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Talvez seja o grande dilema de identidade do cristão de hoje. A despeito de Isaías ter resolvido a questão de forma radical: Pelo que o Senhor corta de ti a cabeça e a cauda, a palma e o junco, tudo num mesmo dia, ainda nos resta uma saída honrosa. Antes do seu nascimento,
Jesus estava predestinado a tomar partido na luta entre a exaltação e a humilhação. O cântico de sua mãe, Maria, já o apresentava como aquele que nasceu subverter valores: exaltará os humildes e despedirá vazios os ricos. E esta característica do ministério de Jesus prima pelo ineditismo, porque se existiu um propósito do qual até o Diabo duvidava, foi justamente esse: alguém que arriscasse seu pescoço na tentativa desta inversão revolucionária. A descrença do tentador no cântico de Maria foi tão grande, que mais tarde ele iria pessoalmente conferi-la no deserto. No momento em que Jesus definia as prioridades da sua missão, ele apareceu para se assegurar que não seria bem assim.
Também, como imaginar que uma pessoa possa querer buscar na humilhação um caminho para a exaltação? A não ser que faça o que o Diabo sugeriu, construa antes para si um pedestal onde possa subir para ser visto e apreciado. Porque não vejo como alguém possa galgar um lugar de destaque com um projeto cuja sina é humilhação e derrota. Por que escolher apenas 12, ficar sujeito a itinerância, depender da caridade alheia para sobreviver, quando uns poucos milagres lhe bastavam? Somente assim dá para entender um pouco da dificuldade que Jesus teve para se anunciar como o Messias, entender o porquê fazia questão absoluta do anonimato e entender os motivos da demora do seu reconhecimento, demora essa que perdura até hoje.
O fato é que Jesus também foi radical quanto a esse aspecto da vida dos seus discípulos. Ele nunca permitiu que uma manifestação extraordinária da misericórdia de Deus, servisse de trampolim para promoção pessoal ou mesmo para a divulgação do Reino. Aliás, tais manifestações extraordinárias, que comumente chamamos de milagres, nunca foram garantia de que Deus estava avalizando a situação vigente. Paulo diz justamente o contrário, que Deus mais se manifesta mais onde o pecado é mais evidente: Onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda. E diz mais: milagre é sinal para os não crentes. Sinal para os que creem é a profecia, é a pregação da Palavra que serve para exortar, para edificar e para consolar.
Jesus nos ensinou também que uma boa reputação constrói-se ao longo de uma existência, com abnegação e despojamento, mas que para destruí-la, basta apenas um pequeno gesto. Observem o texto: aquele que se exaltar será humilhado, porém aquele que se humilhar era exaltado. Ele diz isso em três ocasiões diferentes. Por quanto precisamos analisar cada um desses três relatos, na tentativa de compreender esse imbróglio no qual Jesus nos meteu.
Mateus 23,1-12
Mud dizia que para ser Cristão não é preciso muita coisa. Para ser cristão é preciso tudo. De cara ele nos mostra a dificuldade que é ser cristão para si mesmo. Por que será que existe alguém na face da Terra que não ama ser reconhecido? Alguém que não quer ver seu trabalho ser valorizado? Que não fica feliz quando é saudado em praça pública? Será que existe alguém que julgue o outro com critérios mais brandos e vista menos grossa do que o julgamento que faz de si mesmo? É difícil, não é? Mas vamos supor que essas pessoas existam, e vamos além: vamos admitir que sejamos nós essas pessoas. Vamos só imaginar que não amamos nada disso, não estamos interessados na publicidade, no reconhecimento, e que abrimos mão disso tudo para estar com Jesus. Sei lá, eu faço qualquer sacrifício, nego a mim mesmo, tomo a minha cruz e prossigo para o alvo. Diante essas premissas devo concluir: então sou um bom cristão, não é? E vem Jesus e diz que isso não vale nada, e ainda me chama de servo inútil.
o de bom cristão por isso? Aí está o seu erro. Você está pensando que é um exemplo a ser seguido? Aí está o seu pecado. Você está pensando que é o líder da comunidade? Está redondamente enganado. Vós não sereis mestre, porque o vosso mestre é um só. Vós sois todos irmãos. Não sereis exemplo e nem guia, por que um só é o vosso guia.
Eu fico pensando como se sente um pastor nessa hora. Um bispo, um cardeal ou mesmo o Papa. É ordenado, investe-se de merecida autoridade, e quando abre a Bíblia o que encontra? A desvalorização de tudo o que arduamente conquistou. Mas não se iluda quem não é bispo, pastor ou cardeal. Olhem agora o que Paulo diz para toda a igreja de Corinto: vós já estais saciados, já estais ricos. Sem mim, vós vos tornastes reis. Oxalá, de fato, vós tivésseis tronado reis, para que eu também pudesse reinar convosco. Ele está simplesmente dizendo: vocês já tomaram posse da bênção, são cabeça e não cauda, estão acima do bem e do mal, a sua salvação está garantida; eu também queria ser assim.
Diz a história que Albert Schweitzer havia se formado em medicina, para servir como missionário em Lambarene, na África. Certa vez estava no porto tentando fazer o carregamento de equipamentos e medicamentos que havia recebido como doação. Foi quando passou por ele um grupo de nativos vestidos em trajes cerimoniais. Mesmo reconhecendo neles esse status, Schweitzer resolveu pedir-lhes ajuda, ao que lhe responderam: nós não podemos fazer trabalho braçal porque somos espirituais. Ele abaixou a cabeça e consternado disse: eu também queria ser espiritual, mas não posso. Eu queria vir à igreja e ouvir bons sermões, depois sair inspirado para enfrentar uma semana de trabalho, mas não posso. Eu queria ser espiritual, eu queria reinar em vida, eu queria ser levita, ministro de louvor, queria ser grande na vida cristã, mas não posso.
Vinícius de Moraes escreveu uma poesia que é um recado de um jovem, que por estar envolvido com questões políticas e sociais, está cancelando o encontro com sua namorada. Esta poesia serve bem para resumir toda essa questão:
Não posso,
digam-lhe que é totalmente impossível,
agora não pode ser,
é impossível,
não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo,
mas não posso ir essa noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhares de corpos a enterrar,
muitas cidades a reerguer e muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo,
e que as mulheres estão ficando loucas,
e há milhões delas carpindo a saudade dos seus homens.
Contem-lhe que há um vácuo nos olhos dos párias,
e sua magreza é extrema;
contem-lhe que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares,
e é preciso reconquistar a vida.
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça,
que me ame, e que me espere,
porque sou seu, apenas seu;
mas que agora, é mais forte do que eu,
não posso ir.
Lucas 14,7-14
Mais do que discorrer sobre simples regras de protocolo e etiqueta, Jesus aqui esta falando da importância do comportamento do cristão diante da sociedade. E a abrangência do seu ensinamento estende-se aos dois lados do compromisso: como agir como anfitrião e como convidado. O texto parece que quer nos colocar numa circunstância corriqueira e banal. Numa situação tão comum, que jamais poderia ser pensada como ponto de questionamento da fé. Mas é justamente aí que Jesus encontra uma oportunidade para nos mostrar o quão minuciosos são os preceitos da ética cristã
O primeiro item a ser analisado é que para qualquer evento secular, as pessoas são convidadas seguindo o rígido critério da escala social. Se você foi convidado pode acreditar que está na estreita que varia entre aquele que não pode deixar de ir, e os que podem ser descartados. Se você é um desses convidados, pode crer que faz parte de um jogo de interesses bastante claro e definido. O Jornal da Ciência popularizou uma frase que resume essa idéia com bastante propriedade: não existe almoço grátis. Se você foi convidado para um almoço, pode ter certeza de que está pagando por ele de alguma forma.
Mas esse não é o único aspecto que precisa ser observado. É bom que se note que sempre existe uma hierarquia entre os convidados: aqueles que se sentam mais perto do bolo, com quem o anfitrião passa mais tempo conversando, a mesa que é mais assistida pelos garçons, por aí vai. Jesus ensina como comportar-se nesse declarado jogo de interesses. Teria Jesus antecipado a estratégia de Maquiavel de como entrar como gato para sair como leão? Percebo que não era exatamente com a exaltação que ele estava preocupado, mas sim em evitar que seus discípulos se exponham à humilhação desnecessária e inútil. Jesus valorizava tanto a humilhação que ele não queria vê-la desperdiçada numa simples festa. A idéia é: nunca se humilhe de graça ou por algo que não valha à pena. Para ele, a humilhação tinha um valor tão inestimável, que, nesse caso em particular, entre a humilhação e a exaltação ele recomenda a exaltação, quebrando a sua própria regra. Dito isso, Jesus parte para o que realmente pesa no relacionamento social: quando criamos as regras. Quando você e eu decidimos.
Sempre existiu na cabeça de Jesus uma distinção clara dos propósitos humanos: são para serem apreciados pelos homens ou por Deus. Dificilmente alguém pode fazer algo que agrade os dois lados, mas não são esses atos que contam aqui. Neste texto ele fala claramente sobre a intenção velada que está por trás de cada atitude. Esteja certo de que se você começar a convidar para a sua festa os menos indicados, se você simplesmente inverter a ordem da lista de convidados, a sua reputação vai pro ralo. Imagine o que falarão os que ficaram de fora: Olha lá o Sergio, convidou aquele rato de esgoto e não convidou a mim. Mas Jesus explica o motivo de tamanha inversão. Se convidarmos os mais importantes, que diferença fazemos? Os não cristãos não fazem o mesmo? E se os convidamos na intenção de sermos por eles também convidados, pior ainda. Isso é o que Jesus chama de atitudes para serem vista pelos homens. Atingiremos nosso objetivo, e sobre nós não haverá qualquer ameaça. Ninguém vai pro inferno por causa disso. Contudo, se almejamos um objetivo maior, vamos nos esquecer das glórias e do reconhecimento dos homens. Na enseada da fé o vento sopra noutra direção.
Jesus conta uma parábola sobre dois filhos que deram respostas diferentes a uma mesma ordem: um disse que ia e não foi; o outro disse que não ia, mas acabou indo. Ao final faz a seguinte pergunta: quem fez a vontade do pai? (MT 21,28-32) E ele conclui a parábola dizendo: em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precederão no reino de Deus. O que fica estabelecido aqui é a inversão de valores, é quem realmente importa. Se a igreja se humilhar, como no passado se humilhou, diante daqueles que não tinham como retribuir, o seu nome será exaltado. Talvez não como a que mais arrecade, ou como a que tem o templo mais suntuoso ou o maior número de membros, mas como aquela que fez a vontade do Pai.
Lucas 18,9-14
O conhecido texto do fariseu e o publicano fala do aspecto da exaltação e da humilhação no relacionamento com Deus. Ao arrolar o comportamento desses antagônicos expoentes da sociedade judaica, Jesus também faz com que indistintamente todas as pessoas estejam incluídas, desde o mais proeminente membro ao mais execrado individuo. Se o fariseu representava o que havia de elevado, religiosamente falando, e de mais politicamente mais correto no relacionamento com Deus, o publicano era o oposto: a imagem viva e presente do distanciamento de Deus. Muita gente pensa que publicano era somente o coletor de impostos. Não é bem assim. O coletor de impostos era um publicano, mas publicanos eram todos aqueles que trabalhavam para Roma, desde a coleta de impostos aos mais degradantes cargos. Logicamente que o coletor de impostos era o mais odiado, mas os outros também não escapavam dos elogios não muito recomendáveis.
É interessante que Jesus coloca o fariseu e o publicano lado a lado, numa mesma cena, imbuídos de um mesmo propósito: ambos subiam ao Templo para orar. Aqui ele declara de modo incontestável como Deus nos vê como pessoas: sempre lado a lado, sempre no mesmo nível; como ele mesmo mais tarde vai afirmar: Deus não faz acepção de pessoas. Neste caso, ambos podiam orar da mesma forma, partindo do mesmo patamar. Certa vez ouvi um pregador confundir essa palavra. Em vez de dizer patamar ele disse pantanal, talvez influenciado por uma novela da época. Ele disse: Deus não nos deixa caídos, ele nos coloca num pantanal. Acabou dizendo o contrário do que queria dizer: ele não nos deixa caídos, afunda-nos de vez na lama. Mas sabe que agora eu penso que ele tem um pouco de razão. Todos nós estamos no mesmo pantanal, no mesmo mar de lama, no mesmo buraco profundo, que é esse mundo vil, egoísta e desumano em que vivemos. Uns mais branquinhos outros mais escurinhos, uns mais limpinhos outros nem tanto, mas todos tripulantes do mesmo barco.
Mais do que simplesmente colocá-los no mesmo plano, Jesus descreve o momento de maior intimidade com Deus: a oração silenciosa. Ali, sem que ninguém tenha conhecimento, sem qualquer interferência externa, cada um frente a frente com Deus. A oração em voz alta pode ser bonita e inspiradora, mas a que vale mesmo é a silenciosa, o momento singular da conversa a sós com Deus. Eu duvido que a igreja daqueles evangélicos corruptos de Brasília induza seus membros a fazerem oração silenciosa. A oração em voz alta é fácil, é só decorar alguns chavões que a galera já sabe a hora de gritar aleluia. Quero ver o tête-à-tête com Deus. O que Jesus descreve é o lado imperceptível do coração, é o intimo, o impenetrável.
Um orava convicto do alto da soberba da sua retidão, seguindo regras rígidas prescritas na sua religião. O outro sequer religião tinha. Nem sabia orar. Apenas batia no peito e clamava: tem misericórdia de mim porque sou um pecador. O fariseu ajoelhou-se diante de Deus e orou a um ídolo; o publicano ajoelhou-se diante de um ídolo e orou a Deus. O que aconteceu ali foi exatamente o que Maria havia profetizado: o que chegou rico, foi despedido vazio, posto que foi procurar a exaltação; o que se aproximou humilhado, saiu cumulado de bens. Recebera a maior de todas as bênçãos, a alegria do perdão.
Cabeça ou cauda? Exaltação ou humilhação? Ser o primeiro ou ser o último? Ser o maior ou ser o menor? De repente parece que a coisa ficou séria, porque a regra existe: aquele se exaltar era humilhado, porém aquele que se humilhar será exaltado. Nisso tudo importa somente uma coisa: saber por quem na realidade estamos querendo ser vistos tanto na exaltação como na humilhação: pelos homens ou por Deus? Que Deus nos ajude a sermos exaltados no lugar onde realmente conta: diante do seu trono. Esta era a oração de Zepp. Que seja a nossa também.
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