Na pecadora viu um anjo. II

Maria Madalena de Rembrandt
Nos primeiros dezessete versículos do capítulo vinte do evangelho de João, Jesus vem nos revelar toda a dignidade e toda a importância que esta mulher teve no seu ministério, no tempo em que as mulheres eram apenas moeda de troca, pagamento de dívida; eram relacionadas juntamente como uma das possessões do marido ou de seu dono. Em um tempo em que um judeu ortodoxo orava da seguinte maneira: Deus, eu te agradeço porque eu não sou pobre, porque não
tenho deficiência e porque não nasci mulher; vem Jesus e derruba todo esse preconceito. Passando por cima de tudo que era mais sagrado, ele transgride a lei, desconsidera as instituições e arrasa a tradição. Seria bastante aquela meia dúzia de palavras que Jesus usou naquela hora para que nunca mais outra vez alguém ousasse tentar tirar da mulher qualquer credenciamento, fosse para o que fosse.  

Eu gostaria, se Deus assim permitir, traduzir em rápidas palavras um pouco do grande valor que esse simples diálogo tem para a história da igreja, assim como para toda a civilização, principalmente no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade.
Num primeiro momento Jesus a chama de mulher: mulher, por que choras? A palavra mulher em alguns segmentos, ainda é motivo de muita controvérsia. Quando há pouco tempo a Igreja Metodista trocou o nome da Sociedade de Senhoras para Sociedade de Mulheres, houve muito bate boca e muita desavença. Alguns maridos não queriam de modo algum ver as suas esposas sendo chamadas vulgarmente de mulheres. Mulher é a da rua, a da minha casa é senhora, diziam eles. Esse termo tornou-se tão depreciativo que ainda hoje existe mulher que não gosta de ser chamada de mulher. Mulher não, mais respeito, dizem elas.
Todos deveriam saber que a palavra mulher vem do grego guné, que é o radical de palavras muitíssimo significativas. Palavras como gene; gênero; genética, palavras que evocam o básico, o início. Ou seja, a palavra mulher está sempre ligada ao começo de tudo, ao principio de todas as coisas. Para o conhecimento primitivo, a participação masculina na concepção era praticamente nula, cabendo a mulher toda a autoria e responsabilidade. Nessa época era um termo fundamental, posto que a razão da existência como num todo, estava diretamente ligada ao começo, ao gen, portanto, ao guné. Que ninguém jamais pense que é por mero acaso que a primeira palavra da Palavra de Deus, a Bíblia, tenha justamente este radical: No princípio, (no Gênesis) criou Deus os céus e a Terra. Da mesma forma, a primeira palavra do evangelho mais consciente, e que deveria ele acomeçar o Novo Testamento, também cita este fundamento: No princípio era o verbo.
Tudo o que existe, tudo o que foi criado tem a presença do radical guné. Tudo começa na mulher. E não é apenas coisa de judeu, Paulo quando fala aos não judeus também corrobora integralmente com esta idéia. Na mais madura narrativa do Natal, em Gálatas 4,4, Paulo revela as reais intenções de Deus quando da vinda de Jesus: Na plenitude dos tempos Deus enviou seu filho, nascido de mulher, nascido sob a lei.  Quando Jesus a chama de mulher, está vendo nela não somente a origem da humanidade que tão bem conhecemos, mas a essência primordial da nova humanidade. O Deus, que no Gênesis inaugurara a existência da raça humana a partir de uma mulher, vem agora confirmar que a plenitude dos tempos, que marca o início de uma nova era, chegara da mesma forma que antes, através de uma mulher.
Os evolucionistas, aqueles que negam taxativamente a doutrina da criação, podem até desconfiar da existência de um Adão, mas da existência de uma Eva eles não desconfiam não. Indistintamente todos os seres humanos que vivem hoje sobre a face da Terra são descendentes de uma única mulher, e o gene dela está presente em todos nós. Mas mesmo com toda essa relevante descoberta científica, se existe hoje uma consciência progressista no reconhecimento do papel da mulher, esta se deve não à ciência, mas a uma compreensão cada vez mais fiel e mais profunda da pregação de Jesus. A presença da mulher no ministério de Jesus e no nascimento da igreja é de importância igual à participação dela na criação. Quando o próprio Deus decidiu nascer entre nós, fez questão de vir através de uma mulher. É exatamente por isso que Jesus chama Maria Madalena de mulher, porque ela é a primeira a testemunhar a sua ressurreição. A igreja começa com ela. Ela é a n° 1 do rol. Enquanto todss viam em Maria Madalena uma pecadora, Jesus viu nela uma mulher, o início de um novo Céu e de uma nova Terra. O recomeço de um novo povo. O povo que é reconhecido pelo seu nome.
Mas Jesus não para por aí, logo em seguida ele a chama de Maria. Embora não se possa afirmar categoricamente, há fortes indícios de que esse nome venha a ser derivado do nome hebraico Miriam. O nome daquela que ao lado de Moisés foi a grande heroína do Êxodo. Devido a sua persistente e arriscada obstinação em manter vivo o seu irmão, as tradições mais antigas associam seu nome ao adjetivo obstinada. E não é de se estranhar, pois é um fato que vem confirmar a sua verdadeira vocação: a obstinação da heroína que preserva, contra todas as expectativas, a vida daquele que viria a ser o maior opositor de Faraó, o seu irmão Moisés. Aquele bebê que ela acreditava ser o instrumento de Deus para libertar o seu povo e perpetuar a sua tradição religiosa.
Parece que Jesus reconhece em Maria Madalena essa obstinação, pois foi ela, que desde que conheceu Jesus, obstinadamente lhe serviu. Só pode ser esse o motivo oculto que levou o Papa Gregório à degradação do nome de Maria Madalena. É bem possível que tenha sido a sua obstinação em seguir o Mestre diante do perigo iminente e da própria morte, que tenha colocado os discípulos homens na defensiva. As frequentes menções e exaltações de Jesus à fidelidade dessa discípula, devem ter causado muita inveja a eles. Principalmente àqueles que nada fizeram além de o negarem, de fugirem e de se esconderem. Maria Madalena carrega consigo o pioneirismo da fé na ressurreição do Cristo. Foi a primeira a crer e, em virtude disso, a primeira a ver a glória de Deus. Nela se consuma a profecia do próprio Jesus: se creres, verás a glória de Deus.
Ao deparar-se com uma fé tão obstinada como a de Maria Madalena, a mente de um homem comum como Dan Brown, que não pode conceber nada maior que o amor carnal, só pode mesmo ficar confusa e inventar coisas sobre a relação dela com Jesus. Seria preciso que ele a conhecesse como o homem Jesus a conhecia, para entender que uma relação assim tão humana somente poderia ser divina. Por outro lado, Dan Brown teria que ver Jesus com os olhos que Maria Madalena via, para cultivar por ele um amor para muito além da paixão e do entendimento humano.
Por estes motivos, Maria Madalena torna-se a discípula exclusiva, a primeira a receber a coroa da vida, a primeira a ser fiel até diante da morte. Ouvir seu nome ser o primeiro a ser pronunciado pela boca de Jesus glorificado, é o orgulho supremo que um discípulo pode ostentar. O escolhido foi aquele que durante todo o seu ministério nunca foi necessário ser chamado, pois desde o primeiro contato jamais se afastou dele. Aquele a quem Jesus nunca precisou perguntar: tu me amas? Porque seu amor pelo mestre era mais que evidente. E é tantas razões que na endemoninhada, Jesus conseguiu enxergar para além da mulher. Viu também uma obstinada discípula.
(continua)

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