mandamentos que afirmavam um preceito, tipo: honrar pai e mãe. Não bastava também que eles tivessem um mandamento negativo ou proibitivo para cada dia do ano. Isto mesmo, 365 mandamentos, como se cada dia do ano solar lhes dissesse: não faça besteira hoje, os contemporâneos de Jesus queriam porque queriam colocá-lo contra a parede. Desta vez, citando um conhecido mandamento da lei mosaica: o mandamento que instituía condições claras para a concessão da carta de divórcio. No hebraico popular era mesmo um indisfarçável repúdio à mulher, uma vez que este documento somente poderia ser expedido pelo homem. E é aqui que entram os dois rabinos que emprestam seu nome ao título desta meditação.

Como eu também não quero me envolver nesta questão do cristianismo que persiste entre as suas duas maiores denominações, o catolicismo romano e o protestantismo, e que se arrasta desde o século XVI, quando Henrique VIII, rei da Inglaterra, quis casar novamente, o que o fez pelo menos cinco vezes, vou falar sobre Hillel e Shammai. Estes dois rabinos do primeiro século que promoveram o mais acirrado debate teológico do Judaísmo de então. As mais banais questões eram motivo de intensos debates e controvérsias. Se Hillel dizia que as oito velas do Hanukkah deveriam ser acesas uma por dia, a partir do primeiro dia, Shammai propunha que elas deveriam estar todas acesas, e que fossem apagadas uma por dia.  Até mesmo a quem se deve administrar o ensinamento da Torah era assunto controvertido entre estes dois líderes do povo judeu.

A despeito do povo já possuir (em advoguês) jurisprudência firmada por Moisés, que somente permitia o divórcio em casos extremos de concubinato ou casamento consanguíneo em grau proibido, os “papagaios de pirata” (ler a minha versão sobre este tema em http://amosboiadeiro.blogspot.com/2012/03/papagaio-de-pirata.html) queriam saber qual era o partido de Jesus na loteria legalista promovida por esses dois rabinos. O partido conservador de Shammai, que advogava segundo Moisés, pregava que o divórcio só deveria ser permitido estritamente nestes dois casos. Já Hillel dizia que qualquer mínima transgressão da mulher era passível de divórcio. Não tirar a louça do jantar seria um destes bons motivos. Assim como acontece hoje em dia, Shammai estaria mais para romano e Hillel mais para protestante.

Mesmo sem entrar fundo na questão partidária, Jesus expõe a sua posição, e a faz de modo inquestionável. Para ele, seja qual for o preceito da lei, ela somente existe pela dureza do coração humano. Jesus se vale de uma lei positiva, que mal interpretada trata o assunto mais como imposição do que realmente como uma concessão, para fazer valer uma ordem primordial de Deus estabelecida em Gn 1,27; 2,24 e 5,2. Contudo, Jesus não interpreta as palavras do Gênesis como sendo um dos tantos mandamentos positivos, mas como constituição do homem e da mulher como casal. Um preceito reconhecidamente humano, e que já existia desde o início dos tempos. Um preceito que não contemplava o domínio de um sobre a vida do outro: homem e mulher os criou.

A natureza humana se mostra inflexível sempre que se dispõe a resistir à vontade de Deus. Muito embora os discípulos se assustassem diante da exigência de um vínculo indissolúvel, o matrimônio assume na nova comunidade, que é a sua igreja, o padrão por excelência no tipo de relacionamento que deve imperar entre os cristãos a sua igreja. Jesus dá um passo a mais no conceito de união, propondo que a lei ceda lugar à graça, como mais tarde Paulo vai concluir em Rm 5,20: A lei veio para aumentar o mal. Mas onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda.

Entre Hillel e Shammai escolhamos sempre ficar ao lado de Deus, somente assim poderemos ter a certeza de que estaremos certos. Se alguém quiser se orgulhar, que se orgulhe de me conhecer e de me entender; porque eu, o Senhor, sou Deus de amor e faço o que é justo e direito no mundo. Estas são as coisas que me agradam. Eu, o Senhor, estou falando (Jr 9,24)

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Graça também no Primeiro Testamento

Cena do filme A festa de Babete, de 1987
Jacó disse a José: Eu tinha me resignado que nunca mais iria ver o teu rosto, mas Deus me concedeu ver até os teus descendentes. Gn 48,11

É muito difícil para qualquer ser humano admitir a própria incapacidade. Talvez, naquilo que diz respeito à cultura ou à capacidade física, haveremos de encontrar alguém que sinceramente se assuma incapaz. Mas no aspecto da conduta pessoal jamais ouviremos alguém dizer: “Eu não tenho moral suficiente para tal coisa”. Todos nós de uma
forma ou de outra nos achamos dignos, ainda que seja de uma pequena parcela de dignidade. Ninguém em sã consciência admite sua própria indignidade. Deve ser por isso que para nós é muito difícil aceitar na sua essência a doutrina da graça de Deus. É muito difícil aceitar que Deus nos concede o dom supremo do perdão sem que tenhamos que fazer absolutamente nada para recebê-lo. É muito difícil aceitar que o que Deus nos concede é por graça e não por merecimento.

Existe um filme antigo chamado “A festa de Babete” que conta a história de uma mulher que foi viver em uma comunidade dinamarquesa de rígidos conceitos religiosos. Uma cidade governada pelo rigor das leis morais de um protestantismo inflexível do auge do renascentismo. Essa mulher recebeu um prêmio em dinheiro e antes de deixar a cidade promoveu um jantar farto e com as iguarias mais caras que o dinheiro podia comprar. Ela foi homenageada por um dos líderes presentes pelo seu altruísmo em dividir parte do seu prêmio com as pessoas daquela cidade deixando-as felizes como há muito tempo não se sentiam. Qual não foi a sua surpresa quando soube que aquela mulher tinha gasto todo o dinheiro do seu prêmio com aquele jantar. Foi aí que uma pessoa de fora fez a feliz comparação. Disse essa pessoa: Assim é a graça Deus, um presente que custa absolutamente tudo para quem dá e absolutamente nada para quem recebe. Esta é a conclusão tirada do filme. Não custa absolutamente nada para quem recebe.

Nada em questões de mérito, o que Deus nos concede é exclusivamente pela sua graça e não por qualquer tipo de merecimento, promessa, aliança, pacto herança ou interesse. Isso é algo extremamente humilhante para o ser humano. A graça é realmente humilhante. É como ser homenageado em uma cerimônia para a qual não se foi convidado. É a bem aventurança mais próxima do crime de estelionato. É tomar posse definitiva daquilo que nem em sonho possa vir a ser seu, porque nada se faz para merecer. Aliás, a palavra merecer que é muito útil à contabilidade humana, na contabilidade da graça ela é sequer mencionada. Porque enquanto mereceríamos castigo, recebemos perdão, enquanto mereceríamos prisão pela dívida, recebemos ficha limpa, enquanto mereceríamos voltar rastejando para sermos tratados como escravos, somos recebidos com festa.

Nada em questões numéricas. A contabilidade da graça é sempre deficitária. É o pastor que arrisca noventa e nove ovelhas para resgatar uma. É a mulher que deixa o seu compromisso com os deveres de casa ficarem estagnados, para encontrar uma pequena parte do que do tanto que possui. É o pai que se divide ao meio e arrisca a sua dignidade, o seu senso de justiça e até a sua autoridade para salvar seus dois filhos que estavam se perdendo.

Nenhuma diferença na questão da época. É muito comum pensarmos que a graça de Deus foi uma inovação trazida por Jesus Cristo. Inovação essa que foi totalmente desconsiderada até que Paulo, o apóstolo, a interpretasse de modo claro e inquestionável. É muito comum pensarmos que a graça de Deus é algo que passou a funcionar entre nós a partir de mudança no caráter de Deus. Um Deus que no Primeiro Testamento queria vingança, mas que foi “convertido” por Jesus ao perdão. Pois bem, o pequeno trecho do início da reflexão é a prova cabal de que estamos redondamente enganados. Jacó, que já havia se conformado com a morte do fruto do seu amor por Raquel, o seu filho nitidamente preferido José, receba a graça imerecida de ver também os seus netos, e com isso, a percepção de mais uma característica da graça: nada em questão do quantitativo. Porque se já era impossível para Jacó ver novamente José, Deus vai além, fazendo-o ver os filhos dele, tal como aconteceu no episódio da prostituta que leva e perfuma os pés de Jesus: quando apenas duas gotas bastavam, a graça derrama sem medida e sem comedimento. 

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O pai e a autoestima II

S. José com Jesus menino, de Guido Reni
Em segundo lugar nós necessitamos de realizações. O ser humano nasce com uma força motriz interior incontrolável. Ele nasceu para realizar algo, resolver problemas. Nós temos essa força dentro de nós que nos impulsiona à conquista e ao conhecimento. Este instinto de querer crescer está em todos os organismos vivos, é o princípio da vida. Quando conquistamos algo que para nós tem valor, nos sentimos recompensados pelos nossos esforços. Isso cria em nós um senso de autoestima, isso nos
garante que somos pessoas de talento, que somos pessoas que tem valor. Mesmo assim, existem entre nós pessoas que nunca se livraram do sentimento de inferioridade, apesar de terem conseguido realizar coisas estupendas. Na verdade, temos que reconhecer que todos nós, em maior ou menos grau, carregamos este senso de insuficiência e de insegurança. E isso nada mais é do que a rejeição de nós mesmos como pessoas. O conhecimento dos motivos que nos levaram a ser assim nos ajudaria e enfrentar com mais sucesso nossas emoções. Mas isso não bastaria, precisaríamos também receber a afirmação dos outros, e mais uma vez, principalmente dos nossos pais. É deles a verdadeira confirmação de que temos valor. Uma coisa que nem todo mundo recebe.

Imaginemos agora como se sentem as crianças que não recebem qualquer reconhecimento pelas suas realizações. Mesmo que ainda não sejam capazes de raciocinar como adulto, elas são bem conscientes da sua necessidade de afirmação. Elas sabem muito bem quando estão sendo louvadas, lisonjeados e aceitas. Mesmo que não compreendam o significado das palavras, elas compreendem muito bem a diferença entre a aceitação e a rejeição das suas realizações. Não importa como fazemos, se com aplausos, com sorrisos, com indiferença ou com apelação, elas sabem distinguir uma coisa da outra. Sabem distinguir quando tem e quando não tem valor.

Outra carência universal é a atenção. Todo pai e toda mãe sabem o quanto cada filho precisa de atenção, e sabe também que a menor carência desta significa rejeição. A criança pequena demanda uma parcela enorme de atenção, pois é isso que lhe assegura que ela tem valor. O seu senso de importância próprio cresce ou diminui na medida exata em que ela percebe que os outros lhe dão mais ou menos atenção. Até bem pouco tempo eu tinha os intocáveis lugar no sofá, na mesa e em algumas coisas que somente eu podia mexer. Isso durou exatamente até a chegada do meu neto, e foi tão bom ele acabar com essa besteirada toda. A sua necessidade de atenção fazia com que ele ocupasse justamente o lugar que era importante para alguém. É agora que estou percebendo o quanto fui idiota e o quanto de tempo desperdicei ficando irritado com a necessidade de atenção do meu filho. Hoje eu posso ver que a resposta irritada de um pai ou de uma mãe superocupados, e percebida pela criança com rejeição total, e é assim que se constrói um sentimento de autoestima baixo.

A falta desses elementos nos primeiros anos de vida leva à formação de um adulto retraído ou demasiadamente agressivo. Dizem os estudiosos que a neurose não é transmitida geneticamente e sim pelo ambiente. A maioria das nossas neuroses vem da falta de amor. Como todos precisam de aceitação! Como todos precisam de reconhecimento! Como todos precisam de atenção! A falta ou mesmo a carência de algum desses elementos produz algum grau de autoestima baixa. Outra coisa que tenho aprendido é que as nossas emoções não são temporais e nem circunstanciais. Elas estão além do tempo e das circunstâncias. Nossas emoções não são fruto apenas do que está nos acontecendo agora, e sim de um somatório de tudo que já nos aconteceu até hoje. Coisas que me aconteceram, fantasmas que me assombravam no passado continuam me assombrando com a mesma intensidade que antes, e isso vai acontecer até que eu reviva estas situações e as esclareça satisfatoriamente para mim mesmo.

Como na grande maioria das vezes isso dificilmente é alcançado, precisamos contar com a aceitação de uma consciência superior à nossa. Uma consciência que transcende as autoridades da nossa infância e as circunstâncias do nosso ambiente. Somente alguém que foi muito rejeitado e conseguiu pelo próprio sacrifício resolver estas questões dentro de si. Só alguém que pode transformar o ambiente caótico e sem esperança que jazia a humanidade à sua volta, na, até então, inviável esperança de Reino de comunhão e solidariedade, ao mesmo tempo em que compreendeu e perdoou as autoridades que lhe impuseram uma má influência, pode nos garantir a plenitude dessa aceitação. Deus aceita os homens pela fé que eles tem em Jesus Cristo. Ele concede isso a todos que creem, a todos que aceitam que são aceitos por ele. Isso é bom porque, da mesma forma que estamos nivelados pelo pecado de nós mesmos, e igualmente sofrendo a consequência dos pecados dos outros, somos aceitos sem medida e sem restrição.

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