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Vitral de Eric de Sassure (1925-2007) |
Contudo, apesar da Bíblia nos falar exaustivamente destes critérios divinos, ainda assim ousamos criar critérios próprios e cometermos o absurdo de desafiar Deus através dos nossos critérios. É um tal de Senhor, se tu és Deus faze isso; manifesta-te aqui e prova o teu poder e a tua glória. Alguns mais desaforados ousam dizer: Deus, nós viemos aqui cobrar as tuas promessas.
Eu imagino que Deus nunca foi tão cobrado quanto é hoje, e são cobranças de promessas que Deus efetivamente nunca fez, geralmente fundamentadas em versículos mal interpretados, ou interpretados completamente fora do contexto. É preciso meditar profundamente sobre as práticas da pregação atual, que tantos se utilizam, e fazem delas não somente o escopo da sua mensagem, como de todo o seu ministério. É onde vamos descobrir que o chamado ministério profético hoje baseia-se praticamente nisso: cobrança. Cobra-se de Deus o cumprimento das promessas, para poder se cobrar do membro a contribuição. A igreja de hoje é uma agência de cobranças, parece que não tem um Senhor, ela sim é a senhora toda poderosa, a detentora da bênção, a razão de ser do evangelho.
Mas realidade vem nos mostrar que ela nunca esteve tão frágil e tão desprotegida. Segundo Ezequiel 13 não há ninguém que se coloque à frente dela, quando a sua muralha espiritual da igreja cai. Não há ninguém para receber o primeiro impacto. Daí essa imensa quantidade de escândalos, essa carência moral, essa falta total de respeito. A igreja de hoje não tem quem arrisque o pescoço por ela, quem coloque em jogo a sua carreira, seu ministério, não tem o bom pastor, aquele que dá a vida pelas suas ovelhas. Desde sempre se discutiu muito a respeito das ameaças que a igreja vem sofrendo, e sempre se atribuiu essas ameaças a fatores externos. Mas o versículo em questão nem de longe se refere a ameaças externas, ameaças causadas pelo inimigo, como costumamos dizer. O real confronto que o versículo trata se dá contra o próprio Deus, e esse é o problema, quando é Deus quem vem fazer cobranças à sua igreja. Esta é a hora crucial, a hora em que o verdadeiro vocacionado tem que se colocar à brecha e interceder pela igreja, interpelar Deus por ela.
A Bíblia registra, para a nossa inspiração, alguns dos grandes interpeladores. Aqueles que na hora H, com todas as suas limitações, se colocaram à brecha. Quando Sodoma e Gomorra iam ser destruídas, Abraão chega a ser impertinente, e se interpõe entre Deus e as cidades do mal, e arriscando o seu próprio pescoço, pergunta: Castigarás o justo juntamente com o pecador? Não fará justiça o juiz de todo o universo?Moisés o fez por mais de uma vez. O salmo 106,23 diz isso, referindo-se a Êxodo 32. Isaías, no capítulo 6, quando recebe a mensagem que deveria pregar, depois da sua pronta resposta ao apelo vocacional, diz inconformado: até quando Senhor? Mas nenhum deles foi tão eficiente na interpelação quanto Jeremias. E Jeremias foi tão persuasivo, que mais de uma vez Deus disse pra ele: Nem vem. Não comece porque eu não vou ouvir (Jr 7,16. 11,14). Como eram doidos esses profetas. Criticavam o povo, denunciavam, xingavam, alguns até amaldiçoavam, mas sempre se colocavam à frente, intercediam pelo povo a quem tanto amavam, confrontando o próprio Deus por eles.
Mas o fato é que Deus sempre andou em busca desse homem e dessa mulher: Procurei entre eles um que levantasse uma cerca, que por amor à terra aguentasse na brecha diante de mim, para que eu não a destruísse; mas não o encontrei (Ez 22,30). Deus busca desesperadamente o homem que seja capaz de confrontá-lo dentro dos seus critérios, que seja capaz de interceder pelo seu povo com razão e justiça. Ele fica feliz quando isso acontece. Imagino a felicidade de Deus como Pai, quando viu seu filho Abraão confrontá-lo com ética tão elevada, que pai não ficaria orgulhoso de um filho assim. Deus não quer condenar, Deus quer salvar. E esta, portanto, é a tarefa mais complexa que o profeta é chamado a realizar. A hora em que ele tem que converter o povo ao arrependimento, e converter Deus à misericórdia. Não se assustem quando eu digo converter Deus, porque é isso que Jesus faz na cruz: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem. Este é o verdadeiro ato de consumação do evangelho. O evangelho se consuma quando Jesus intercede, isto é, se coloca no lugar dos réus, quando se coloca à brecha em favor de nós, um povo que já estava de guarda baixa, porque a muralha que o cercava caiu. Estava, portanto, condenado.
Observem que na Bíblia, a palavra pecado quase nunca é usada para um individuo. Mesmo quando se referia aos reis de Israel, estava levando em conta toda a estrutura de governo. A crítica de João às igrejas da Ásia Menor já era mais abrangente: a igreja de Esmirna foi infiel, a igreja de Laodicéia pecou, e os seus pastores com elas. Mas mesmo quando se refere a um indivíduo, o pecado, na Bíblia, antes de ser um ato é um estado, por isso essa palavra nunca deve ser usada no plural. Não se diz os meus pecados, e sim o meu pecado de uma forma global e abrangente. Por tudo isso que a interseção se torna uma tarefa complicada. O pastor tem que interceder pela igreja, e ao mesmo tempo por si mesmo, porque ele está nivelado ao povo, no mesmo barco, passível da mesma punição. A intercessão é complicada também porque na maioria vezes não é uma tarefa de resultados rápidos e consequências imediatas, uma vez que o grande confronto se dará no Dia do Juízo. Esta era a grande preocupação de Ezequiel. Ele denuncia que os pastores eram bons em fazer profecias, em determinar, em abençoar, em ditar regras de comportamento, mas não estavam preparados e nem preparavam povo para se defender no Dia do Senhor, que para nós cristãos chama-se o Dia do Juízo.
Falei em dia de juízo, mas talvez eu seja a pessoa menos credenciada para falar disso. Eu sou péssimo escatologista. Não faço a menor idéia de como será esse Dia de Juízo. Não sei se vai ser diante de um júri, ou numa conversa íntima. Mas eu sei de uma coisa e desconfio de outra. Tenho certeza de que um dia estaremos frente a frente com Deus, e tenho pra mim que naquele dia apenas uma pergunta se fará aos nossos corações. A pergunta de Jesus a Simão Pedro: Tu me amas? Se assim for, que Deus nos capacite a responder essa pergunta da forma mais triunfante possível: Senhor, tu sabes todas as coisas. Tu sabes que eu te amo, e sabes que, tanto quanto me foi possível, me coloquei à brecha diante das tuas ovelhas.
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